MarioSabino

A condição humana

25.03.22

A semana que termina contou com quatro momentos interligados que me deixaram ainda mais convicto em relação ao Brasil.

O primeiro momento foi quando o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez abriu a boca, em declaração incompatível com as atribuições do seu cargo. Entrevistado pela Bloomberg, ele disse que teve uma conversa com Jair Bolsonaro, na qual o presidente da República afirmou que se arrependia de ter nomeado Sergio Moro ministro da Justiça e Segurança Pública. O simples fato de um ministro do STF conversar privadamente com o presidente da República, e presidente da República que é alvo de ações judiciais na Suprema Corte, já deveria ser motivo de escândalo. Mas, aparentemente, ninguém se deu conta disso. Como Gilmar Mendes vive conversando com quem não deveria, normalizou-se a coisa.

O decano do STF relatou que Jair Bolsonaro lhe disse o seguinte: “Olha, cometemos muitos erros, entre eles ter nomeado Sergio Moro. Se tivéssemos um ano de experiência antes, talvez não tivéssemos feito isso”. Gilmar Mendes, então, respondeu: “Não, presidente. Entre seus legados está ter nomeado Sergio Moro ministro da Justiça e depois tê-lo devolvido ao nada”. O escândalo, aqui, dobra de tamanho. Gilmar Mendes não poderia emitir opiniões fora dos autos sobre cidadãos julgados por ele, muito menos opiniões de caráter político. Ao atacar Sergio Moro, ele atingiu um pré-candidato à Presidência da República, intrometendo-se no processo eleitoral. Mas, outra vez, como Gilmar Mendes parece ter licença para matar com as palavras, tudo ficou por isso mesmo: na maior imparcialidade, porque parcial mesmo é o juiz que condenou Lula.

O segundo momento foi o voto do ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, contra o ex-procurador Deltan Dallagnol, que terá de pagar indenização a Lula por causa do famoso PowerPoint. Disse o ministro: “Houve excesso de poder. Atuou para além de sua competência legal. O erro originalmente de tudo isso, me parece, deveu-se àquele típico juízo de exceção que se deixou funcionar em Curitiba. Criou-se um juízo universal. Sempre fui um crítico desse funcionamento, a meu ver, anômalo. Levou-se muito tempo para reconhecer e só agora se está corrigindo o desvio”. Fiquei e continuo estupefato. No que Deltan Dallagnol excedeu-se? Como o Ministério Público é titular da ação penal, cabe a ele fazer a denúncia. Se é com tintas fortes ou fracas, vai do processo. No caso, o denunciado era um ex-presidente da República acusado de envolvimento no maior esquema de corrupção da história brasileira. Se a exibição do PowerPoint, que ilustrava a convicção do Ministério Público, foi marcante, isso deveria contar a favor do procurador. Também fiquei espantado com o fato de Deltan Dallagnol ter sido condenado na pessoa física, embora naquele momento estivesse investido no cargo de procurador. Não seria o Estado que deveria pagar a indenização por um ato funcional, assim como ocorre com os juízes? Se não estou certo nesse ponto, acho que o Direito brasileiro está errado, ao ter dois pesos e duas medidas. Quanto ao Juízo Final de Luis Felipe Salomão sobre a Lava Jato de Curitiba, é despropositado que, em ação contra um integrante do Ministério Público, um ministro estenda os seus comentários ao Poder Judiciário.  

O terceiro momento desta semana tão especial foi o tuíte do senador Renan Calheiros sobre o hacker Walter Delgatti, que roubou as mensagens do então procurador Deltan Dallagnol, propiciando que os integrantes da Lava Jato fossem considerados suspeitos por essa gente bacana que habita Brasília. O senador postou que ‘Walter Delgatti, o hacker que denunciou as delinquências da Lava Jato, mudou a história do país. Ele possibilitou as punições, ainda brandas, que estamos vendo e mostrou quem era Sergio Moro, Deltan Dallagnol e sua turma. É hora de retomar o projeto que apresentei para anistiá-lo”. Depois de o tagarela Gilmar Mendes ter usado material roubado, e interpretações de texto bastante livres, como “reforço argumentativo” para destruir a Lava Jato, Renan Calheiros homenageia o ladrão e quer anistiá-lo. Só faltou defender que Walter Delgatti, uma vez anistiado, compusesse chapa com Lula. Mas já antevejo, de qualquer forma, uma carreira política para o salafrário. Por que não? Sempre cabe mais um.

Para completar, em entrevista à rádio Super Notícia, de Minas Gerais, Lula saiu-se com esta sobre a Lava Jato: “Eu não tenho ódio, eu estou leve. Mas isso não quer dizer que eu vou esquecer o que aconteceu comigo e com a minha família. Eu ainda vou abrir alguns processos contra as pessoas que espalharam tanta mentira contra mim. Não vai ser agora, no meio da campanha eleitoral, mas vai acontecer. Eu fiquei satisfeito com a condenação de ontem no caso do PowerPoint. Eu tinha pedido 1 milhão, os juízes disseram que ele não ganha tanto assim e foram condescendentes. Mas já está bom. As pessoas que fizeram acordos com revistas, jornais, TVs, para passar informação falsa: isso não pode ficar por isso mesmo. Eu tive 13 horas de matérias contra mim no Jornal Nacional em 9 meses. A Globo deveria pedir ao Bonner que faça um editorial, dizendo que a emissora foi enganada pela força-tarefa de Curitiba. E eu espero também que o próprio Ministério Público repare essas situações, porque uma instituição dessa importância não pode fazer denúncia sem prova para ganhar manchete. Não pode acontecer de novo o que essa meninada messiânica fez contra mim”. 

“Denúncia sem prova”, “meninada messiânica”. Uma sinapse de colunista me levou ao século XVII.

Muitos anos atrás, interessei-me literariamente por Blaise Pascal, o grande matemático e filósofo francês que argumentou que acreditar em Deus seria mais racional do que não acreditar — o que, ao fim e ao cabo, seria prova da Sua existência. Ao analisar a condição humana, cega e miserável diante de um universo para o qual as explicações contribuem para que ele pareça ainda mais inexplicável, Blaise Pascal escreveu: “Imagine-se um grupo de homens acorrentados, e todos condenados à morte, dos quais alguns são degolados a cada dia à vista dos outros, os que sobram vendo a sua própria condição naquela dos seus semelhantes e, olhando-se uns aos outros com dor e sem esperança, aguardando a sua própria vez. É a imagem da condição dos homens”.

O Brasil é a mais dolorosa prova divina da condição humana.

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