Ophélie Morel"Os ucranianos defendem sua independência, sua liberdade e o direito de serem senhores do próprio destino, enquanto os russos, seus vizinhos a leste, querem dominá-los e submetê-los"

O risco de a Rússia avançar

Uma das maiores especialistas da Europa em Ucrânia diz que a invasão do país inaugura uma era em que Moscou, indiferente às potências ocidentais, pode deflagrar novos conflitos em outras partes do mundo
07.04.22

A cientista política francesa Alexandra Goujon, de 49 anos, lançou no ano passado um livro cuja relevância seria multiplicada no último dia 24 de fevereiro, data da invasão do território ucraniano pelas tropas de Vladimir Putin. Sob o título Ucrânia, da Independência à Guerra, a obra aborda a história do país do leste europeu até a invasão da Crimeia, em 2014. Com a guerra alçada ao topo do noticiário global, Goujon se viu demandada por inúmeros jornais e emissoras de televisão. Como profunda conhecedora da realidade que opõe Moscou e Kiev, ela tinha as chaves capazes de ajudar a compreender as origens do conflito.

Formada em 1995 na Sorbonne e professora na Universidade da Borgonha, em Dijon, e na Sciences Po, em Paris, a cientista política critica duramente o discurso de Putin para justificar a guerra – ao anunciar a invasão, ele sustentou que era preciso proteger os ucranianos que falam russo de um genocídio. Para Goujon, trata-se de uma ameaça que, na realidade, nunca existiu. A invasão militar, diz ela, acabou por fortalecer o rancor contra a Rússia e o nacionalismo ucraniano: “Deu origem a uma certa animosidade e até a um sentimento de ódio contra a Rússia”.

Nesta entrevista a Crusoé, Alexandra Goujon faz um alerta inquietante. Ela acredita que a invasão da Ucrânia pelos russos inaugura uma era em que a Rússia pode agir sem reservas, para fazer valer suas vontades em outras partes do mundo, incluindo a Europa, já que Moscou dá mostras de que não está preocupada com a reação das potências ocidentais. “Este pode ser o marco de uma era em que uma nova guerra pode começar abertamente em outro lugar, já que os líderes russos e a mídia ligada ao Kremlin não se importam mais com o Ocidente”, diz. Eis os principais trechos:

Como explicar a força da resistência ucraniana?
A Ucrânia é um país em guerra desde 2014. O espírito de resistência já estava presente desde então, quando os cidadãos ucranianos se organizaram voluntariamente em batalhões para compensar a fraqueza do seu exército ou para oferecer ajuda humanitária a soldados, refugiados e pessoas que vivem além da linha que divide os territórios separatistas do resto da Ucrânia. Essa resistência tornou-se maciça com o início da invasão russa, em 24 de fevereiro deste ano, porque o Estado ucraniano foi ameaçado. Os bairros e cidades foram destruídos por bombardeios do Exército russo, o que impôs a necessidade de um esforço nacional. A Rússia é vista como um poder estrangeiro que quer tomar o controle da Ucrânia, além de querer destruir o país em todos os níveis: militar, humanitário, médico, informativo e político.

Os russos não tomaram Kiev e retiraram suas tropas do entorno da cidade. Como definir a importância da capital ucraniana no cenário da guerra?
Kiev é a capital da Ucrânia e a sede das instituições políticas, incluindo a Presidência. É, portanto, o centro do poder político e estatal. Também foi o cenário onde se desenrolaram importantes revoluções para os ucranianos: a Revolução Laranja, em 2004 (contra a eleição fraudada de Viktor Yanukovych, pró-Rússia), e a Revolução de Maidan, em 2013 e 2014 (que tirou Yanukovych do poder). Na historiografia russa e soviética, Kiev é apresentada como “a mãe das cidades russas”. Na verdade, trata-se da antiga capital do império Rous de Kiev, que existiu entre os séculos IX e XIII e incluía povos eslavos, falantes de finlandês e de turco. No discurso de Putin, Kiev simboliza a berço histórico de integração dos povos eslavos. Dentro da Ucrânia, Kiev, ao contrário, é considerada como o centro histórico do estado ucraniano.

Há um novo nacionalismo ucraniano em ascensão?
O patriotismo ucraniano está sendo forjado desde a independência da Ucrânia, em 1991. A construção nacional está sendo fortalecida com um espaço de mídia específico e uma vida política mais democrática que a da Rússia. A promoção da cultura ucraniana se dá por meio das artes, de festivais, dos livros escolares de história e das comemorações. Um imaginário nacional está sendo erguido em contraposição à Rússia. Em 2003, o presidente Leonid Kuchma (1994-2005), famoso por ser pró-Rússia, publicou o livro A Ucrânia não é a Rússia. Mas a oposição à Rússia ficou mais forte após 2014, com a anexação da península da Crimeia e o apoio russo ao separatismo de duas regiões no leste da Ucrânia. Alguns falantes de russo começaram a falar ucraniano com medo de perder a identidade e muitos russófonos se engajaram nas forças armadas ucranianas. A invasão russa de 24 de fevereiro deu origem a uma certa animosidade e até a um sentimento de ódio contra a Rússia.

Ophélie MorelOphélie Morel“Qualquer opinião divergente à ação do governo é fortemente reprimida”
Como os ucranianos falantes de russo têm se comportado desde o início da guerra?
Os ucranianos com idioma russo não estão sendo ameaçados. Há de fato um bilinguismo na sociedade, com entendimento mútuo entre falantes de ucraniano e russo, apesar de a política nacional promover o ucraniano. Foi esse, afinal, o único idioma ameaçado de extinção até a independência da Ucrânia, em 1991, depois de décadas de russificação. Outro ponto que chama a atenção é que as principais cidades que foram bombardeadas e quase totalmente destruídas pelo Exército invasor, até o momento, são as que falam russo, como Kharkiv e Mariupol. Quanto às regiões do sul, as populações russófonas exigem a saída dos soldados russos. Ao contrário do que Putin imagina, os russófonos não querem participar do “mundo russo” proposto por ele.

Por que Putin disse ser necessário “desnazificar” a Ucrânia?
O uso do termo “desnazificar” é feito para chocar a opinião pública internacional e semear a dúvida sobre a classe dirigente ucraniana, que é muito associada a um setor do movimento nacionalista ucraniano que colaborou com os nazistas na Segundo Guerra Mundial. Esse estigma contra os líderes começou a ser explorado em 2014, quando ocorreu uma mudança no poder em Kiev, após a Revolução de Maidan. Essa troca de poder foi apresentada pelas autoridades russas como um “golpe fascista”. Os russos passaram a dizer que a extrema-direita teve uma função-chave nessa revolução, mas ela foi essencialmente um movimento de cidadãos comuns, sem filiação partidária. Falar de “desnazificação” é um disparate: o atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é de origem judaica. Quanto aos grupos de extrema-direita, eles existem, mas representam apenas entre 2% e 3% do eleitorado. Foram incapazes de eleger um deputado no Parlamento.

Nesta guerra, fala-se bastante dos grupos Setor de Direita e Batalhão Azov, ambos de extrema-direita. Que força eles têm?
O grupo Setor de Direita e Batalhão Azov foram ativos em 2014, na fase em que era preciso defender o território ucraniano. Mas os movimentos políticos que eles constituem estão associados a uma minoria ínfima. Em termos de pessoal, o Batalhão Azov, que atuou na defesa da cidade de Mariupol, em 2014, representava, antes da invasão russa de 2022, cerca de 2% das forças armadas ucranianas.

Qual é o sentimento geral da população russa em relação à guerra na Ucrânia?
É muito difícil responder a essa pergunta porque a mídia russa destila uma única mensagem. Usar o termo “guerra” é proibido. A imprensa fala apenas de uma operação militar dentro do Donbas, no leste da Ucrânia. Os veículos independentes foram completamente proibidos. Parece difícil, nesse contexto, acreditar em pesquisas de opinião que falam de um apoio popular à tal “operação especial”. Na mídia russa, as fotos de bombardeios de cidades ucranianas são mostradas como se fossem de autoria do Exército ucraniano. Quanto às manifestações contra a guerra, ocorreram inúmeras prisões. Qualquer opinião divergente à ação do governo é fortemente reprimida.

Ophélie MorelOphélie Morel“Este conflito também pode ser o marco de uma era em que novas guerras podem ser deflagradas em outros lugares”
Ao deflagrar a guerra, Putin criticou Vladimir Lênin (1870-1924), alegando que ele errou ao permitir que os países que compunham a antiga União Soviética pudessem se emancipar no futuro. Lênin realmente cometeu esse, digamos, erro?
A Ucrânia é a sucessora da República Socialista Soviética Ucraniana, criada em 1919 e, 1922, integrada à União Soviética. Nesse sentido, Lênin e os bolcheviques contribuíram para a criação de um estado ucraniano. Mas a fundação desse estado também foi uma forma de responder ao movimento nacional ucraniano, que nasceu dentro do Império Russo e foi reprimido antes de uma proclamação de independência, em 1918. Os bolcheviques queriam mostrar a oposição deles ao “grande chauvinismo russo” e também convencer os povos oprimidos da Rússia a aderirem à sua causa política. Mas os anos 1930 foram marcados pelo combate ao que os bolcheviques chamavam de “nacionalismo burguês”: as elites políticas e intelectuais ucranianas foram reprimidas, enquanto os agricultores sofreram com a fome entre 1932 e 1933. Cerca de 4 milhões de pessoas morreram em uma tragédia que só pôde ser mencionada e discutida publicamente após a independência.

Há semelhanças entre a forma como Vladimir Putin e Josef Stalin lidaram com a Ucrânia?
Os líderes russos frequentemente nutrem certo desprezo pelos ucranianos, que foram considerados como “pequenos russos” durante o império czarista, pois não teriam uma cultura que pudesse ser comparada à dos russos. A União Soviética foi fundada sobre uma política de nacionalidades que pressupunha uma hierarquia entre os povos que a compunham. A cultura russa foi a dominante, assim como a língua russa imperava no espaço público. A situação atual é parecida. Putin afirmou repetidamente que o estado ucraniano não tem legitimidade histórica. A invasão militar que ele lançou contra a Ucrânia pretende negar qualquer forma de subjetividade histórica e política do país. Para Putin, os ucranianos só podem ser objetos da história.

Como a guerra atual entrará para a história?
Muitos líderes e intelectuais ucranianos têm dito que estamos em um momento histórico. Os ucranianos defendem sua independência, sua liberdade e o direito de serem senhores do próprio destino, enquanto os russos, seus vizinhos a leste, querem dominá-los e submetê-los. Este conflito também pode ser o marco de uma era em que novas guerras podem ser deflagradas em outros lugares, já que os líderes russos e a mídia ligada ao Kremlin mostram indiferença em relação ao que pensa o Ocidente e o desafiam. Isso nos leva a crer que a época que começou com a queda do Muro de Berlim, em 1989, acabou. O continente europeu será afetado, assim como toda a geopolítica internacional.

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