Adriano Vizoni/Folhapress"O país regrediu no processo civilizatório, graças ao ‘nós contra eles’ estimulado por Lula e à estridência da extrema direita, sob Jair Bolsonaro"

‘O Brasil está involuindo’

Coautora de um alentado diagnóstico sobre o Brasil que acaba de ser oferecido como sugestão à terceira via, a economista diz que o país não sairá do lugar se permanecer refém da polarização
15.04.22

O cenário de desalento em razão da perspectiva de o país passar os próximos quatro anos sob o comando de Lula ou de Jair Bolsonaro foi o que motivou a elaboração, pelos economistas Maria Cristina Pinotti, Affonso Celso Pastore e Renato Fragelli, de um meticuloso estudo com ideias a serem seguidas por um candidato alternativo, de fora da polarização que domina a cena política do país. O trabalho, intitulado Desenvolvimento inclusivo, sustentável e ético, foi iniciado para servir de base a um possível plano de campanha para o ex-juiz Sergio Moro. Como, nos últimos meses, as chances de ele disputar o Planalto foram praticamente reduzidas a pó, os autores o colocaram à disposição da autodenominada terceira via.

“Estamos indo para um caminho que tende a piorar. Não enxergamos nesse cenário atual nada que nos tire automática e milagrosamente dessa rota de trombadas nas quais nós estamos insistindo há tantos anos”, diz Cristina Pinotti nesta entrevista a Crusoé. Graduada em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, a FGV, e doutora em economia pela USP, Pinotti afirma que o “nós contra eles” semeado por Lula, de um lado, e a estridência da extrema direita comandada por Jair Bolsonaro de outro, levaram o Brasil a um retrocesso civilizatório. Como consequência, a economia estagnou, a indústria parou de crescer e a responsabilidade fiscal foi esquecida. A solução, defende ela, passa pela diminuição da desigualdade e pela recuperação do papel do estado como provedor de serviços públicos de qualidade. “Sem isso, a população permanecerá sendo usada como massa de manobra de governantes populistas”, afirma. “É uma contribuição para o país sem filtro político. Não é para atrair voto para ninguém. Não temos vontade de fazer política nem campanha”, prossegue. Eis os principais trechos:

O que os levou a fazer esse trabalho?
O ex-juiz Sergio Moro queria se inteirar sobre as grandes questões do país, como política fiscal, monetária e câmbio, e acabamos elegendo os principais temas. Começamos em meados de novembro. Foi prazeroso, e o trabalho mais extenso que fizemos. Antes, já tínhamos ajudado a elaborar o Agenda Perdida (diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento feita em 2002 em parceria com os economistas Marcos Lisboa e José Alexandre Scheinkman). É importante dizer que esse novo trabalho é a nossa visão sobre o país. É uma contribuição e a gente não quer que se discuta nomes, mas ideias, para tirar o país dessa coisa horrorosa em que está. Não existiu filtro político no que nós escrevemos. Estamos aqui para falar a verdade. Não para atrair voto para ninguém. Ninguém pensou em ganhar o eleitor. Nossa experiência indica que estamos indo para um caminho que tende a piorar. Não enxergamos nesse cenário atual nada que nos tire automática e milagrosamente dessa rota de trombadas nas quais nós estamos insistindo há tantos anos. O país regrediu no processo civilizatório, por causa do ‘nós contra eles’ estimulado por Lula e à estridência da extrema direita, sob Jair Bolsonaro. Honestidade, espírito público, respeito à lei e ao próximo viraram valores escassos na vida pública. Com isso, a economia estagnou, a indústria parou de crescer e a responsabilidade fiscal foi abandonada. Então, respondendo à sua pergunta, foi essa constatação que nos norteou para fazer essa ampla análise.

Esse conjunto de sugestões foi colocado à disposição de nomes da terceira via. Alguém já procurou vocês?
Não. Ninguém procurou a gente. É importante dizer que, desde o começo das conversas com o ex-juiz Sergio Moro, imaginávamos que iam sair dois documentos. Nunca pensamos em fazer um programa de governo propriamente dito. Dizíamos ao Moro o seguinte: ‘Se você virar candidato, vai precisar de umas vinte pessoas para fazer um detalhamento maior de cada tema’. Nossa ideia era fazer um panorama geral para discussão. Então, ia ter o documento e, depois, o programa de governo. Era o que estava acertado. Com a indefinição da candidatura, depois que ele foi para a União Brasil, decidimos em comum acordo divulgar o trabalho que fizemos. Se o Moro conseguir viabilizar a candidatura, aí sim ele vai divulgar o programa de governo dele, aproveitando ou não as nossas sugestões.

Vocês já falaram que não pretendem participar de campanhas eleitorais. E se, futuramente, aparecer o convite de algum governo?
Não participamos de governos. Isso é muito claro entre nós, Affonso (Pastore, ex-presidente do Banco Central e marido da economista Maria Cristina Pinotti) e eu. Não temos a intenção de fazer parte de nenhum governo. Nosso lugar é na sociedade civil. Não temos vontade de fazer política nem de fazer campanha. Nosso lugar é do lado de fora, onde achamos que podemos contribuir mais.

Como a sra. analisa esse cenário de dificuldades para que Moro construa sua candidatura e transite no meio político, que quase que por instinto o repele?
O Sergio Moro trafega, de fato, num terreno minado. E não é só o Moro. Qualquer outsider que não compactue com os valores da atual classe política não entra no jogo. É um instinto de autopreservação. Quanto mais o Executivo se enfraquece, mais ele depende do Legislativo. Talvez, o presidente mais fraco de todos seja Jair Bolsonaro. Por isso, o Centrão hoje manda mais do que mandou em qualquer outro momento da história do país. Olha o que aconteceu com o fundão eleitoral, com as emendas de relator… Então, eles não vão querer alguém que colocou integrantes do grupo deles na cadeia. Logo, seria surpreendente um partido tradicional indicar o Sergio Moro. Claro, não quero dizer que Moro está fora. Ele ainda está tentando viabilizar sua candidatura. Mas não há dúvidas de que precisamos de regras partidárias que permitam e facilitem a entrada de pessoas de fora na política.

Adriano Vizoni/FolhapressAdriano Vizoni/Folhapress“Corremos o risco de ver uma perpetuação do encruamento do país”
Uma das linhas mestras do trabalho é o combate à desigualdade. A esquerda fala em distribuir renda, enquanto a direita diz que basta ter eficiência econômica. Qual é a solução?
Não existe incompatibilidade entre distribuir renda e fazer a economia se tornar eficiente. Isso só está na cabeça de quem quer dividir o mundo em dois. Isso é maniqueísmo. Olha, custa muito barato cuidar da pobreza. Falta é vontade política. Um estudo feito na Jamaica diz o seguinte: que uma família com criança pequena que recebeu por dois anos a visita de um assistente social durante uma hora por semana, e esse profissional orientou a mãe no que ela precisava fazer, quais cuidados deveria ter com a saúde, como deveria estimular o desenvolvimento da criança, vinte anos depois os filhos tinham salários pelo menos 50% maiores do que os filhos criados por famílias em condições socioeconômicas parecidas que não receberam a ajuda de nenhum assistente social.

O PT ficou 14 anos no Planalto. Sucedeu o PSDB, depois de oito anos de governo FHC. Somados, são 22 anos no poder da centro-esquerda, que sempre se vangloriou de ter um olhar social mais acurado. A tomar isso por verdade, a questão desigualdade já não era para estar praticamente resolvida?
E vou acrescentar: ainda aumentaram a carga tributária e a dívida pública. Ou seja, dinheiro não faltou. Os gastos sociais estão indo cada vez mais para os não pobres do que para os pobres. Em 2018, o Bolsa Família, por exemplo, custou 30 bilhões de reais, ao passo que a aposentadoria rural, ou seja, aquele benefício para pessoas que nunca contribuíram com a Previdência, custou 124 bilhões de reais. No Brasil, só 30% das transferências de renda vão para os 10% mais pobres. De novo, cuidar da pobreza é barato, caro é dar dinheiro para os ricos. O dinheiro público é do cidadão que pagou imposto. Isso precisa vir para o centro da discussão política. Precisamos recuperar o papel do estado como provedor de serviços públicos de qualidade. Essa espécie de contrato social entre o estado e a cidadão pagador de impostos se quebrou. Sem isso, a população permanecerá sendo usada como massa de manobra de governantes populistas.

No conjunto de sugestões que o estudo traz há a defesa da unificação dos cinco impostos sobre bens e serviços em um IVA nacional, com alíquota única, cobrado no destino. Com tantos interesses em jogo e muita pressão sobre o Congresso, isso é possível?
A gente precisa falar a verdade para a população. Contar quem está pagando mais imposto no país. No Brasil, é a folha salarial e a indústria, o que inviabiliza o crescimento da economia, porque torna o produto brasileiro não competitivo no exterior. Com isso, desincentiva o investimento e a exportação. A sociedade civil é que vai empurrar o Congresso para a decisão certa. Então, precisamos ser claros na mensagem se quisermos aprovar a reforma tributária.

Adriano Vizoni/FolhapressAdriano Vizoni/Folhapress“Temos que mudar o tecido social para não ficarmos propensos a ter pessoas autoritárias no poder”
Durante a pandemia, quando se discutiu muito sobre o papel do SUS, criou-se o clima para a flexibilização do teto de gastos. É possível furar o teto e manter a disciplina fiscal?
Ninguém quer cortar. O Brasil precisa fazer escolhas. Definir o que é prioritário. Enquanto isso não for enfiado na cabeça das pessoas, não teremos futuro como país. Precisamos do teto dos gastos porque o investidor, seja nacional ou internacional, precisa saber que o estado não vai quebrar. Estamos com uma dívida pública de 80% do PIB. É muito alta. Temos que ter limite de gastos.

Ao falar em suposta “frente ampla pela democracia” e se aliar ao ex-tucano Geraldo Alckmin, Lula tenta se apresentar como um candidato capaz de costurar um entendimento nacional. A sra. acredita que ele seja capaz de cumprir esse papel?
Se olharmos para o histórico do Lula, vamos ver que sempre aconteceu o oposto. Ele lançou uma Carta aos Brasileiros para se eleger em 2002 na qual prometeu tudo e depois foi desmontando o que ele próprio havia prometido, como o arcabouço fiscal. Por exemplo, não fossem a imprensa e a sociedade civil, o PT teria aprovado o controle social da mídia. Quem defendia isso era o ex-ministro Franklin Martins, que agora está ao lado do Lula de novo. Temos que mudar o tecido social para não ficarmos propensos a ter pessoas autoritárias no poder. Democracia não cai do céu e não basta escrever na Constituição. Ela é construída no dia a dia por cada um de nós.

Do início do governo Jair Bolsonaro para cá, houve uma série de decisões do STF no sentido não só de anular condenações de políticos, como impor travas ao combate à corrupção. Fala-se em criminalização da política, mas não está havendo uma criminalização da Lava Jato?
Foi um desastre o que aconteceu no governo Jair Bolsonaro. Ele foi o cavalo de Troia que entrou para acabar com a Lava Jato. Prometeu uma coisa e fez outra. Foi a reedição das Mãos Limpas, na Itália. É importante dizer que não existe isso de criminalizar a política. Não cometa crimes que você não vai ser criminalizado. É simples. Não destruíram o legado da Lava Jato, mas houve um grande movimento contra a operação. E a corrupção aumentou.

É o establishment tentando se reorganizar?
Sem dúvida. É uma reação do sistema ao baque que ele levou lá atrás. Mas não acho que dura para sempre. Se durar, o país vai definhar. Corrupção e pobreza caminham juntas. País corrupto não cresce. Enquanto houve corrupção na Itália, o país não cresceu, estagnou. Estamos seguindo os mesmos passos. Estou rouca de tanto falar isso há sete anos. (O preço de) uma obra pública na Itália era três vezes maior do que na França por causa da corrupção. Sem Justiça eficiente não podemos ter desenvolvimento econômico. É a Justiça que vai coibir a corrupção. É preciso um sistema judiciário eficiente que não permita a impunidade. E a pena tem que vir com rapidez, não depois da prescrição.

Há esperança diante de um cenário aparentemente tão desalentador?
Tento me emocionar o mínimo para manter a serenidade. Gostaria de ver algo muito diferente. Até três meses atrás, estava mais confiante numa solução pela terceira via. E acho que boa parte dos eleitores vê isso ainda. Mas o interesse partidário quer manter o que está aí e não ver alguém de fora para acabar com a festa.

Significa que o Brasil está fadado aos extremos?
Política é uma coisa que muda. Já tivemos situações nesse sentido. Não quero fazer um prognóstico fechado. Se formos para isso, teremos um trabalho muito maior na sociedade civil. Corremos o risco de ver uma perpetuação do encruamento do país. O Brasil está involuindo do ponto de vista econômico, social e político. Vivi o regime militar, sei o que é você viver num regime fechado, o que é censura e aquela coisa asfixiante de imaginar que aquilo nunca vai acabar. Mas a sociedade foi às ruas e a ditadura foi vencida. Então, temos que acreditar.

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