A vez dos corruptores
Empresas flagradas em escândalos como o petrolão escaparam de punições ou tiveram as sanções atenuadas diante do compromisso de entregar provas dos esquemas. Desde 2015, o governo firmou acordos de leniência com 17 delas, que se comprometeram a devolver 15,4 bilhões de reais aos cofres públicos. Esse instrumento, previsto na Lei Anticorrupção, tem por objetivo dar mais celeridade aos processos administrativos a partir de uma perspectiva de ganho para ambos os lados: a companhia investigada reduz o valor devido e escapa da proibição de contratar com o poder público, enquanto o governo consegue reaver recursos desviados de forma mais rápida. Como no Brasil a esperteza costuma falar mais alto, alguns empresários que fecharam acordos de leniência depois de longas e intrincadas tratativas querem rever os compromissos para obter ainda mais vantagens.
Além de tentativas de repactuação de cláusulas, está em curso em Brasília uma investida para beneficiar empresas infratoras e, ao mesmo tempo, gerar dividendos políticos a integrantes do governo. Dos 15,4 bilhões de reais que a União deveria receber em decorrência dos acordos já firmado, só 6 bilhões foram efetivamente pagos até hoje. A ideia, em gestação nos bastidores, é que ao menos uma parte dos 9,4 bilhões ainda devidos pelas empreiteiras investigadas seja paga em serviços, como a construção de prédios públicos e a conclusão de obras paradas. A proposta pode parecer vantajosa. O problema, segundo especialistas e procuradores do Ministério Público Federal, é a falta de base legal para essas combinações: para viabilizar a proposta, a União teria que fazer licitações exclusivas para as empresas infratoras que fecharam acordos de leniência com o governo, o que configuraria crime de direcionamento da concorrência pública. Na prática, é algo que vai na contramão da própria ideia de licitação.
As conversas sobre o tema vêm sendo conduzidas por representantes da Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União, que comandam os acordos de leniência firmados pelo governo. Também participam das tratativas integrantes da Procuradoria-Geral da República e de ministérios como os da Infraestrutura e do Desenvolvimento Regional, que costumam ter contratos vultosos de obras públicas. A proposta é incentivada por ministros do Tribunal de Contas da União, como Bruno Dantas e Jorge Oliveira, este último indicado por Jair Bolsonaro – amigo pessoal do presidente, antes de assumir a cadeira ele era ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. A ideia começou a ser discutida no Comitê Executivo Nacional de Apoio à Solução das Obras Paralisadas, encarregado de tocar o Programa Destrava, uma iniciativa do governo, de órgãos de controle e do Poder Judiciário, para viabilizar a conclusão de obras que estão suspensas. A estimativa é que existam quase 4 mil obras inacabadas no país, orçadas em 144 bilhões de reais. Esses empreendimentos já consumiram 10 bilhões de reais, mas foram abandonados ao longo dos últimos governos.
Dentro do governo, um dos pais da proposta é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, pré-candidato ao governo de São Paulo. A menos de sete meses das eleições, Jair Bolsonaro e seu entorno sonham com a retomada de obras paradas e com o anúncio de novos empreendimentos para exibir na vitrine eleitoral. “Fui um dos patrocinadores da ideia porque acho uma saída superinteressante”, disse Tarcísio a Crusoé. “Há bilhões de reais de recursos de acordos de leniência que estão parados. Por que não usar como investimento em infraestrutura? É como se fosse uma penitência a essas empresas que cometeram malfeitos no passado”, defende o ministro. “A Constituição diz que a lei estabelecerá o regime de licitações e contratos e suas exceções. Ora, eu estou trocando uma obrigação de pagar por uma obrigação de fazer. Você tem uma creche que está abandonada, tem bilhões que uma empresa deve à União. Por que não pagar esses bilhões concluindo essa creche? Por que seria um desvio?”, indaga.
Nas últimas semanas, a articulação para que as empresas infratoras possam abater as dívidas de acordos de leniência com a realização de obras ganhou fôlego. A Advocacia-Geral da União foi acionada para construir as justificativas jurídicas para o modelo. Em outra frente, Bruno Dantas, do TCU, defendeu a tese durante uma sessão da corte no fim de fevereiro. Segundo ele, o tribunal tem feito “uma intervenção de maneira informal” na discussão. A ideia, explicou, é que “as empresas que têm acordo de leniência participem de uma seleção entre si, aquela que der maior desconto assume a obra e aquele valor será descontado do acordo de leniência. É uma forma criativa de viabilizar esses pagamentos”. Dantas reconheceu, entretanto, que esse “é um modelo que não existe em lei alguma” e que “existem alguns desafios, como a questão da licitação”.
Procuradores da República que já atuaram em negociações de acordos de leniência também se opõem à ideia. “Qualquer proposta de seleção apenas com a participação de empresas infratoras seria contrária à Lei de Licitações”, diz um deles, também sob reserva. Outro observou que a novidade “criativa” defendida por Bruno Dantas e companhia “teria que ser repactuada em cada acordo, individualmente, com a autoridade responsável”. Ou seja, para que as empreiteiras pudessem pagar o que devem por meio de serviços, antes de tudo seria preciso mudar as cláusulas dos acordos de leniência para prever essa possibilidade. Depois, as companhias infratoras teriam que participar de uma licitação ampla – e não exclusiva, como defendem os empenhados entusiastas da ideia. Só depois de vencer a concorrência é que os empresários poderiam abater parte da dívida que têm com o governo. Um caminho longo e custoso que, por motivos óbvios, as autoridades de Brasília querem encurtar de maneira pouco ortodoxa.
Pagar dívidas com obras é apenas uma das estratégias de empresas que fecharam acordos de leniência e ainda devem bilhões ao governo. A J&F, controladora do frigorífico JBS, que tem como sócios os irmãos Wesley e Joesley Batista, tentou sem sucesso rever os termos do acordo firmado em 2017. No mês passado, o Conselho Institucional do Ministério Público Federal – um dos órgãos superiores da instituição – rejeitou as manobras do grupo para reduzir ainda mais o valor devido. Há cinco anos, a J&F se comprometeu a pagar 10,3 bilhões de reais para se livrar de sanções mais duras, mas queria repactuar o acerto e reduzir o montante. Os procuradores entenderam que a empresa dos irmãos Batista tentou “dar um balão” nos colegas que negociaram o acordo em primeira instância, ao levar a tentativa de repactuação diretamente à PGR.
Procuradas, a AGU e a CGU disseram que o novo modelo está em “negociação entre as instituições”. Os dois órgãos alegaram que não podem se manifestar porque as tratativas ainda estão em “fase preliminar”. Crusoé indagou quantas e quais empresas têm parcelas de acordos de leniência com pagamentos atrasados e qual o valor da dívida de cada uma. A CGU confirmou que houve atraso, mas que as companhias apresentaram explicações e, por isso, ainda não são consideradas oficialmente inadimplentes. “As justificativas estão sob análise”, justificou. O montante devido e o nome dos devedores, entretanto, não foram divulgados. Além dos acordos de leniência já assinados, a Controladoria tem hoje 24 com negociações em andamento. No cenário atual, pode ser um excelente negócio. A Lei de Gerson segue reinando em Brasília.
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