Um novo teste supremo
Por meses a fio, um grupo de sete procuradores do Ministério Público Federal se debruçou sobre depoimentos, extratos bancários, registros de ligações telefônicas e relatórios de perícias, para demonstrar a existência de um esquema de desvio de recursos públicos no antigo gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Com base no material reunido ao longo de quatro anos de investigação, na última terça-feira, 22, eles finalmente protocolaram na Justiça uma ação em que pedem a condenação do presidente da República e de Walderice Santos da Conceição, nomeada como sua assessora, por improbidade administrativa.
A acusação é de que Walderice, conhecida como Wal do Açaí, não trabalhava de fato para Bolsonaro e devolvia até 95% dos salários que recebia. Na reta final da elaboração da ação, um assunto preocupou os procuradores envolvidos no caso: como a nova Lei de Improbidade Administrativa, aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro em outubro do ano passado, impactaria o caso. Foi preciso adaptar as estratégias em curso até então para evitar brechas que poderiam beneficiar os dois acusados.
Não há dúvida de que o novo texto afrouxou a lei. Por isso, foi alvo de pesadas críticas de entidades de combate à corrupção. Uma das maiores inquietações dos procuradores era com relação a um novo dispositivo que proibiu a imposição do ônus da prova ao réu. Seria fácil para eles exigir, por exemplo, que Wal do Açaí comprovasse que trabalhou na Câmara – como ela jamais pisou em Brasília, o esquema criminoso seria imediatamente comprovado. Mas, diante do novo texto, foi preciso demonstrar o chamado “fato negativo” – ou seja, comprovar que Walderice não dava expediente, embora recebesse mensalmente da Câmara.
Além de impactar as investigações que já estavam em andamento, como foi o caso da apuração sobre o presidente, as alterações da Lei de Improbidade Administrativa também servem de subterfúgio para que réus anulem processos e até condenações. Aprovada graças à união de petistas, bolsonaristas e deputados do Centrão, a nova versão da lei passou a prever que agentes públicos só podem ser punidos se houver comprovação de que eles agiram com dolo, ou seja, intenção de se beneficiar do erário. Danos causados por imprudência, imperícia ou negligência, portanto, não podem mais ser configurados como improbidade. Os prazos de prescrição também mudaram. Estão muito mais curtos, facilitando a vida dos investigados.
A partir do momento em que a lei entrou em vigor, muitos réus de ações de improbidade e até condenados recorreram ao Judiciário com o argumento de que a nova lei deveria retroagir para beneficiá-los. Instalou-se, então, uma gigantesca controvérsia, com decisões díspares a respeito da possibilidade ou não de a lei retroagir para livrar acusados. No Superior Tribunal de Justiça, corte para onde confluem recursos relacionados a casos de improbidade, os ministros decidiram segurar a análise dos recursos, à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a situação.
“Se o Supremo entender que a lei deve retroagir, haverá impacto devastador nas ações em andamento, o que pode deixar sem julgamento casos de grande relevância que deveriam ser analisados”, afirma o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Ubiratan Cazetta. Ele menciona dados do Conselho Nacional de Justiça, que estimam em mais de 5 mil dias o tempo médio de tramitação de ações de improbidade no país. “Com base nesse dado, é possível concluir que estaria quase tudo prescrito. Essa é uma mudança muito abrupta na regra do jogo”, diz.
No último dia 16, ministros que compõem as turmas de direito público do STJ receberam um memorando do gabinete de Alexandre de Moraes, do STF. O documento comunicava oficialmente o STJ sobre uma decisão de Moraes que suspendeu a tramitação de todos os recursos especiais em que os acusados pleiteiam benefícios retroativos da lei. O Supremo reconheceu a repercussão geral da discussão e, agora, será preciso esperar que a corte decida se o novo texto vale ou não para quem já havia sido condenado.
O despacho de Moraes repercutiu em todo o sistema judicial brasileiro. Na última terça-feira, 22, o Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo decidiu por unanimidade devolver às promotorias de origem todos os inquéritos em que havia pedidos de arquivamento com fundamento na retroatividade da nova Lei de Improbidade. O STJ também enviou os casos de volta aos tribunais de origem até que haja a decisão do Supremo — um desses processos é o do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, marido da atual ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, do PL. Arruda foi condenado em duas instâncias por envolvimento no esquema do mensalão do DEM e recorreu ao STJ. Como o artigo que baseou a condenação foi eliminado, ele entende que já não há mais razão para ser punido.
No Supremo, a aposta é que Alexandre de Moraes votará para impedir que as facilidades da nova lei valham para os casos antigos. Um sinal disso está em uma liminar concedida por ele em fevereiro, em uma ação direta de inconstitucionalidade relacionada à nova lei, que questionava a atuação do Ministério Público em ações de improbidade. Adotando uma posição mais conservadora, na contramão do que poderia favorecer os envolvidos em malfeitos, Moraes concedeu uma liminar que mantém o poder de procuradores estaduais e advogados da União de denunciar à Justiça casos desse tipo.
O veredicto do STF – o julgamento final caberá ao plenário da corte — terá impacto quase definitivo, por exemplo, nas ações relacionadas à Lava Jato. Como a operação começou em 2014 e a maioria das fases envolve crimes cometidos anos antes, uma parte significativa dos casos já poderia ser considerada prescrita. O grande alcance da operação, que mirou lideranças políticas de diversos partidos, é uma das explicações de especialistas para a aprovação da nova lei. “Atacar a Lei de Improbidade Administrativa é atacar toda a sistemática legislativa de combate à corrupção”, diz o advogado Daniel Lança, professor da Fundação Dom Cabral e um dos especialistas que colaboraram com a Transparência Internacional na elaboração das chamadas Dez Medidas contra a Corrupção. “É mais um ataque. Muita gente poderosa, como o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, está pessoalmente envolvida nisso e quer contra-atacar. Como o ataque da Lava Jato à corrupção foi forte, é claro que o contra-ataque seria na mesma proporção”, afirma Lança. O Supremo se verá, portanto, diante de mais uma encruzilhada: terá que decidir entre o interesse dos cofres públicos e o desejo dos enrolados de sempre, que estão cada vez mais à vontade.
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