Alan Santos/PR“Alguém que diz combater a corrupção pode se orgulhar de acabar com a Lava Jato e proteger a rachadinha?"

‘Como eleitor, me nego a ser palhaço’

Alvo das falanges bolsonaristas, o comediante Danilo Gentili critica as patrulhas de direita e esquerda e diz que está disposto a pagar o preço que for necessário para manter a independência de seu trabalho
25.03.22

Em uma era na qual influenciadores calibram suas postagens para “lacrar” ou evitar o “cancelamento” nas redes sociais, o apresentador e comediante Danilo Gentili angariou milhões de seguidores com uma postura pouco usual para quem faz das plataformas digitais uma ferramenta de trabalho. “Quem não gostou, o unfollow é serventia da casa”, tuitou ele em maio de 2019, recomendando à turma da patrulha que simplesmente deixasse de segui-lo. Embora tivesse recebido Jair Bolsonaro naquele mesmo mês em seu talk-show no SBT, o humorista já enfrentava ataques virtuais das claques bolsonaristas, as mesmas que o incensavam quando as piadas tinham como alvo os adversários políticos do atual chefe do Planalto. Bastou que ele criticasse o escândalo da rachadinha envolvendo o filho 01 de Bolsonaro e a tentativa de indicar o 03 como embaixador nos Estados Unidos, para que as redes de Gentili fossem invadidas por ataques de todo tipo.

O comediante de 42 anos, que já foi agredido e condenado por injúria ao se indispor com petistas, sofreu neste mês o mais duro golpe do bolsonarismo — a tentativa de censura ao filme Como se Tornar o Pior Aluno da Escola”, recém-lançado nas plataformas de streaming. Na esteira de bordoadas desferidas por figuras como o secretário especial de Cultura, Mario Frias, que viram apologia à pedofilia em uma das cenas, o Ministério da Justiça mandou tirar a comédia do ar, mas teve de voltar atrás, diante da reação negativa, e apenas reclassificou o filme. A Crusoé, Danilo Gentili fala sobre a hipocrisia por trás da patrulha, aponta as semelhanças e diferenças da perseguição de agora em relação à que sofreu durante os governos do PT e reitera que está disposto a pagar o preço que for pela independência de seu trabalho. “Eu sou comediante, não militante. Embora essa seja a minha profissão, como eleitor, eu me nego a ser palhaço. Se prometeu e não cumpriu, deve ser cobrado e criticado”. Eis a entrevista:

Você mantém até hoje em destaque na sua conta no Twitter um post em que ironiza a patrulha contra aqueles que cobram os políticos. Imaginava que um dia a patrulha bolsonarista poderia resultar em tentativa de censura, como ocorreu com seu filme neste mês?
Na real eu postei isso em maio, mas o vídeo (que acompanha o tuíte) é de 2018, antes da eleição. Eu já estava prevendo que isso iria acontecer e, antes mesmo de o Bolsonaro ganhar, já estava deixando um registro de que isso aconteceria, e de que eu me manteria independente, como sempre fui. Eu sou comediante, não militante. Embora essa seja a minha profissão, como eleitor eu me nego a ser palhaço. Se prometeu e não cumpriu, deve ser cobrado e criticado.

A acusação é a de que uma cena do seu filme conteria apologia à pedofilia. É um discurso hipócrita, já que a turma que acusa é a mesma que apoia um presidente que já defendeu a redução da maioridade penal para 14 anos, exatamente a classificação etária estipulada pelo governo para o filme antes da polêmica?
Algum discurso bolsonarista não é hipócrita? Cito algumas outras coisas que destoam bem: um cristão pode dizer que deseja câncer, tortura ou fuzilamento para alguém? Alguém que diz combater a corrupção pode se orgulhar de acabar com a Lava Jato e proteger a rachadinha? Alguém que se diz contra a mamata pode flertar com (a ideia de) transformar o filho em embaixador nos Estados Unidos e liberar bilhões para o fundo partidário em um momento em que o país está quebrado? São muitos exemplos, não é?

Pela lógica dos ataques feitos a você, quais filmes aclamados pela direita bolsonarista deveriam ser censurados pelo governo?
Se eu fosse eles, censuraria aquele episódio do Pica-Pau motorista, em que ele fala sobre “os rachadores”. Isso daria ótimos memes.

Alan Santos/PRAlan Santos/PR“Eu sou comediante, não militante. Se prometeu e não cumpriu, deve ser cobrado e criticado”
Depois da tentativa de censura, o filme entrou para a lista dos mais assistidos na Netflix. Por que as autoridades brasileiras continuam acreditando que a censura é a melhor solução?
Essa eu agradeço ao Mario Frias. Depois dizem que ele não fez nada para incentivar o cinema nacional. Meu filme, pelo menos, ele ajudou demais.

Qual filme você recomendaria hoje ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Justiça, Anderson Torres?
Acho que seria bom assistirem a uma comédia para relaxarem e refletirem. Eu recomendo “O mentiroso”, de John Kerry. Desculpe, Jim Carrey (o comediante faz troça com um episódio envolvendo Bolsonaro: no final do ano passado, o presidente trocou o nome do enviado especial dos Estados Unidos para questões climáticas, John Kerry, pelo do ator Jim Carrey).

Como um dos principais influenciadores do país, como você acha que a disseminação de notícias falsas deve ser combatida nas redes sociais?
Desinformação se combate com informação, não com censura. E eu acho que a imprensa brasileira está excelente na fiscalização das notícias falsas espalhadas pelo governo Bolsonaro. É uma pena que quando as notícias falsas vinham dos governos Lula e Dilma, grande parte da imprensa brasileira fingia que não via nada e muitos ainda as corroboravam. Creio que foi ali que começou esse mal. Será que, se o Lula voltar, teremos esse mesmo empenho da maior parte da classe jornalística?

A partir de qual momento você percebeu que também era alvo do chamado “gabinete do ódio”?
A partir da posse. Ali, o patrulhamento começou. Ou melhor, mudou de lado, pois eles só continuaram fazendo o que o governo anterior já fazia antes.

Das brigas que já travou com petistas, uma delas, envolvendo a deputada Maria do Rosário, resultou em condenação na primeira instância com pena de prisão em regime semiaberto. Quais diferenças você enxerga entre as reações de petistas e bolsonaristas aos seus comentários?
A diferença que eu vejo é que, quando é o governo Bolsonaro censurando, ou os bolsonaristas atacando o mainstream brasileiro, jornalistas e artistas ficam contra e apoiam a vítima. Porém, quando é o governo PT e os petistas fazendo igual, muitos que dizem lutar pela liberdade ignoram e ainda apoiam a censura. Eu vivi isso na pele muitas vezes. Tudo isso é bem recente e tem vasto registro. Por exemplo: eu já fui censurado oficialmente muitas vezes pelos governos Lula e Dilma. Eu já fui condenado à prisão por rasgar uma censura do governo do PT. Eu já estive na lista negra do governo PT. Já fui agredido por seguranças da Dilma no Congresso. Nada disso nunca virou uma linha no Jornal Nacional. Aliás, quando eu recebi uma censura da Maria do Rosário e rasguei, o próprio (Fabio) Porchat e seus parceiros no programa no (canal) GNT me condenaram pelo meu protesto e relativizaram completamente a censura petista contra mim. Procure assistir.

Adriano Vizoni/FolhapressAdriano Vizoni/Folhapress“Eu já fui condenado à prisão por rasgar uma censura do governo do PT. Eu já estive na lista negra do governo do PT”
E agora…
Quando foi o Bolsonaro censurando, virou o que virou. E ainda bem! É isso mesmo que tem que ser feito. Só lamento que, às vezes, a fiscalização e a luta pela liberdade valham para um lado só. Posso dar outro exemplo recente: faz um ano que os deputados bolsonaristas pediram minha prisão ao STF e, em seguida, pediram a censura das minhas redes. Isso é gravíssimo. Mais grave que essa censura do filme. Não virou notícia na GloboNews nem no Jornal Nacional. Será que. por que agora tinha um global (Porchat) na cena, isso mereceu destaque? Se analisarem o Jornal Nacional, nem citam o meu nome. E fui eu quem o ministro da Justiça citou nesse episódio. Eu sempre digo: o problema nunca é o que se fala ou o que se faz, sim quem fala e quem faz. Isso não é saudável para se construir valores consistentes. Precisamos pensar mais em defender alguns valores absolutos e menos em defender discursinhos ou patotas.

O combate à corrupção, ao fisiologismo, aos privilégios e até aos excessos do politicamente correto virou uma falsa promessa do presidente da República. Quais princípios movem o governo hoje?
O princípio de sempre: manter e aumentar os privilégios da classe política à custa do suor do trabalhador e da miséria das pessoas comuns.

Seu nome chegou a ser lançado como candidato a presidente em tom de brincadeira no ano passado, depois que a Câmara dos Deputados pediu a sua prisão por causa de um tuíte contra a PEC da imunidade parlamentar. Você tem pretensões eleitorais?
Em 2026, eu serei presidente.

Está falando sério ou é piada? Pretende se candidatar?
Em 2026, eu te conto. (risos)

Você acredita na chance de vitória de uma candidatura presidencial alternativa ou o Brasil está fadado a escolher entre Lula e Bolsonaro nas eleições de outubro?
Quem sobrevive com dignidade no Brasil o faz por meio da fé. Então, eu vou manter a minha fé neste momento e dizer que nenhum dos dois será o próximo presidente. Merecemos tentar algo novo, de novo e de novo, quantas vezes for preciso.

O que a história do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que fez carreira como humorista e comediante e hoje lidera seu país contra a invasão russa, revela sobre o potencial político de um profissional como ele?
O humorista vive de pensar e analisar tudo que acontece ao seu redor o tempo todo. Está sempre focado no que está errado e em como ele pode fazer isso virar algo bom para o público. Stand-up lida direto com a plateia. A ligação que um humorista tem com os anseios da população é forte. O tempo todo estamos em busca de conexão com quem nos assiste: as pessoas comuns. A verdade nua e crua é a principal matéria-prima para qualquer boa piada, e não existe humor a favor. Um humorista verdadeiro sabe que, se privilegiar um lado político, fará um péssimo trabalho, pois não existe graça em ser militante. Então, se você pegar essa reverência que um humorista tem pela verdade e juntá-la com a independência de pensamento, terá uma mistura bem inconveniente para qualquer tipo de status quo que precisaria ser mudado. 

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