O fiasco dos arautos da ‘nova política’
O pretenso discurso anti-establishment insuflado em 2018, em razão da desilusão do eleitorado com a classe política, não serviu apenas para alçar Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Na esteira da onda bolsonarista, mais de 50 representantes da autodenominada “nova política” foram eleitos com a promessa de mudar a cara do Congresso. À imagem e semelhança do seu líder político, esses aliados desembarcaram em Brasília estridentes. Munidos do bordão “a mamata acabou”, prometeram usar o dinheiro público com racionalidade e sensatez e apresentar projetos coerentes com os anseios do eleitorado que os elegeu. Para justificar o alinhamento automático ao presidente eleito, os novatos venderam a tese de que o governo era a única alternativa para evitar a repetição de práticas condenadas pelas urnas, como o toma lá dá cá, origem dos principais escândalos de corrupção até então. Na visão de parte da população, era uma demonstração de que, finalmente, o Parlamento brasileiro tinha mudado de feição — e de postura.
Mais de três anos depois, no entanto, prevaleceu a máxima lampedusiana de que “tudo deve mudar para permanecer como está” – ou, em muitos casos, até mesmo piorar. Além de os bolsonaristas terem se transformado numa mera caixa de ressonância dos devaneios do presidente no Congresso, a atuação dos fiéis apoiadores de Jair Bolsonaro foi marcada por um vazio de propostas, gastos elevados com viagens e despesas injustificáveis de gabinete. Os discursos anticorrupção e em favor da Lava Jato também viraram palavras ao vento. Não bastasse ter deixado esfriar o debate sobre a prisão após condenação em segunda instância, pauta que outrora parecia ser cara ao presidente, a base aliada ao Planalto usou e abusou do “orçamento secreto”, uma espécie de mensalão 2.0, e votou em peso a favor da proposta que desfigurou a Lei de Improbidade Administrativa. Bolsonarista-raiz, a deputada Carla Zambelli chegou a ir às redes defender o projeto e elogiou o trecho que excluiu a possibilidade de condenação de agentes públicos pelos chamados atos culposos. “Como estava, a lei afugentava pessoas decentes de exercer cargos públicos, porque pagavam por erros alheios às suas ações”, escreveu.
Enquanto tentaram descaracterizar propostas de combate à corrupção, os representantes da suposta nova política apresentaram projetos de lei inexequíveis e/ou absurdos, alguns deles pura e simplesmente para agradar à militância, como o que defendeu a inscrição do nome do ideólogo Olavo de Carvalho, morto em janeiro deste ano, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria e o que quer barrar “atividades político-partidárias” em universidades públicas.
Na prática, muitos dos novos congressistas que chegaram prometendo revolucionar a política passaram a reproduzir nos projetos apresentados os discursos de Bolsonaro, para usá-los como trampolim político e permanecer em evidência. “Eles prometeram coisas que não eram passíveis de ser cumpridas. É uma forma de ter endosso público, aparecer na foto e dizer que fez”, diz o professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo Glauco Peres. “Para além da sandice pura e simples, eles não imaginavam a dificuldade que é para aprovar leis, ainda mais sem o engajamento do Executivo. As propostas são uma tentativa de manter a rede viva, porque o assunto rende, os nomes deles aparecem”, emenda.
A maneira de atuar em total consonância com o que é ditado pelo presidente fica ainda mais clara nas comissões da Câmara presididas pelos deputados ligados ao Planalto. Os colegiados tornaram-se uma extensão do famoso cercadinho do Palácio da Alvorada, onde o presidente desfia absurdos diariamente para inflamar sua militância. Comandada por Bia Kicis, a Comissão de Constituição e Justiça tem sido palco para a propagação de fake news relacionadas à pandemia, ataques a ministros do Poder Judiciário e impropérios de toda ordem contra adversários políticos. Já a Comissão do Meio Ambiente, presidida por Zambelli, avançou na agenda antiambiental, com a aprovação de propostas como a que dificulta a criação de novas unidades de conservação e a que liberou a prática da vaquejada como esporte.
Ao longo dos últimos anos, os bolsonaristas também não fizeram questão de economizar em viagens internacionais feitas pretensamente para cumprir missões oficiais. Em 2019, o deputado Major Vitor Hugo voou em classe executiva para a Europa, onde participou da reunião da Rede Parlamentar Global da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico — não se sabe até hoje quais benefícios a reunião trouxe para o país. As passagens custaram 19.597 reais. À época, ele recebeu 8.966 reais em diárias, que são uma espécie de ajuda de custo para pagamento de despesas com hospedagem, alimentação e locomoção.
Apesar do abismo entre o discurso e a prática, Bolsonaro nutre a expectativa de conseguir eleger uma bancada fiel e ainda mais numerosa no Congresso neste ano – com a diferença, claro, de que agora a cantilena de “nova política” não poderá ser repetida. Ao longo da semana, o PL do presidente ultrapassou a União Brasil e se tornou a maior legenda em número de assentos no Congresso. “O eleitor tem pouco material para acompanhar a produtividade de parlamentares. Então, vota por identificação com as pautas e com o principal cabo eleitoral desses nomes, que é o presidente. Por isso esses deputados legislam olhando para o próprio umbigo”, critica Carlos Ranulfo, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais.
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