Arquivo pessoal"Essa história de genocídio é um pouco como a das armas de destruição em massa, que serviu como pretexto para os Estados Unidos invadirem o Iraque"

Os crimes de Putin

Para a juíza brasileira Sylvia Steiner, que integrou o Tribunal Penal Internacional, a justificativa usada pelo presidente russo para invadir a Ucrânia não se sustenta. Ela explica por que a investigação da corte sobre a guerra deve ser mais rápida que as de outros conflitos
18.03.22

Juíza do Tribunal Penal Internacional entre 2003 e 2016, a paulista Sylvia Steiner foi uma das três magistradas que assinaram o mandado de prisão do ditador Omar Bashir, do Sudão. Em 2009, Bashir foi acusado de ordenar um genocídio na região de Darfur que deixou 300 mil mortos. Foi a primeira vez que um chefe de governo em exercício recebeu uma ordem de captura pelo TPI. “Não se tolera mais a impunidade. Não importa o grau. Não importa se é um presidente de estado, um líder. Ninguém está acima da lei”, disse Sylvia, na ocasião. A Justiça demorou, mas chegou. Deposto por um golpe em 2019, Omar Bashir foi detido e pode terminar seus dias em uma prisão em Haia, na Holanda. Com os primeiros ataques das Forças Armadas russas contra civis na Ucrânia, o tribunal penal foi acionado para apurar a ocorrência de crimes de guerra e contra a humanidade. Se esses delitos forem comprovados, Vladimir Putin e seus generais também podem ser condenados.

Nesta entrevista a Crusoé, Sylvia Steiner diz que o fato de a guerra atual envolver dois estados torna mais fácil a obtenção de provas no curso da investigação dos crimes. Para a juíza, não tem cabimento a justificativa de Putin de que era necessária uma intervenção no país vizinho, para impedir um genocídio na Ucrânia. Se algo assim estivesse mesmo ocorrendo, diz, o presidente russo poderia facilmente ter acionado o Conselho de Segurança da ONU ou trabalhado para evacuar para a Rússia as pessoas perseguidas. “Nenhuma solução pacífica foi tentada, e a Rússia não tomou qualquer iniciativa na ONU”, afirma Sylvia. Mestre em Direito Internacional pela USP, a magistrada foi desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com sede na capital paulista, antes de virar juíza da corte internacional. Aos 69 anos, atualmente ela coordena um grupo de estudos de direito penal internacional na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Eis a entrevista:

Quais crimes o presidente da Rússia, Vladimir Putin, pode ter cometido com a guerra na Ucrânia? Já se pode falar em crime de agressão, por exemplo?
O crime de agressão se dá quando um estado ataca o outro pelo uso da força, ao realizar uma invasão ou um bombardeio, violando sua soberania. Mas sobre esse crime não podemos falar, porque esse delito só está previsto no Estatuto de Roma. Como a Rússia não é parte dele, então o TPI não tem competência para julgá-lo. Por outro lado, se, depois de uma investigação, ficar comprovado que foram cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, aqueles que forem apontados como os responsáveis, como Putin e seus homens, poderiam ser julgados pelo tribunal. Isso é possível porque a Ucrânia aceitou voluntariamente a competência da corte. Pelo que tem sido mostrado pela imprensa e falado pelas autoridades, estão sendo cometidos ataques indiscriminados contra a população civil e contra os seus bens, como casas e escolas. Essas coisas poderiam ser enquadradas como crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Também tivemos notícias de que estariam sendo usadas munições proibidas pelo direito internacional, como bombas de fragmentação, o que configuraria crime de guerra. Em uma guerra, só é legítimo atacar combatentes e objetivos militares, como quartéis, aeroportos ou depósitos de munição. Assim, sempre que uma ação é praticada contra não combatentes, ou seja, contra a população civil ou seus bens, pode-se considerar crime de guerra e, a depender da situação, crime contra a humanidade.

Como se dá a investigação?
Quando a promotoria decide investigar a prática de crimes em um conflito armado, ela é obrigada a coletar informações sobre todos os envolvidos, o que deve incluir também o lado ucraniano. Outro ponto importante é que não se pode basear as conclusões apenas nas notícias da imprensa. Todos os atos mostrados pelos veículos de comunicação precisam ser investigados e corroborados. Não se pode acusar alguém de matar civis, por exemplo, se não há a informação de quem foi morto.

Com tanta informação disponível nos dias de hoje, a investigação pode ser acelerada?
Costuma ser um processo difícil e demorado, mas desta vez existe a esperança de que a investigação seja mais rápida. Normalmente, quando esses crimes acontecem dentro de um país, a entrada de investigadores estrangeiros é dificultada. No Sudão, por exemplo, as forças do governo atacaram as populações da região de Darfur. Muitas pessoas morreram e ficaram feridas. Cerca de 2 milhões fugiram para países vizinhos. As forças oficiais envenenaram poços de água, para impedir que as pessoas voltassem a seus lugares de origem. Foram destruídos vários bens civis, como estradas e pontes. Com tudo isso acontecendo, Omar Bashir não permitiu a atuação das equipes do TPI. Elas tiveram de coletar provas fora do país, entrevistando as pessoas que se refugiaram em estados vizinhos. A guerra atual é diferente, pois trata-se de um conflito internacional, entre dois países. Assim, a Ucrânia, que é a vítima da agressão, pode facilitar a entrada de funcionários do TPI. Provavelmente já estão lá dentro, colhendo provas. E a eles devem se juntar mais grupos, porque o Conselho de Direitos Humanos da ONU determinou a criação de uma comissão de investigação. Também se espera que outros países ajudem com a coleta de evidências. A denúncia enviada ao TPI foi feita por 39 estados, e o promotor acha que esse número pode aumentar. Essas nações, muitas delas da antiga Cortina de Ferro, têm todo interesse em colaborar. Elas poderão ajudar, por exemplo, com as entrevistas com feridos, familiares dos mortos e vítimas de estupros.

Patrícia Santos/Estadão ConteúdoPatrícia Santos/Estadão Conteúdo“Costuma ser um processo difícil e demorado, mas desta vez existe a esperança de que a investigação seja mais rápida”
O total de refugiados da guerra da Ucrânia já ultrapassa o do Sudão e pode chegar a 4 milhões. O que explica esse número espantoso em tão pouco tempo?
O número de deslocados é sempre muito alto, e não tem tanto a ver com o tipo de conflito. Em Moçambique, cerca de 700 mil pessoas deixaram suas casas, após ataques do grupo terrorista Estado Islâmico, na região de Cabo Delgado. Em uma guerra entre países, o caráter destrutivo é muito maior, porque se usa todo o poder das Forças Armadas. Este é um conflito parecido com a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã ou os bombardeios alemães de cidades europeias na Segunda Guerra Mundial. As consequências nesses casos são mais sérias.

A ONU já fala em mais de 600 civis mortos na Ucrânia…
Nas estatísticas de óbitos, é sempre bom esperar a investigação para saber ao certo. Em um conflito, a guerra de informações também é muito grande. Há ainda várias nuances a se considerar. Quando se fala em mil civis mortos, por exemplo, isso seria um número bastante significativo. Mas é muito diferente se forem mil soldados. Nesse caso, seria um número alto, mas mais plausível, porque muitos militares russos também já devem ter morrido. É preciso investigar os fatos para se ter certeza.

Putin será preso se o TPI sentenciá-lo?
Ainda é cedo para falar em condenação. A ação penal nem sequer começou. Mas esse é um dos problemas que enfrentamos. Quando eu expedi o mandado de prisão contra o sudanês Omar Bashir, em 2009, eu dizia que seria preciso esperar, porque ele ainda estava no poder. Mas eu também disse que, no dia em que ele não estivesse mais no cargo, então com certeza seria enviado ao tribunal. Após um golpe de estado, em 2019, Omar Bashir foi detido por outras acusações, ligadas às leis de seu país. Neste momento, estão ocorrendo várias conversas entre o atual governo do Sudão e o TPI. Caso ele seja entregue, ficará preso em Haia. Então, o direito penal tem o seu próprio andamento. Não há como queimar etapas.

Quando deu a ordem de ataque, Putin falou que era preciso iniciar uma operação militar porque estaria ocorrendo um genocídio contra a população que falava russo na Ucrânia. Esse discurso é levado em consideração pela Justiça?
Isso também será investigado, porque um promotor, por obrigação, deve olhar todos os lados. Mas ainda que se constate a existência de um genocídio, o que não parece ser o caso, isso não justificaria esta agressão. A Convenção contra o Genocídio, de 1948, impõe a todos os estados a obrigação de prevenir e de reprimir atos de genocídio. Quando essas acusações russas surgiram, em 2014 e 2015, já existiam diversos meios para apurar se havia um massacre de civis em curso na Ucrânia. Caso algo tivesse sido constatado, a Rússia não teria nenhuma dificuldade para aprovar uma resolução do Conselho de Segurança e tomar as medidas necessárias. As vítimas também poderiam ter sido evacuadas da região do Donbas, que fica no leste da Ucrânia, para a Rússia. Nada disso foi feito. Nenhuma solução pacífica foi tentada, e a Rússia não tomou qualquer iniciativa na ONU. Então, o discurso de Putin de fevereiro é uma alegação um pouco tardia e sem base nos fatos. Para iniciar uma ação militar, é preciso que antes sejam esgotados todos os demais meios. Além disso, essa operação não teria nada a ver com a invasão de todo o território da Ucrânia, como essa que está ocorrendo. No meu entender, essa alegação não tem validade alguma. Foi por isso que a Ucrânia pediu uma declaração da Corte Internacional de Justiça, que também funciona em Haia.

Nesta quarta-feira, 16, por sinal, a Corte Internacional de Justiça ordenou preliminarmente que a Rússia suspenda suas operações militares na Ucrânia. O que isso significa?
Os ucranianos solicitaram que o tribunal analisasse se havia ou não um genocídio em curso, como alegou Putin ao deflagrar a guerra. As determinações da corte não são ainda sobre a questão do genocídio. O mérito da questão não foi analisado por enquanto. Mas as decisões anunciadas foram todas no sentido de exigir que a Rússia cesse a agressão militar. A corte entendeu, portanto, que a invasão é ilegal. Era algo esperado, porque em nenhum momento a Rússia fundamentou sua alegação. Essa história de genocídio é um pouco como a das armas de destruição em massa, que serviu como pretexto para os Estados Unidos invadirem o Iraque.

Robson Fernandjes/Estadão ConteúdoRobson Fernandjes/Estadão Conteúdo“Para iniciar uma ação militar, é preciso que antes sejam esgotados todos os demais meios”
O Brasil é membro rotativo do Conselho de Segurança da ONU. Em uma entrevista coletiva, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Brasil trabalhou ativamente para impedir que a resolução tivesse a palavra “condenação”. Como a sra. vê isso?
Temos tido vários exemplos de participação muito tímida da diplomacia brasileira em diversos órgãos internacionais. Isso vale para o Conselho de Segurança, para a Assembleia Geral da ONU, para o Conselho de Direitos Humanos. É o oposto do que ocorria antigamente, quando o Brasil tinha uma posição de liderança. Falando apenas como cidadã, e não como especialista em relações internacionais ou como diplomata, o que não sou, isso é algo que lamento muito.

A sra. considera que o Brasil tem mantido sua neutralidade no conflito?
O país votou a favor da resolução da Assembleia Geral contra a Rússia, mas, fora isso, não adotou qualquer tipo de sanção contra o Kremlin. Na denúncia que 39 estados apresentaram ao TPI, falando de crimes de guerra e contra a humanidade, o Brasil não estava entre os signatários. Mas a Colômbia e a Costa Rica, que também são da América Latina, estavam. Então, eu não diria que essa seja uma posição neutra. Entendo mais o Brasil como um observador. A questão é que, em uma situação grave como essa que atravessamos, é uma atitude muito preocupante. O Brasil apenas assina documentos, como se já tivesse cumprido o seu papel. Além do mais, deixamos de ser considerados como líderes pelos demais países latino-americanos. A ministra (da Mulher, Família e Direitos Humanos) Damares Alves foi ao Conselho de Direitos Humanos e fez um discurso falando das grandes realizações do governo. Ela disse que o país tem cumprido com suas obrigações internacionais diante do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, mas todos sabemos que não é verdade.

O que o Brasil não tem feito na área da tortura?
Assim como ocorreu com outras agências que controlam a atividade pública do país, como o Ibama, o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), há um desmonte dos mecanismos de monitoramento. O país ratificou as convenções contra a tortura, que incluíam a criação de comitês com a participação da sociedade civil. Neste governo, porém, esses órgãos foram totalmente desarticulados. Não faz sentido ter uma comissão composta por três pessoas que não representam a sociedade civil para denunciar casos de tortura cometidos por autoridades públicas. É o mesmo que não ter mais o comitê. O governo tentou fazer a mesma coisa com a Anvisa, mas não conseguiu.

A sra. fez parte da comissão de juristas que elaborou um parecer a pedido da CPI da Covid. O governo brasileiro cometeu crimes durante a pandemia da Covid?
A conclusão da comissão é a de que, sim, foram cometidos crimes de direito penal comum (entre eles, crime de epidemia, charlatanismo e infração de medida sanitária preventiva). Em relação às populações indígenas e ao descaso em Manaus, esses poderiam configurar crimes contra a humanidade. Houve omissão proposital em relação aos grupos indígenas, que são vulneráveis, no sentido de deixar que eles se infectassem. O atendimento a essas populações só começou após várias liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal. No nosso entender, isso foi parte de uma política de estado de abandono das populações indígenas.

E como a sra. avalia o trabalho feito pela CPI da Covid?
A CPI foi importante na medida em que o Legislativo investigou e expôs suas conclusões, baseadas em centenas de provas. Agora, espera-se que o Ministério Público faça sua parte. A importância desse tipo de procedimento é a de mostrar que atos e omissões têm consequências e que quem causar danos será punido. No plano interno e no plano internacional, há que se lutar contra a impunidade.

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  1. E a Otan que sinalizou uma coisa e agora diz e faz outra. E o humorista q dislumbrado em ser UK Se deixou levar pelo canto da sereia (otan). Vitima só uma a população ucraniana. o resto é somente resto do mesmo saco de mer.da.

  2. Desculpe doutora mas depois de matar milhões vais para um julgamento,para que? quem vais buscar Putin na Russia? isso somente vais acontecer acaso putin for deposto?por quem?

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