AlexandreSoares Silva

A Era de Ouro dos Picaretas

15.04.22

A Era de Ouro dos Serial Killers foi dos anos 50 aos 70 – o Renascimento dos serial killers, com Michelangelos da tortura e do desmembramento vagando pelo Wyoming às dezenas, como se não fosse nada. Essa arte sobreviveu um pouco nos anos 80, decadente, e ainda produzindo de vez em quando alguma coisa interessante (como acontece agora com as séries de tevê depois da Era de Ouro das Séries, dos 90 aos anos 00). Mas agora está morta, e depois de um breve período da Era de Ouro da Corrupção (governos Lula e Dilma), deu lugar à Era de Ouro dos Picaretas.

Para se ter uma ideia da importância cultural da picaretagem nos dias de hoje, considere o número de documentários, filmes e séries de tevê atuais sobre trambiqueiros, velhacos, bilontras e aldrabões de todas as espécies:

* O Golpista do Tinder (The Tinder Swindler) – documentário sobre o aldrabão israelense Simon Leviev, que agora, aliás, está lançando NFTs.

* WeCrashed – série de ficção sobre o caso real da WeWork. Boa, até, se você
tolerar o nariz prostético e o sotaque ainda mais prostético de Jared Leto.

* Inventando Anna (Inventing Anna) – série de ficção sobre o caso real da
golpista Anna Delvey, que enganou um monte de socialites e banqueiros de Nova York.

* De Rainha do Veganismo a Foragida (Bad Vegan) – documentário sobre a chef Sarma Melngailis, que fraudou sócios e empregados e foi fraudada pelo marido.

* The Dropout – série de ficção sobre o caso real de Elizabeth Holmes,
criadora da Theranos.

* A Inventora (The Inventor) – documentário sobre Elizabeth Holmes.

* Generation Hustle – série de documentários sobre golpistas diferentes, incluindo Anna Delvey, Adam Neumann da WeWork e outros oito amigos-do-alheio.

Claro que há muitos documentários atuais sobre serial killers, mas todos sobre serial killers de décadas atrás, porque, em termos de serial killers, a verdade é que caímos num estágio de decadência absoluta e ainda nos apoiamos nas obras dos gigantes do passado.

Por contraste, temos Rafaéis e Ticianos da vigarice andando entre nós. A arte da aldrabice floresce, mesmo no Brasil, onde durante séculos poderemos procurar inspiração nas obras completas de Bel Pesce, Marcelo Nascimento da Rocha (o “Herdeiro da Gol”), a cientista Joana D ‘Arc, Eike Batista, a Grávida de Sorocaba, João de Deus e Patrícia Lélis – esta última um caso peculiar, sem nenhuma obra sólida ainda, meramente rascunhos de picaretagem, artimanhas e facécias inacabadas -, mas uma carreira a seguir com o máximo de interesse, certamente.

Houve uma época em que eu acreditava que a internet havia tornado impossível a antiga arte da picaretagem. No passado, raciocinava eu, cada vez que sumia um herdeiro de trono, de título nobiliárquico ou de fortuna, vinte pessoas apareciam dizendo ser esse herdeiro; um, geralmente, conseguia fingir melhor que os outros e assumia o trono, o título ou a fortuna, e muitas vezes anos se passavam até que a farsa fosse descoberta e a pessoa fosse decapitada.

Com a internet, eu achava que íamos testemunhar a decadência do 171. Uma ingenuidade gigantesca, e é um milagre que sendo tão ingênuo eu nunca tenha sido vítima desses novos picaretas da Era de Ouro.

Mas o argumento com que quero terminar este texto é que eles são admiráveis. Eles são admiráveis porque conseguem contar uma história infantil, absurda, ridícula, com uma convicção extraordinária.

Ouçam lá o vilão do documentário Bad Vegan gritando com a mulher dele pelo telefone. Dá pra ouvir as ligações – e, bem, ele está contando uma história tão ridícula que faria um bebê rir (até um feto duvidaria dele), mas sem hesitação nenhuma, com uma força de crença que até me arrastou um pouco quando vi. Já eu quando estou falando uma verdade, que sei que é verdade, e que não pode ser nada além de uma verdade, titubeio, gaguejo, desvio os olhos, me enrolo com detalhes desnecessários, suo na palma das mãos, e termino implorando pra que acreditem em mim. Nem eu acredito na verdade que falo – e é uma verdade.

Como não admirar esses picaretas? Olha Anna Delvey indo pegar dinheiro emprestado no banco dizendo que é herdeira de uma fortuna, calma como uma estátua de Buda. Olha o mesmo vilão de Bad Vegan reunindo uma sala inteira de banqueiros pra conseguir um empréstimo, também usando mentiras como garantia, e calmo como o cadáver de um iogue. Já eu entro no banco pra pagar uma conta e fico nervoso quando chego no caixa.

Vejo esses documentários e séries desejando ser um pouco como esses golpistas. Desejando pelo menos ter a mesma convicção e segurança, só que para falar a verdade. Fico desejando ser uma espécie de trambiqueiro da verdade, um estelionatário sincero.

Mas, para a minha tristeza, como todos os artistas de todos os tipos de arte, às vezes os grandes mestres da picaretagem parecem modelos inalcançáveis de comportamento. Talvez só me reste ver essas séries e admirá-los de longe.

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  1. Muito bom! (Só q nas referências eu boiei em todas... com duas pequenas, qdo rola cineminha é animação mesmo...)🤷‍♀️

  2. OS PICARETAS HOJE ESTÃO EM TODOS OS LUGARES, NO STF, NO CONGRESSO, NO EXECUTIVO, CANDIDATOS A PRESIDÊNCIA. É PICARETAGEM GERAL.

  3. O povo brasileiro ama um picareta,acho q se identifica,por isso cresce tanto a defesa por bandidos políticos e essa falsa polarização. Tem que se reconhecer,os picaretas sabem como manipular trouxas.

  4. A necessidade de convecer alguém sobre uma mentira muitas vezes é o motor que falta naqueles que simplesmente dizem a verdade.

  5. No Brasil, a era de ouro dos picaretas se desenrola no dia a dia da política rasteira e parece não ter um fim no horizonte.

  6. Excelente! Eu gostaria de entender o fenômeno das criptomoedas, o sonho de ficar rico (ou fazer corretores ricos) só com ordens de compra e venda via trocas de mensagens entre clientes de presumidos cartórios eletrônicos controlados por presumidos corretores em escritórios eletrônicos sediados nas nuvens, e que fariam inveja a Madoff. São bem mais espertos, ou mais picaretas, pois fogem antes da chegada do FBI, e vão desfrutar o butim em principados e paraísos-fiscais.

  7. Você, Alexandre, é honestidade intelectual na mais refinada acepção da expressão. Gosto muito de seus textos.

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