RuyGoiaba

O humor como papel tornassol

01.04.22

Summer of Soul, documentário dirigido pelo baterista e produtor musical Questlove, é um belo filme sobre um evento que, por não ser Woodstock, ficou relegado ao esquecimento por décadas: a edição de 1969 do Festival Cultural do Harlem, realizado entre junho e agosto daquele ano no mais tradicional bairro negro de Nova York. A escalação do festival era uma seleção de quase tudo que a música negra americana produzia de melhor na época: Stevie Wonder, Nina Simone, Mahalia Jackson, B.B. King, Sly & the Family Stone e outros. E a restauração de imagens e sons feita para o documentário é primorosa.

Essa grande celebração da cultura negra foi merecidamente premiada com o Oscar de melhor documentário de longa-metragem no último domingo, 27 — mas quase ninguém comentou a vitória na imprensa ou nas redes sociais. Porque ninguém dá muita bola para documentários? Não: porque era exatamente esse o prêmio que Chris Rock estava anunciando quando levou aquele tapa de Will Smith, logo depois de o comediante ter feito uma piada comparando a careca de Jada Pinkett-Smith — mulher do ator, que sofre de alopecia — a Demi Moore de cabeça raspada no filme G.I. Jane (no Brasil, Até o Limite da Honra). O episódio, que obviamente virou o grande assunto da noite, obnubilou até o filme pelo qual Smith levou Oscar de melhor ator, King Richard, no qual ele interpreta o pai das tenistas campeãs Venus e Serena Williams.

Foi interessante e instrutivo observar nas redes as reações à agressão. Eu vi, por exemplo, gente que costuma fazer piadas com a facada em Jair Bolsonaro, ou com sua bolsa de colostomia, muito horrorizada com o fato de um humorista fazer piada aludindo a problemas de saúde de outra pessoa. Vi alegadas feministas aprovando o machão que foi tirar satisfação em nome da donzela ultrajada e incapaz de se defender — comportamento 100% progressista, ao menos para os padrões do século 18 (podia ter sido um tapa literal com luva de pelica, seguido de desafio a um duelo com pistolas: ficaria mais elegante e mais cinematográfico). Vi também, e como vi, uma suposta militância negra vibrando com o tapa, como se Chris Rock fosse branco e não tivesse feito da crítica ao racismo o pilar de toda a sua carreira como comediante: pelo visto, basta uma piada ruim, ou simplesmente infeliz, para que se casse a carteirinha de minoria, mais ou menos como aconteceu com Dave Chappelle não muito tempo atrás.

Tudo isso foi antes de o próprio Will Smith vir a público desmentir seus defensores mais encarniçados, pedindo desculpas a Chris Rock e dizendo que sua atitude tinha sido, sim, “inaceitável e imperdoável”. Não consigo imaginar esse pessoal que descrevi no parágrafo anterior achando bacana, por exemplo, Jair Renan Bolsonaro esbofetear Gregório Duvivier por causa de algum chiste envolvendo o pai dele: além da agressão óbvia, o gesto também seria visto como censura ou fascismo. Como disse uma amiga, seria bem mais honesto admitir que o verdadeiro problema é fazer piada com qualquer coisa de que gostamos — e está liberado bater em comediante, dependendo dos alvos que ele escolher.

Vocês se lembram das suas experiências no laboratório de química do colégio? O tapão e suas repercussões me fizeram pensar no velho papel tornassol, aquele que nós usávamos para testar o pH de uma solução: vermelho se ela fosse ácida, azul se fosse alcalina. Cheguei à conclusão de que o humor é uma espécie de tornassol: o contato com ele serve para mostrar direitinho as verdadeiras cores de uma porção de gente por aí. Como disse outro amigo, aqueles que defendem o uso da porrada para calar pessoas de quem não gostam são bolsonaristas na alma, ainda que se neguem a admitir isso e votem em outros candidatos.

De todo modo, fica a advertência para todos: piadas matam, mas agressão física é de boa. Só evite coisas como colocar bomba na sede do Porta dos Fundos ou matar os cartunistas do Charlie Hebdo, porque o exagero nunca é de bom-tom.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, embora haja outros candidatos bons, meu prêmio vai para a cobertura do Oscar feita pelo Jornal Nacional. “Tirando esse episódio lamentável [o tapa de Will Smith em Chris Rock], a cerimônia do Oscar marcou o reencontro com o glamour de Hollywood”, disse Renata Vasconcellos na edição desta segunda (28). Fiquei imaginando o JN em 1963: “Tirando o tiro que JFK recebeu na cabeça, o presidente dos EUA foi recebido com uma grande festa em Dallas”. Ou um repórter perguntando à viúva de Abraham Lincoln, depois do assassinato no teatro, se ela havia gostado da peça — convenhamos, não é muito diferente do pessoal que hoje pergunta à vítima de uma enchente “como você se sentiu?”.

Divulgação/InstagramDivulgação/InstagramBonner e Renata Vasconcellos no JN, desaprovando episódios lamentáveis

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