DiogoMainardina ilha do desespero

O homem que come gente

25.03.22

“A grande obra da arte nacional”. Mario Sabino referia-se ao powerpoint desenhado pela Lava Jato, com os feitos de Lula. Ele está certo, claro. Entre o powerpoint e o Abaporu, penduro o powerpoint em minha parede. Já era o quadro mais revolucionário de nossa história. Agora o STJ transformou-o também no mais perseguido, condenando Deltan Dallagnol a pagar por sua obra-prima.

Os manuais de pintura ensinam que Abaporu, em tupi-guarani, quer dizer “o homem que come gente”. Tarsila do Amaral retratou um canibal em seu ambiente. O powerpoint pintado por Deltan Dallagnol tem o mesmo tema: o antropófago microcéfalo que, com as mãos desproporcionalmente grandes e um nariz excepcional para farejar suas predas, devora carne humana. As cores do quadro de Tarsila do Amaral são as da bandeira brasileira: o cacto verde, o sol amarelo, o céu azul. O powerpoint de Lula irradia os mesmos tons. Não pode haver paisagem mais genuinamente brasileira do que aquela. Só que, no lugar do cacto, há o verde do departamento de propinas da Odebrecht.

Gilmar Mendes disse a Jair Bolsonaro que seu principal legado foi “ter nomeado Sergio Moro ministro da Justiça e depois tê-lo devolvido para o nada”. Xico Graziano respondeu-lhe: “Gilmar Mendes é, ele sim, um nada. Nomeado por FHC, deliciou-se na soltura de Lula e virou bajulador de Bolsonaro. Perdeu o rumo, perdeu a moral, perdeu credibilidade”. Mas o fato é que a frase do ministro do STF tem de ser inserida num contexto histórico. Ela revela aquele desejo de expurgo que persegue a arte desde o passado mais remoto, dos livros queimados por Savonarola às estátuas explodidas pelo Isis, passando pelos quadros confiscados pelos hierarcas nazistas. Ao punir o powerpoint realizado por Deltan Dallagnol, com a imagem das descobertas da Lava Jato, o que se quer é apagá-lo para sempre, é cancelar sua existência, é transformá-lo em nada.

Deltan Dallagnol declarou estar INDIGNADO com a decisão do STJ – assim mesmo, aos gritos. Eu grito também. Há uns quatro anos. Mas é preciso reconhecer que o outro lado gritou mais alto. O cancelamento da Lava Jato é uma obra coletiva, que envolveu grande parte da sociedade brasileira. Eu nunca imaginei que Gilmar Mendes pudesse se tornar pop. Mas ele foi capaz de congregar lulistas, bolsonaristas, valdemaristas, empresários, magistrados, generais e a imprensa na corrente revanchista que incendiou o powerpoint. Ele ganhou, eu perdi. A maior obra de arte brasileira foi carbonizada. Virou um nada. Os canibais podem voltar a devorar suas presas, porque não sobrou ninguém para expor sua selvageria.

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