Reprodução: Youtube/HyperBrosZelensky tem gravado mensagens em russo, sua língua materna, para minar as bases de apoio a Putin

O herói da resistência

De um bunker em Kiev, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky encoraja seus compatriotas a lutarem na guerra, mina o apoio a Putin na Rússia e une as principais democracias do mundo na defesa de seu país e da liberdade
18.03.22

Não há político mais admirado atualmente no mundo do que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Com camiseta verde-oliva e barba por fazer, ele dispara de seu bunker na capital do país, Kiev, vídeos condenando os ataques russos à população civil, incitando os ucranianos a lutar e pedindo a chefes de estado que apoiem o seu país contra o invasor russo. Em uma era carente de governantes fortes, Zelensky, de 44 anos, despontou como uma autoridade corajosa e determinada a preservar os valores compartilhados de paz, direitos humanos, democracia e soberania. Na semana passada, ele foi ovacionado de pé após falar por vídeo ao Parlamento britânico. Na quarta, 16, repetiu o feito no Congresso dos Estados Unidos e, no dia seguinte, no Parlamento alemão. Em Kiev, Zelensky recebeu autoridades da Polônia, República Tcheca e Eslovênia, que chegaram de trem à cidade bombardeada. Na última semana, as contas do presidente nas redes sociais exibiram conversas com líderes do Canadá, Turquia, Grécia, Israel, Reino Unido e Bulgária. A admiração é tanta que, quando o presidente da França, Emmanuel Macron, foi fotografado de moletom com capuz, cabelos despenteados e barba por fazer, a combinação logo foi entendida como uma tentativa de mimetizar o popular Zelensky.

A construção do herói ucraniano é favorecida por sua antítese, Vladimir Putin, de 69 anos, dos quais 22 deles no comando da Rússia. Os dois estão em polos opostos em praticamente tudo. Enquanto Zelensky é popular entre as democracias do mundo todo, seu rival russo só aparece recebendo governantes de ex-repúblicas soviéticas ou populistas de países periféricos. Zelensky visita feridos em hospitais, faz reuniões em mesas apertadas com outros líderes e mostra as barreiras erguidas pelos moradores que se preparam para a chegada dos russos. Com celular na mão, ele fala de maneira energética e olha direto para a câmera. Putin, ao contrário, evita se aproximar de qualquer assistente e às vezes se senta no canto de uma mesa enorme, a 5 metros de distância de seus convidados. Sua cara, invariavelmente, é de aborrecimento. Outra disparidade é que Zelensky não tem qualquer problema em justificar suas ações. Os ucranianos lutam por seus direitos e pela própria soberania, contra um invasor cruel. Putin tem pulado de uma explicação a outra, sem convencer ninguém dos motivos da sua agressão. Já falou em nazismo, em genocídio, em expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, e em armas biológicas.

O resultado desse duelo entre o Davi ucraniano e o Golias russo pode ser constatado nas redes sociais. No poder há três anos, Zelensky já angariou 24 milhões de seguidores, muito mais do que Putin, que tem 9 milhões. “Além de ter mais do que o dobro de seguidores de Putin, que se manifesta por perfis do Kremlin em redes sociais, Zelensky se comunica de uma maneira mais pessoal e com muito mais emoção“, diz Fabiana Parajara, diretora da consultoria Bites, especializada em comunicação digital.

Eleito no segundo turno, em 2019, com 73% dos votos, o presidente ucraniano teve uma lua de mel breve com a população. Em pouco tempo, já estava se arrastando para manter seu mandato. Aos olhos do Kremlin, parecia alguém que poderia ser facilmente derrubado. Sem experiência política anterior, ele foi tinha duas promessas: combater a corrupção e normalizar as relações com a Rússia, que já tinha invadido a Crimeia e o leste da Ucrânia, em 2014. O candidato imaginava que bastaria uma conversa franca com Putin para que tudo se resolvesse. Apesar de ingênua, a ideia ganhou adeptos entre os eleitores e contribuiu para sua vitória.

ReproduçãoReproduçãoO líder ucraniano dá flores a menina ferida em bombardeio russo
O sucesso eleitoral também se explica porque, como ator e comediante, Zelensky pôde se apresentar como alguém de fora do sistema. “Havia um cansaço generalizado entre a população com os políticos tradicionais, com os oligarcas, com as disputas étnicas e ideológicas e com os conflitos com a Rússia”, diz Raquel Missagia, professora de relações internacionais da Universidade Federal Fluminense, a UFF, e pesquisadora do Instituto de Estudos Estratégicos. Volodymyr Zelensky ainda soube capitalizar sua fama em seu caminho até a cadeira de presidente. Seu personagem mais conhecido é o protagonista da série de televisão Servos do Povo, em que interpretou um professor de história, Vasyl Petrovych Holoborodko, que se torna presidente da Ucrânia, depois de um aluno filmá-lo na sala de aula, fazendo um discurso contra a corrupção. As cenas viralizaram na internet e o catapultaram para o topo da política (nesta semana, a Netflix voltou a disponibilizar a série nos Estados Unidos). Na vida real, ao montar um partido um ano antes das eleições de 2019, Zelensky o batizou com o mesmo nome da série, Servos do Povo, e fez diversas menções ao seu trabalho anterior. “As pessoas querem ver um presidente como Holoborodko, com os mesmos valores morais”, disse na campanha. “Eles estão cansados do establishment. O povo quer algo novo.”

No poder, antes da guerra, Zelensky não foi capaz de realizar suas promessas e viu sua popularidade minguar. A esperada normalização das relações com a Rússia não aconteceu. Ele e Putin chegaram a se encontrar em dezembro de 2019, mas as negociações não prosperaram. A campanha contra os corruptos foi neutralizada ao esbarrar no oligarca ucraniano Ihor Kolomosky, que teve sua entrada proibida nos Estados Unidos em 2021 por “corrupção significativa”. Kolomosky é considerado o homem por trás de Zelensky e do seu partido. Outros problemas apareceram pelo caminho. Em novembro de 2019, Zelensky apareceu enrolado nas trapalhadas do então presidente Donald Trump. O americano queria que ele falasse na televisão sobre uma inexistente investigação sobre Hunter Biden, filho do então candidato à Casa Branca Joe Biden. A pandemia de Covid, que chegou em 2020, também contribuiu para esvaziar ainda mais sua aprovação, que em dezembro do ano passado estava em 30%.

A guerra de Putin inverteu tudo e jogou a aprovação de Zelensky para a casa dos 90%. Frente à invasão de um Exército muito superior, o presidente se recusou a deixar o país e comandou a resistência ao lado dos militares e dos civis ucranianos que permaneceram no país, correndo os mesmos riscos que eles. Logo após os Estados Unidos cogitarem evacuá-lo de Kiev, ele afirmou que queria “munições, e não uma carona”. A experiência de ator o ajudou.  “A barba e a camiseta verde-oliva são parte da construção dramática do personagem, que poderia ser descrito como um soldado do povo”, diz Raquel Missagia. “O interessante é notar que isso incomodou tanto os russos, que, nos veículos ligados ao Kremlin, Zelensky continua aparecendo de terno e gravata.”

Soldados ucranianos ajudam idosa com gatoSoldados ucranianos ajudam idosa com gatoSoldados da Ucrânia resgatam idosa com gato: o conflito chegou a Kiev
Os russos, aliás, formam um dos públicos para o qual Zelensky se dirige. Nascido em 1978 em uma cidade no sul da Ucrânia, Kryvyi Rih, o presidente tem o russo como língua materna. Em seu papel como o professor de história que vira presidente, ele também falava o idioma de Putin, o que o tornou conhecido no país vizinho. Vários de seus vídeos nas redes sociais são publicados também em russo, com o objetivo de minar as bases de apoio do rival. O líder ucraniano tem sido extremamente ágil para desmentir as falas de Vladimir Putin na internet. Horas depois de Putin anunciar a guerra, em 24 de fevereiro, Zelensky fez circular um vídeo dizendo que a Ucrânia é um país soberano e que não era necessária uma ação para libertar os ucranianos, pois eles já são livres. Depois que milhares de russos foram detidos pela polícia em diversas cidades, fazendo manifestações pacifistas, Zelensky agradeceu o apoio. “Para todos os cidadãos da Federação Russa que saíram para protestar, eu quero dizer que nós vimos vocês. Isso significa que vocês nos ouviram, que vocês acreditam na gente e querem lutar contra a guerra”, disse.

Para cada público, um discurso bem direcionado. Em seu tour virtual pelos principais parlamentos do mundo, Zelensky recuperou passagens da história do país em questão. Ao falar para o Parlamento britânico, parafraseou o discurso do primeiro-ministro Winston Churchill, na Segunda Guerra Mundial. “Nós não vamos desistir e não vamos perder. Lutaremos até o fim. No mar, no ar, continuaremos lutando por nossa terra custe o que custar. Lutaremos nas florestas, nos campos, na costa, nas ruas”, disse. Discursando para os americanos, lembrou de dois momentos em que a soberania dos Estados Unidos foi ameaçada: o ataque japonês a Pearl Harbor, que levou o país a entrar na Segunda Guerra, e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Ao pedir uma zona de exclusão aérea, Zelensky retomou o discurso de Martin Luther King: “Eu tenho um sonho. Essas palavras são conhecidas de vocês… Eu tenho uma necessidade. A necessidade de proteger nosso céu”. Para os alemães, lembrou do discurso do ex-presidente americano Ronald Reagan, em 1987, pedindo a derrubada do Muro de Berlim. O ucraniano falou de um “muro entre liberdade e ausência de liberdade”, que estaria ficando maior a cada bomba que cai sobre a Ucrânia. “Eu quero dizer a você, chanceler Olaf Scholz: derrube este muro. Dê para a Alemanha a liderança que vocês merecem e que vai deixar as gerações futuras orgulhosas.”

Ao conversar com autoridades mundiais, Zelensky tem insistido no pedido para que se crie uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia. Mas nem os Estados Unidos nem a Otan consideraram a ideia. A operação, além de ser muito custosa, é extremamente perigosa. Quando anunciou o início da guerra, no final de fevereiro, Vladimir Putin disse que, se outros países entrassem no conflito, sofreriam “consequências nunca antes experimentadas na história”. A ameaça deixou claro que qualquer ação ofensiva da Otan escalaria o conflito para outro patamar, provavelmente dando início a uma guerra nuclear. Na prática, para que uma zona de exclusão aérea fosse levada a cabo, aviões estrangeiros teriam de enfrentar os russos. “A Otan já estabeleceu uma zona de exclusão aérea na Líbia, em 2011. Contudo, desta vez, mesmo que isso não seja feito pela aliança militar, mas por um de seus membros, qualquer incidente poderia criar uma situação muito arriscada entre as potências mundiais”, diz Valdir da Silva Bezerra, pesquisador da USP e mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo, cidade onde mora atualmente.

ReproduçãoReproduçãoPutin com o presidente iraniano Ebrahim Raisi: distância e aborrecimento
Zelensky, porém, gosta de jogar alto. Considerando o sofrimento que seu povo tem passado, é uma estratégia plenamente justificável, mas que não tem encontrado eco nas grandes potências. O ucraniano terminou seu discurso ao Congresso americano pedindo que Joe Biden liderasse o mundo, o que o tornaria também o “líder da paz”. Mas não há sinais de que Biden, que ordenou a retirada dos soldados do Afeganistão, tenha tal pretensão. Pelo contrário. Ele tem repetido que não enviará soldados para a Ucrânia. Biden só tem sido mais ousado mesmo é no emprego das palavras, visando a melhorar a sua popularidade interna, visto que os americanos apoiam maciçamente a Ucrânia e Zelensky. Ao ser indagado por um repórter sobre as ações russas na Ucrânia, afirmou que achava que Putin era um “criminoso de guerra”. O Kremlin respondeu que a afirmação é “inaceitável e imperdoável”. Nesta quinta, 17, Biden foi além. Disse que Putin é um “ditador assassino, um bandido completo que está travando uma guerra imoral contra o povo da Ucrânia”.

Com uma coluna de tanques russos se aproximando de Kiev, Zelensky divulgou um vídeo em que dizia ser o “alvo número um”. Sua mulher, Olena, e os dois filhos, de 9 e 17 anos, seriam os alvos seguintes. Para os militares russos que estão enfrentando contratempos no campo de batalha, matar o presidente ucraniano seria desferir um golpe poderoso contra o ânimo das tropas rivais. A questão é que Zelensky, com sua habilidade de comunicação, ainda pode ser de grande valia aos russos. “Se as negociações de paz se tornarem sérias, Zelensky terá suas habilidades testadas se for preciso convencer os ucranianos de que eles não irão se juntar à Otan ou que o país perderá uma parte de seu território”, observa o cientista político americano Paul D’Anieri, especialista em Ucrânia na Universidade da Califórnia. Sem abandonar o bunker, Zelensky põe, assim, os invasores diante de um dilema. “Por um lado, os russos gostariam de vê-lo morto. Por outro, ele é provavelmente a única pessoa que poderia negociar um acordo de paz e convencer os ucranianos a parar de lutar”, diz o professor D’Anieri. Na guerra, Zelensky está desempenhado o seu melhor papel.

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