MarioSabino

Um homem sem sonhos

07.04.22

Nasci em 7 de abril de 1962. Ou seja, faço 60 anos no dia em que escrevo este artigo. Vim ao mundo já velho. Em alguns momentos da vida, rejuvenesci, mas esses momentos não duraram tanto tempo assim. Vir ao mundo já velho significa ter nascido sem sonhos. Sou um homem sem sonhos.

A ausência de sonhos não me impediu de realizar o que, para muitos, são sonhos, embora não grandes sonhos. Apenas fui fazendo coisas, aos trancos e barrancos, sem entender muito bem como cheguei até aqui e acolá. Volta e meia me perguntam se eu queria ser jornalista desde cedo. Respondo sinceramente que escolhi o jornalismo por falta de opção. Era uma lata de conserva que parecia ser a única num mercado de prateleiras vazias. Ocorreu a mesma coisa quanto aos livros. Editei livros dos outros e escrevi os meus, como quem se senta à mesa para fazer uma refeição somente porque está na hora de fazer uma refeição. Eu também não sonhava em ter um site de informação e uma revista digital. Se os tenho, é porque não tinha emprego, assim como tantos brasileiros que se veem sem trabalho.

Sou o melhor pai possível de dois rapazes que amo. Eles, felizmente, têm sonhos. Um homem sem sonhos que gerou sonhos alheios não é tão ruim assim. Eu não me aproprio dos sonhos deles. Há pais que o fazem com os seus filhos, mas eu não. Um dos meus dois rapazes já está criado e luta para ter emprego em sua área no país em que decidiu viver. O máximo que posso fazer é torcer por ele. O outro, bem mais jovem, tem um bom pedaço de chão pela frente. Quero continuar a ter forças para educá-lo. Mas isso não é sonho, é esperança. Tenho esperanças que pareciam modestas e obrigações que pareciam menores.

No sábado passado, fui assistir a Belfast, o filme autobiográfico do ator irlandês Kenneth Branagh. Passa-se em 1969, quando ele era um garoto assim como eu era naquele ano tão longínquo. As diferenças de latitude não impediram a identificação. Lá estavam os mesmos brinquedos com os quais eu brincava, os mesmos programas de televisão, os mesmos filmes no cinema, as mesmas dificuldades financeiras da família, o mesmo tipo de maleta escolar, o mesmo mundo em preto e branco que combinava com a minha velhice infantil. Sentado ao meu lado, o meu filho reclamou que eu estava respirando muito alto, por causa da máscara. Mudei para a fileira da frente. Foi bom, porque a minha respiração ficou um pouco mais alta em alguns momentos do filme.

Dois dias depois, fui a uma reunião munido da minha maleta de trabalho. Não tenho sonhos, mas sempre tive uma maleta. Quando eu era criança, a minha maleta escolar era um refúgio. Eu a mantinha organizada como um abrigo nuclear onde poderia me refugiar se tudo desse errado. Antes de os meus interlocutores entrarem na sala em que me instalaram, abri a maleta de trabalho, para pegar os meus óculos e uns papéis. Surpreendi-me, num lapso infinitesimal, por não ter estojo, cadernos, livros, régua, compasso, esquadro, um soldadinho do Forte Apache e uns biscoitos baratos embrulhados num guardanapo. Como sobreviver sem isso numa guerra nuclear?

No dia em que completei 30 anos, a metade deste caminho percorrido, tive o que chamo de autoepifania. Enquanto andava por uma Paris ainda estrangeira, tudo de repente ficou nítido como nunca. Todos os contornos se tornaram muito precisos: dos prédios, das ruas, dos carros, das pessoas, dos objetos. Os meus próprios limites corporais ganharam extrema nitidez. Foi a sensação individual mais fascinante que experimentei, de uma naturalidade sobrenatural. Não sei dizer quanto tempo durou a minha autoepifania. Mas, enquanto fui tomado por ela, senti-me plenamente vivo, como se eu fosse uma revelação para mim mesmo. Eu era “o girassol enlouquecido de luz” do poema de Eugenio Montale.

Aos 60 anos, sou um homem sem sonhos, com exceção de um (na verdade, tenho outro, mas vou conservá-lo para mim): voltar a ter a nitidez fugidia de 30 anos atrás. Sentir-se plenamente vivo duas vezes é um sonho que vale a pena sonhar.

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