Adriano Machado/CrusoéGilmar é dono ou sócio de propriedades que valem, no mínimo, 25 milhões de reais

O fazendeiro Gilmar

A história da expansão das fazendas do ministro Gilmar Mendes, do STF, em Mato Grosso: ele ‘ganhou’ da Assembleia Legislativa o direito a uma área equivalente a mais de 500 campos de futebol; hoje, vizinhos acusam a agropecuária do clã de avançar sobre suas terras
07.04.22

Nos rincões do Mato Grosso, a família de Gilmar Mendes é historicamente conhecida por ostentar poder e por ser dona de terras a perder de vista. O avô, o pai e o irmão caçula do ministro do Supremo Tribunal Federal foram prefeitos de Diamantino, seu município natal, que fica a 200 quilômetros ao norte da capital Cuiabá e concentra o maior quinhão fundiário do clã. Embora tenha se mudado ainda jovem para Brasília, onde ingressou no serviço público e ocupou cargos no governo até se tornar juiz da mais alta corte do país, em 2002, Gilmar nunca se afastou dos negócios particulares na região. Além das fazendas herdadas, ele se envolveu diretamente na multiplicação do patrimônio rural da família, que ganhou terras públicas no estado e hoje é questionada na Justiça por supostamente ter avançado sobre uma propriedade alheia.

Um levantamento feito por Crusoé a partir de documentos registrados em cartório revela que o decano do STF tem, hoje, participação em seis grandes fazendas no estado. As propriedades somam 7,2 mil hectares – algo como 7 mil campos de futebol – e valem, juntas, ao menos 25,3 milhões de reais, a se considerar os valores registrados nas matrículas dos imóveis. As terras ficam em Diamantino e em um município vizinho, Alto Paraguai, onde o ministro já foi alvo de uma ação por suposto uso irregular de agrotóxicos em plantações em área de proteção ambiental – ele nega. Em 2019, as três maiores fazendas foram transferidas para a GMF Agropecuária Ltda, empresa de cultivo de soja, arroz, milho, cana de açúcar e criação de gado, aberta em julho do ano anterior pelo ministro, em sociedade com parentes. A GMF tem como sócios o próprio Gilmar, dois irmãos dele, Francisco Mendes e Maria da Conceição Mendes, e um cunhado, Airton França.

Ao longo das últimas décadas, o rol de propriedades contou com outras fazendas que já foram vendidas pelo ministro e por seus irmãos. Uma delas merece atenção especial, por entrelaçar interesses públicos e privados. Em setembro de 1999, quando era assessor jurídico da Casa Civil da Presidência da República, no governo de Fernando Henrique Cardoso, Gilmar foi contemplado com uma decisão da Assembleia Legislativa do Mato Grosso que autorizou a “regularização da ocupação” de uma área de 507 hectares, o equivalente a mais de 500 campos de futebol. Batizada de “Fazenda Paraguai VII”, a propriedade fica encravada entre outras áreas que já pertenciam à família do ministro em Alto Paraguai, próximo ao rio que empresta o nome à cidade. No mesmo dia, o irmão caçula de Gilmar, Francisco Ferreira Mendes Júnior, conhecido como Chico Mendes, obteve autorização para ocupar uma fazenda vizinha, de mesmo tamanho.

As duas resoluções foram aprovadas pelo plenário da Assembleia mato-grossense e assinadas pelo então presidente da casa, José Riva, e por outros dois parlamentares que ocupavam postos de comando na mesa diretora. Riva, um político influente do estado, ficou conhecido como o “maior ficha-suja do país” por acumular mais de cem processos por mau uso do dinheiro público. Juntamente com as decisões que passaram a propriedade das terras para o ministro e seu irmão, o então deputado aprovou a regularização de uma fazenda de 1,5 mil hectares para o próprio pai, na cidade de Aripuanã. Riva foi preso três vezes, entre 2015 e 2016, acusado de uma série de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Em duas ocasiões, foi solto por força de decisões monocráticas de Gilmar Mendes. Em outra, na Segunda Turma, teve os votos favoráveis de Gilmar e Dias Toffoli e, com o placar empatado em dois a dois, acabou beneficiado.

Parte da fazenda da família Mendes: vizinhos enviaram uma notificação judicial
Os habeas corpus deferidos por Gilmar em favor de Riva foram impetrados pelo advogado Rodrigo Mudrovitsch, o mesmo que defendia o próprio ministro do Supremo nos processos envolvendo as fazendas do Mato Grosso. Em 2015, quando votou para tirar o ex-deputado da cadeia pela primeira vez, Gilmar chegou a ser questionado sobre o fato de ambos terem o mesmo advogado. Na ocasião, o gabinete do ministro alegou que o impedimento para julgar um caso se dá em relação ao réu, não ao advogado. No fim de 2019, José Riva fechou um acordo de delação premiada com o Ministério Público estadual no qual confessou ter operado uma espécie de “mensalão” na Assembleia, que teria distribuído cerca de 175 milhões de reais em propinas a 38 deputados entre os anos de 1995 e 2015.

As autorizações da Assembleia do Mato Grosso para regularizar as fazendas dos irmãos Mendes foram embasadas em dois artigos da Constituição do estado que tratam de política agrícola e fundiária e de reforma agrária. Um deles diz que a autorização da destinação de terras públicas a terceiros pela Assembleia dependerá da “aprovação de projeto específico de colonização, assentamento ou regularização fundiária”, no qual esteja “garantida a permanência de posseiros que se encontrem produzindo”. O texto diz que as terras públicas e as terras devolutas transferidas para o domínio do estado “serão destinadas preferencialmente a famílias de trabalhadores rurais que comprovarem não possuir outro imóvel rural, ressalvando os minifundiários, e que nelas pretendam fixar moradia e explorá-las individual ou coletivamente”.

As duas fazendas regularizadas em nome de Gilmar e de seu irmão Chico Mendes pela Assembleia tinham sido transformadas em propriedade do estado dois meses antes, em julho de 1999. Ambas foram consideradas terras devolutas, ou seja, sem dono, com base em uma lei federal. A lei dizia que as terras pertencentes à União ficariam sob domínio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, e as que fossem de propriedade dos estados seriam registradas pelo órgão regional equivalente. A legislação permitia a “legitimação da posse” de quem estivesse ocupando as terras públicas com três condições: a área deveria ter no máximo 100 hectares, o ocupante não poderia ser proprietário de imóvel rural e precisaria comprovar morada permanente e a exploração efetiva das terras pelo prazo mínimo de um ano.

Gilmar já tinha assumido o cargo de advogado-geral da União quando o Instituto de Terras do Mato Grosso, o Intermat, transmitiu a ele o título definitivo da “Fazenda Paraguai VII”, em fevereiro de 2000. O ministro morava em Brasília havia duas décadas e já tinha ao menos uma fazenda em seu nome em Alto Paraguai, comprada do avô em 1983. Pela letra fria da lei, portanto, não poderia ser beneficiado com a transferência, para seu nome, do quinhão de terras devolutas. Não foi o que aconteceu. A transmissão de título foi assinada pelo então governador Dante Oliveira, do PSDB, pelo secretário de Agricultura à época, Chico Daltro, que anos depois se tornaria vice do governador Silval Barbosa, e pelo presidente do Intermat, Aparecido de Oliveira. O mesmo procedimento foi feito com a fazenda do irmão Chico Mendes. Nas matrículas dos imóveis não constam os valores pagos pelos dois ao estado do Mato Grosso. Há, apenas, o recolhimento de 1,3 mil reais de ITBI, imposto de 2% sobre o valor da transação imobiliária. A julgar por esse valor, os irmãos teriam despendido, cada um, 65 mil reais para se tornarem proprietários das duas fazendas. Crusoé pediu essas informações há mais de um mês ao Intermat, mas não as obteve até a publicação desta reportagem.

Divulgação/ALMTDivulgação/ALMTRiva, que ficou conhecido como o maior “ficha-suja” do país, diz que rito foi “o mesmo de todos os processos”
O registro de terras em nome do governo para, depois, transferi-las a quem já as ocupava é um procedimento comum de regularização fundiária. Em muitos casos, o próprio ocupante da área procura o estado para fazer a regularização, em um processo normalmente lento e burocrático. No caso de Gilmar, o que chama a atenção é que o procedimento não seguiu a legislação vigente à época, que limitava a regularização de terras devolutas a 100 hectares, exigia que o beneficiário demonstrasse morar na propriedade há pelo menos um ano e, ainda, não ter outro imóvel rural em seu nome. Sem cumprir esses critérios, de acordo com a lei em vigor naquele período e mencionada no processo de regularização, a terra só poderia ser transferida oficialmente a particulares mediante leilão — Crusoé não localizou nenhuma concorrência pública aberta pelo governo do Mato Grosso para a venda das duas fazendas adquiridas pelos irmãos Mendes entre a data na qual as terras foram registradas em nome do estado e o dia em que a Assembleia aprovou a regularização da ocupação. As mudanças nas regras que ampliaram o tamanho da área passível de regularização sem licitação e até para pessoas que não residem no local só ocorreram a partir de 2009, no caso da legislação federal, e em 2019, no código de terras do Mato Grosso.

Ao longo de doze anos, Gilmar deu a Paraguai VII como garantia para obter 577 mil reais no Banco do Brasil, como crédito rural, e outros 3 milhões de reais para o IDP, a faculdade de direito em Brasília da qual ele é fundador. Em setembro de 2012, quando estava prestes a completar sua primeira década no Supremo, o ministro e o irmão venderam as duas fazendas para um pecuarista da região, pelo valor de 1,3 milhão de reais cada uma. Nos dois negócios, segundo as matrículas, as transações foram feitas mediante um pagamento à vista de 439 mil reais, mais parcelas anuais em 2013 e 2014.

Na lista atual de imóveis rurais vinculados a Gilmar Mendes há uma propriedade que também teve origem pública. O título definitivo da Fazenda Rancho Alegre, de 626 hectares, foi transmitido pelo governo de Mato Grosso para a mãe do ministro em 1997, após a obtenção de uma autorização semelhante da Assembleia Legislativa. A área, também em Alto Paraguai, foi partilhada entre Gilmar e os irmãos após a morte da mãe, em 2007. Atualmente, a fazenda está registrada em nome da empresa agropecuária que a família abriu em 2018 e vale, segundo o registro em cartório, 3,3 milhões de reais. Além dos imóveis herdados, o ministro comprou sozinho ou em sociedade com os irmãos duas fazendas em Diamantino desde 2001, que somam 3,5 mil hectares e custaram, juntas, 1,5 milhão de reais. Pelos últimos valores registrados em cartório, hoje as propriedades valem 12 milhões de reais.

Parte da valorização está atrelada a um fenômeno curioso que ocorreu nas terras de Gilmar. O tamanho das fazendas cresceu, em média, 33%, depois que a família Mendes mandou fazer o georreferenciamento das áreas, entre 2013 e 2018. O georreferenciamento é uma exigência legal feita pelo Incra para grandes propriedades rurais e serve para definir com melhor precisão os limites dos imóveis. Agrimensores ouvidos por Crusoé explicaram que, durante o processo, é normal que haja variações, tanto para baixo quanto para cima, entre o tamanho original que consta em registros antigos de cartório e a dimensão das áreas georreferenciadas. Só alterações muito discrepantes, dizem os especialistas, indicam que houve algo errado no procedimento, como, por exemplo, suspeitas de superposição de áreas. Quando isso ocorre, o proprietário que faz o georreferenciamento e oficializa o registro em cartório primeiro costuma levar vantagem em eventuais litígios.

O registro em cartório da transferência das terras: do estado para Gilmar
No caso das terras de Gilmar, todas as áreas aumentaram de tamanho depois do georreferenciamento. Somadas as seis fazendas que ainda pertencem ao ministro ou à empresa da qual ele é sócio, o acréscimo foi de 1,8 mil hectares. O maior aumento de área ocorreu na Fazenda Estreito do Rio Claro, em Diamantino, onde fica parte da produção da GMF. Situada à beira de uma rodovia estadual, a fazenda cresceu de 2,5 mil para 3,6 mil hectares, após o georreferenciamento feito em 2015.

Nesse caso, especificamente, a ampliação é bastante controversa. No mesmo ano em que o cálculo da área foi refeito pelos Mendes, uma família proprietária da fazenda vizinha começou a ser multada pela prefeitura local. As notificações diziam estar ocorrendo, na propriedade, atividades não condizentes com as que haviam sido declaradas e constavam dos registros municipais. Era preciso recolher o ITR, o imposto territorial rural, correspondente a essas atividades, e como os pagamentos não vinham sendo feitos, as multas passaram a ser aplicadas e cobradas. A família Cardia, dona desse pedaço de terra em Diamantino, vive em São Paulo. Depois da morte do patriarca, em 2012, os herdeiros deixaram de visitar a propriedade. Até que, em 2016, as tais multas começaram a chegar na casa da viúva, na capital paulista.

As cobranças giram em torno de 40 mil reais por ano. A família Cardia, então, decidiu contratar um escritório de advocacia de Cuiabá e um agrimensor para identificar o motivo das autuações. O técnico foi até o local e constatou que, na verdade, as atividades pelas quais os Cardia estavam sendo cobrados eram da GMF, a empresa do clã Mendes. A conclusão do agrimensor foi a de que as cobranças estavam sendo feitas pela prefeitura, porque uma parte da fazenda da família estava sendo ocupada pela firma agropecuária do ministro do STF e de seus irmãos. Ou seja: no processo de georreferenciamento a fazenda dos Mendes havia avançado sobre as terras dos vizinhos. Em novembro do ano passado, a família Cardia enviou uma notificação judicial ao ministro Gilmar Mendes e aos irmãos dele na tentativa de resolver o imbróglio e restabelecer os perímetros de sua propriedade. Até agora, os Mendes não responderam a notificação.

Crusoé enviou uma extensa lista de perguntas a Gilmar por meio de seu gabinete no STF e também pela assessoria de imprensa da corte, mas ele optou por não se manifestar. Na tarde do dia 30, o chefe de gabinete do ministro informou que não haveria resposta. A assessoria do Supremo disse o mesmo. Chico Mendes não atendeu às tentativas de contato. Preso em regime domiciliar, José Riva afirmou a Crusoé, por telefone, que a regularização das terras de Gilmar e do irmão na Assembleia “seguiu o mesmo rito de todos os processos” e que o ministro “nunca” o procurou para falar sobre o caso. Ele contou que se aproximou dos Mendes apenas em 2004, quando pediu votos para a reeleição do irmão de Gilmar à prefeitura de Diamantino. “No período da campanha, fui junto com o irmão dele nesta propriedade. Tinha uma casa muito antiga lá no local. O que ouvi do irmão era de que essa propriedade é da família há mais de 30, 40 anos. No Mato Grosso era muito comum a pessoa estar em cima da área há muito tempo e não ter título”, afirmou o ex-deputado. Para Riva, a legalização das terras não deveria implicar a suspeição do ministro para julgar seus pedidos de soltura. “Não tenho relação com ele. Encontrei o ministro não mais do que cinco vezes. A decisão que o ministro Gilmar deu nos meus processos é a linha que ele sempre seguiu. Não fez nada de diferente para mim”, disse. A família Cardia preferiu não se pronunciar.

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