RuyGoiaba

Censurem a Bíblia

18.03.22

Praticamente tudo já foi dito sobre a “polêmica” em torno de Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola, filme de Danilo Gentili que não pretendo ver nem se for pago para isso. Que, com gasolina a 8 reais e inflação subindo, os bolsonaristas resolveram promover um pânico moral exumando um filme de 2017 — e que alguns deles, como Marco Feliciano, elogiaram na época, quando ainda viam o humorista como aliado (o nobre deputado apagou o elogio e alegou que tinha saído para “atender o telefone” justo durante a cena do pedófilo interpretado por Fábio Porchat. Ahã). Que a ordem do Ministério da Justiça e da Senacon — hoje chefiada por Rodrigo Roca, ex-advogado de Flávio Bolsonaro e louco para mostrar serviço aos chefes — para que as plataformas de streaming excluam o filme é inconstitucional e é, sim, censura. Que, como consequência disso tudo, o filme velho de cinco anos está agora entre os mais vistos na Netflix.

Menos comentada é a origem da grita contra Como Se Tornar…: O Globo fez um mapeamento e descobriu que a primeira menção pública recente ao filme, no dia 11 de março — dois dias antes de o bolsonarismo se apropriar da pauta —, veio de uma instagrammer que acusou o filme de “normalizar o abuso sexual”, criticou a classificação indicativa (até então para maiores de 14 anos) e fez um “alerta para mães e pais”. Ouvida pelo jornal carioca, a dona do perfil disse não ser bolsonarista nem a favor da exclusão do filme das plataformas de streaming, acrescentando que a postagem havia sido compartilhada antes por perfis feministas e mães preocupadas com a classificação etária da obra. Bom, boa sorte a essas pessoas na tentativa de enfiar a pasta de dente de volta no tubo.

Só para deixar claro o que deveria ser óbvio: mães e pais zelosos têm todo o direito de não querer que seus filhos assistam ao filme (eu mesmo achei a “cena controversa”, uma das poucas a que assisti, sem graça nenhuma e de gosto no mínimo duvidoso). Não têm nenhum direito de impor sua visão a mães e pais que pensem diferente ou a pessoas adultas e sem filhos, como eu. Ver ou não ver obras com esse tipo de conteúdo é decisão que cabe a cada família, não ao estado — que extrapolará seu papel se fizer qualquer coisa que vá além da classificação indicativa. É simples: não é rocket science, não é um “assunto complexo” como a invasão da Ucrânia para os vladiminions (e só não uso “teoria da ferradura” aqui também porque não aguento mais a expressão; mas caberia).

O que ainda me espanta um pouco, embora já não me surpreenda, é pessoas falarem em “normalização do abuso sexual” numa obra de ficção em que o pedófilo é claramente o vilão da história. Como o próprio Porchat lembrou outro dia, vilões se caracterizam justamente por fazer coisas que vão do reprovável ao repulsivo — ou francamente abominável. Não é possível que pessoas bípedes, alegadamente com mais de dois neurônios funcionais, não enxerguem nenhuma diferença entre realidade e representação e achem que compete à ficção oferecer qualquer espécie de “exemplo”. Ou que a função da obra de arte, boa ou ruim, é ser um Manual do Escoteiro Mirim para pobres almas influenciáveis.

Nosso tempo é tão, mas tão progressista que, como um carro de Fórmula 1, dispara e acaba ficando atrás do último colocado. Estamos, neste momento, atrás de Aristóteles: uns 2.300 anos atrás, o filósofo grego já argumentava que uma tragédia, suscitando terror e piedade, provocava a purificação dessas emoções nos espectadores — essa purificação é a tal da “catarse”; confiram aí no dicionário ou no Google mais próximo. Ninguém que assista a Édipo Rei, por exemplo, sairá da peça achando que matar o pai e transar com a mãe é uma ideia bacaninha. A seu modo, Nelson Rodrigues traduzia: “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos”. Nem ele nem Aristóteles achariam jamais que representação é igual a realidade.

Se formos mesmo insistir nessa história de tirar de circulação obras de ficção que “normalizam” crimes, sugiro começar pelos filmes de Quentin Tarantino ou pela trilogia O Poderoso Chefão, com sua normalização de assassinatos. Há muitos caminhos possíveis — quem quiser fazer diferente pode, por exemplo, jogar Lolita, o clássico de Vladimir Nabokov, na fogueira. E por que não ir mais longe na nossa coerência implacável e censurar também a Bíblia? Além das mortes violentas e das cenas de tortura, podemos começar suprimindo a passagem (Gênesis 19) em que as filhas de Ló embebedam o pai para engravidar dele (ou seja, incesto e estupro). Ou aquela (Gênesis 38) em que Tamar, nora de Judá, se disfarça de prostituta e engravida do sogro. Ou o trecho (2 Reis 2) em que duas ursas matam 42 crianças só porque elas chamaram o profeta Eliseu de “careca” — o que seria uma pena; deve ser a minha cena favorita no Velho Testamento.

Espero que vocês estejam preparados para viver em um mundo no qual só vai sobrar Manual do Escoteiro Mirim — literal ou metafórico — para a gente ler.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana Paulo Guedes, o incrível ministro que encolheu (e olha que ele já nem era grande coisa antes de aderir ao bolsonarismo), caprichou na torneirinha de asneiras. Primeiro, disse que cada brasileiro tem “um, dois iPhones às vezes” — o fato de que ele provavelmente quis dizer “celulares” só evidencia sua incapacidade de sair do Leblon mental, mesmo fora do Leblon físico. Depois ainda afirmou que, “se vier a Segunda Guerra Mundial aí” — aquela mesma que acabou em 1945 —, “estamos prontos”. No fundo, o ministro está certo, mas sobre si mesmo: é um sujeito com dois iPhones que não saiu da década de 40.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPaulo Guedes, o único homem com dois iPhones no Leblon da década de 1940

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