Luis Fortes/MECO ministro Milton Ribeiro com o pastor Arilton: trocar ouro por verba pública é novidade nos manuais da corrupção brasiliense

Propina divina e dourada

Um novo escândalo explode em Brasília. E, desta vez, com ar de ineditismo: pastores-lobistas ligados ao ministro da Educação cobram em ouro e negociam Bíblias para facilitar liberação de verbas para prefeituras
25.03.22

Marca registrada do governo de Jair Bolsonaro, a profusão de “gabinetes paralelos” que sequestram o comando de órgãos importantes da administração federal atingiu um patamar inimaginável com a captura do Ministério da Educação por pastores evangélicos. Sob o ministro Milton Ribeiro, que é pastor presbiteriano, lobistas religiosos transformaram o MEC em um balcão de negócios, com a finalidade de obter vantagens financeiras sobre prefeitos, em troca de facilidades na liberação de verbas para municípios construírem creches e escolas e comprarem equipamentos de informática. O esquema tinha tudo para ser mais um típico escândalo de corrupção com o qual o brasileiro já está habituado há décadas, não fosse um detalhe: além de dinheiro, os pastores pediram ouro e até ofereceram um negócio envolvendo exemplares da Bíblia para agilizar repasses do ministério, onde tinham trânsito livre.

O pedido inusitado de propina foi revelado pelo prefeito Gilberto Braga, de Luís Domingues, uma cidade de 7 mil habitantes encravada no norte do Maranhão, perto da divisa com o Pará. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada na última terça, 22, ele disse que o pastor Arilton Moura pediu 15 mil reais para dar entrada em um pedido da prefeitura no MEC e, depois, um quilo de ouro mediante a liberação dos recursos pela pasta – a verba seria de 10 milhões de reais. “Ele (Arilton Moura) disse: ‘Traz um quilo de ouro para mim’. Eu fiquei calado. Não disse nem que sim nem que não”, afirmou Braga, que disse ter recusado a proposta. Segundo ele, a conversa ocorreu em abril de 2021, durante um almoço em Brasília, logo após uma reunião no MEC com o ministro Milton Ribeiro. O quilo do ouro, estimado em 300 mil reais, representava 3% do valor a ser liberado.

Arilton Moura é braço direito do pastor Gilmar Silva dos Santos, líder de uma vertente da Assembleia de Deus chamada Ministério Cristo para Todos, sediada em Goiânia. A dupla se aproximou do governo Bolsonaro antes mesmo da posse de Milton Ribeiro no MEC, em julho de 2020, pelas mãos do deputado João Campos, do Republicanos de Goiás, que também é evangélico e defensor fervoroso do presidente no Congresso — como mostrou Crusoé, o parlamentar emprega a filha de Gilmar em seu gabinete. Antes de começar a intermediar reuniões e demandas de prefeitos com o ministro da Educação, em troca de propina, o pastor já havia tido duas audiências com Bolsonaro no Palácio do Planalto, em 2019.

Luis Fortes/MECLuis Fortes/MECOs pastores costumavam participar das reuniões com prefeitos no MEC
Em uma conversa com prefeitos que foi gravada, o ministro Milton Ribeiro disse que a prioridade para os pastores atendia a um “pedido especial que o presidente da República” fez a ele. “A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”, disse o chefe do MEC na reunião. O áudio foi revelado pelo jornal Folha de S.Paulo na última segunda, 21. Logo depois, Ribeiro divulgou uma nota tentando isentar Bolsonaro. Disse que o presidente “não pediu atendimento preferencial a ninguém” e que todas as reuniões foram “eminentemente técnicas”. O ministro não soube explicar por qual motivo os pastores se sentavam ao seu lado nos encontros oficiais – foram ao menos 19 compromissos, com 44 prefeitos.

Entre os políticos que chegaram até a Esplanada dos Ministérios por influência da dupla está Kelton Pinheiro, prefeito de Bonfinópolis, cidade de 10 mil habitantes situada a 40 quilômetros de Goiânia. A Crusoé, ele relatou em detalhes como foi a abordagem dos pastores lobistas, que foram indicados com o propósito de facilitar o acesso ao ministro da Educação. Primeiro, conta o prefeito, ele se encontrou com Gilmar e Arilton no escritório da igreja, na capital goiana. Foi quando teria havido o primeiro pedido de vantagem indevida. “Eles disseram para mim: a gente é amigo do ministro, ele também é evangélico, a gente está ajudando, intermediando, levando os prefeitos lá para conhecer o ministério’. Eu falei que não tem almoço de graça, né? Qual é? Daí eles responderam: ‘O que a gente quer é só uma oferta para a igreja, que você compre umas Bíblias da gente, que isso vai ser usado para construção de um templo”, disse Pinheiro.

A proposta era para que o prefeito de Bonfinópolis comprasse mil exemplares da Bíblia por 50 reais cada. Estava implícito que a contribuição o ajudaria a conseguir recursos federais para construir uma escola nova na cidade. Pinheiro disse que não tinha condições de efetuar a compra, mas os pastores ficaram com o contato dele. Poucos dias depois, conta o prefeito, uma mulher telefonou dizendo ser do MEC. Ela pediu os dados de Pinheiro para uma reunião que ocorreria com o ministro na semana seguinte. Era março de 2021. O prefeito foi a Brasília e assistiu a uma apresentação de Milton Ribeiro no auditório do ministério junto com representantes de outros municípios. Na mesa ao lado do ministro, estavam os pastores Arilton e Gilmar.

Cleia Viana/Câmara dos DeputadosCleia Viana/Câmara dos DeputadosO deputado goiano João Campos, também evangélico e da base do governo, é outro que costumava participar dos encontros
O ministro discorreu sobre a política do MEC, afirmou que o governo Bolsonaro estava atuando para combater a corrupção e disse que o ministério estava de portas abertas para os prefeitos que haviam acabado de assumir seus mandatos. Em seguida, passou a palavra para outros dirigentes da pasta, entre eles Marcelo Lopes da Ponte, ex-chefe de gabinete do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e atual presidente do bilionário Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, de onde sai o dinheiro repassado aos municípios para a construção de creches e escolas. Depois do encontro, lembra o prefeito Pinheiro, os pastores convidaram os prefeitos para um almoço no restaurante Tia Zélia, muito frequentado por políticos e funcionários públicos, a menos de dez minutos da Esplanada. “De repente, quando já havia terminado a refeição, o pastor Arilton se aproximou e me disse: ‘Papo reto, direto com você. Tenho condições de atender seu pleito, liberando uma escola de 7 milhões para o seu município. Mas eu preciso de 15 mil reais hoje na minha mão”, afirma Kelton Pinheiro. O prefeito disse ter recusado a proposta na hora. Até hoje ele espera o MEC liberar os recursos que solicitou para sua cidade.

Uma semana depois, foi a vez do prefeito José Manoel de Souza, de Boa Esperança do Sul, no interior de São Paulo, experimentar o mesmo tipo de abordagem. O roteiro foi igual. Discurso polido do ministro dentro do MEC e, depois, cobrança de propina pelos pastores no restaurante, desta vez no terraço de um hotel. “O Arilton me chamou para fora do restaurante e falou: ‘Prefeito, sabe como funciona, não dá para ajudar todos os municípios. Eu tenho uma coisa aqui que consigo liberar agora, uma escola profissionalizante. Só que você sabe como funciona. Você faz um depósito agora de 40 mil reais e hoje mesmo libero a escola para você’. Daí eu levantei, bati nas costas dele e disse: ‘Muito obrigado, senhor Arilton, mas não é dessa forma que eu trabalho'”, relatou Souza a Crusoé.

Nos dois casos, os prefeitos apontam ainda a participação de uma mulher chamada Nely Carneiro Jardim. Responsável por fazer a ponte entre os políticos e os pastores engolfados no escândalo do MEC, ela tem uma longa passagem como assessora na Câmara dos Deputados, nos gabinetes de Sarney Filho, atual secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, e de parlamentares do PL, do PP e do MDB, até ser exonerada em abril do ano passado. Procurados, nem ela nem os dois pastores acusados de cobrar propina para facilitar a liberação de recursos do MEC retornaram os contatos.

ReproduçãoReproduçãoO prefeito Kelton Pinheiro no MEC: ele diz que o pastor Arilton pediu R$ 15 mil para fazer andar um processo de liberação de verba para Bonfinópolis, Goiás
Já Milton Ribeiro se atrapalhou ainda mais ao ser confrontado com a sequência de denúncias contra os pastores que tinham acesso livre ao seu gabinete e eram elogiados por ele nos eventos. Em entrevistas a emissoras de TV, o ministro disse que ele próprio encaminhou à Controladoria-Geral da União, em agosto do ano passado, denúncia recebida na pasta sobre possíveis ilegalidades envolvendo intermediários dentro do ministério. O alvo principal era o pastor Arilton Moura, que continuou frequentando o MEC mesmo assim. O ministro alega que manteve o contato com o pastor para não atrapalhar a investigação em curso, que era sigilosa. No mês passado, a CGU concluiu que não houve participação de agente público e enviou o caso para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Após as denúncias virem à tona nesta semana, uma nova investigação foi aberta.

O escândalo do MEC também motivou a abertura de uma apuração na Procuradoria-Geral da República, que, se quiser, pode avançar na apuração quebrando o sigilo das contas bancárias que os pastores indicavam para os prefeitos fazerem o depósito. Enquanto isso, Milton Ribeiro terá de sobreviver a um intenso processo de fritura não apenas da oposição, mas também de uma ala da bancada evangélica que não chancelou sua indicação para o MEC, em 2020, e dos líderes do Centrão, que viram na crise uma excelente oportunidade para derrubar Ribeiro e assumir de vez o controle de uma das pastas mais cobiçadas da Esplanada. Por ora, o chefe do Planalto tem dito que um dos ministros preferidos da primeira-dama Michelle Bolsonaro segue firme no cargo.

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