RuyGoiaba

O strogonoff está off

11.03.22

Cancelar e coçar, é só começar. Marcos Caruso que me perdoe, mas estou me sentindo obrigado a, diante dos últimos acontecimentos, atualizar o nome daquela peça dele que está em cartaz desde o Pleistoceno: de fato, o povo pisa no acelerador do cancelamento e não consegue mais frear. Estou falando, é claro, das reações à invasão da Ucrânia pela Rússia, que completou duas semanas (já disse o que penso da agressão em si e de Vladimir Putin, o atual carniceiro favorito da pior direita e da pior esquerda, na semana passada).

Uma das primeiras “sanções à cultura russa” depois da invasão foi demitir o maestro Valery Gergiev da sua posição de regente titular da Filarmônica de Munique e de outros empregos que ele mantinha, incluindo um posto em La Scala, o tradicionalíssimo teatro de ópera de Milão. Pesou na decisão, mais que o talento de Gergiev, o fato de o maestro ser amigo pessoal de Putin e, de acordo com o Corriere della Sera, ser ele mesmo uma espécie de oligarca russo, com propriedades na Itália cujo valor é estimado em 150 milhões de euros.

Não demorou muito, porém, para se criar uma situação perfeita para ser ilustrada com aquele meme do Will Ferrell dizendo “boy, that escalated quickly” (fica meio ridículo em português — “rapaz, aquilo se intensificou rapidamente” —, mas paciência). Você piscava o olho e já havia uma universidade italiana querendo banir Dostoiévski (e depois voltando atrás); olhava para o lado e via a Filarmônica de Cardiff excluindo Tchaikóvski de seu programa, certamente porque o compositor de O Quebra-Nozes não protestou o bastante contra a invasão — ter morrido quase 130 anos antes não é desculpa. Lá fora, supermercados baniram a vodca de suas gôndolas, e bares pararam de vender Moscow Mule (alguns rebatizaram o drinque de Kiev Mule). Como disse um amigo meu, é mais ou menos como parar de vender hambúrguer enquanto Trump estivesse na Casa Branca, ou vetar a caipirinha por causa de Bolsonaro.

(Houve até espertalhões como os donos do Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo, que anunciaram a retirada do strogonoff do seu cardápio — não importa que a versão brasileira, aquela que você mistura com feijoada, macarrão e sushi no self-service, seja hoje irreconhecível por um russo. Mas o strogonoff não ficou nem dois dias off: depois de muita publicidade gratuita proporcionada por gente reclamando nas redes sociais, os donos do bar anunciaram a “volta” do prato ao cardápio, acrescentando que a renda com as vendas seria revertida para uma ONG que atende a moradores de rua. Claro: a doação podia ter sido feita desde o começo, mas sem a polêmica o buzz não teria sido o mesmo. Nada como aproveitar a guerra para dar uma agitada nos negócios, não é, meus queridos?)

Fiquei pensando no que mais nós poderíamos fazer para incentivar decisivamente o esforço de guerra dos ucranianos contra os invasores. Abaixo-assinado para pedir ao Playcenter a demolição de suas montanhas-russas. Proibição da roleta-russa — ou incentivo a ela, dependendo do caso. Protesto contra os restaurantes que insistirem em servir salada russa (que, assim como acontece com a “pizza portuguesa” em Lisboa, lá em Moscou ninguém faz a menor ideia do que seja). Censura a “Pagode Russo”, o clássico de Luiz Gonzaga célebre pelo verso “na dança do cossaco não fica cossaco fora”. Banimento dos álbuns de Renato Russo e da Legião Urbana — taí, finalmente temos uma boa justificativa humanitária para quebrar o violão na cabeça daquele sujeito que chega à festa e diz “agora vou cantar ‘Faroeste Caboclo’”, coisa que já deveria ter sido proibida há muito tempo se levassem a Convenção de Genebra a sério.

Já que sou o “comentarista cultural” desta casa — pelo menos é o que diz o texto que apresentou a parceria entre Antagonista/Crusoé e UOL, e vou fingir que não notei a gordofobia nesse “colunistas de peso” —, comento o seguinte: é obviamente absurdo tratar a riquíssima cultura russa (na literatura, na música, no cinema, nas artes plásticas e em tantos outros campos) como se ela fosse extensão do tirano da vez. Muito da melhor cultura se faz contra a tirania, na resistência a ela: comprovam isso todos os artistas que sofreram sob Stálin e seus sucessores no regime soviético. Putin não é “o povo russo”, que já teve mais de 13 mil presos por protestarem contra a guerra, nem “a cultura russa”. Cancelar Dostoiévski e Tchaikóvski, ao contrário das sanções econômicas, não tem o menor efeito contra o regime; só nos deixa culturalmente mais pobres.

O strogonoff, assim como Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, vai continuar on por aqui. Mas o brinde à Ucrânia é com Coca-Cola. Os amigos bebedores que me desculpem: prefiro a “água negra do imperialismo” — bem gelada — a vodca.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Deus do céu, foram TANTAS na última semana que nem sei por onde começar: o suprimento de goiabices daria para escrever colunas inteiras. Especialmente no Dia da Mulher, em que o pessoal caprichou. Que tal aquele “evento pra fomentar a participação feminina na política” só com debatedores homens? Ou Jair Bolsonaro dizendo que as mulheres estão “praticamente integradas” à sociedade (mas não pode deixar acostumar muito, talquei?)? Ou Augusto Aras elogiando a mulher que tem o “prazer de escolher a cor da unha que vai pintar” e depois alegando que, veja bem, não quis diminuir as mulheres, elas podem chegar “até” ao mais alto posto da República “sem abrir mão da feminilidade”. Magnânimo, o PGR até aceita mulher na Presidência, desde que esteja com a manicure em dia.

Mas acho que o campeão continua sendo Mamãe Falei e seus comentários 100% otários sobre as mulheres ucranianas. Chego à conclusão de que aqueles esquetes do Boça, personagem de Hermes & Renato, não são de humor: são puro documentário sobre o espécime heterotop paulistano (“puta mulherada linda, mêo! Só refugiada top, tá ligado? A fila tinha mulher mais linda que a melhor balada do Brasil no melhor dia, mêo! Não, eu não peguei nenhuma”).

Boça: “Ser deputado estadual é top, mêo! Só ser cassado é que é meio chato”

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