DiogoMainardina ilha do desespero

Palavra por palavra

15.04.22

Sou o novo Pierre Menard. Sim, Pierre Menard, o personagem de Jorge Luis Borges. Ele reproduziu Dom Quixote, palavra por palavra, linha por linha. Eu reproduzo a reportagem sobre as fazendas de Gilmar Mendes, publicada na semana passada, aqui na Crusoé.

“Pierre Menard não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o próprio Quixote”, diz o narrador do conto de Borges. “Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.”

Ambiciono fazer a mesma coisa. Em vez de usar o computador para copiar e colar mecanicamente o texto de Fabio Leite, teclo-o letra por letra, a fim de torná-lo meu:

“Em setembro de 1999, quando era assessor jurídico da Casa Civil da Presidência da República, no governo de Fernando Henrique Cardoso, Gilmar foi contemplado com uma decisão da Assembleia Legislativa do Mato Grosso que autorizou a ‘regularização da ocupação’ de uma área de 507 hectares, o equivalente a mais de 500 campos de futebol (…). No mesmo dia, o irmão caçula de Gilmar, Francisco Ferreira Mendes Júnior, conhecido como Chico Mendes, obteve autorização para ocupar uma fazenda vizinha, de mesmo tamanho.”

Nesse ponto, a narrativa torna-se mais labiríntica, quando surge pela primeira vez uma figura sublime, uma espécie de Dulcineia mato-grossense:

“As duas resoluções foram assinadas pelo então presidente da casa, José Riva, e por outros dois parlamentares (…). Riva, um político influente do estado, ficou conhecido como o ‘maior ficha-suja do país’ por acumular mais de cem processos por mau uso do dinheiro público.”

A cena está montada pelo autor para sua cambalhota final:

“Riva foi preso três vezes, entre 2015 e 2016, acusado de uma série de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Em duas ocasiões, foi solto por força de decisões monocráticas de Gilmar Mendes. Em outra, na Segunda Turma, teve os votos favoráveis de Gilmar e Dias Toffoli e, com o placar empatado em dois a dois, acabou beneficiado.”

Inicialmente, o método imaginado por Pierre Menard para se apropriar do Quixote era bastante simples, de acordo com o narrador do conto: “aprender o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes”. Para me apropriar da reportagem sobre as fazendas de Gilmar Mendes, eu também teria de ignorar trezentos anos de história nacional, em particular a de Aripuanã.

O personagem de Borges, porém, acaba desistindo desse procedimento:

“Ser Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo – por conseguinte, menos interessante – que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard.”

De fato, cheguei à reportagem da Crusoé como Diogo Mainardi, com as experiências de Diogo Mainardi no trato com Gilmar Mendes. Quem cotejar as palavras de Fabio Leite com as minhas poderá concluir que elas são idênticas, mas seu sentido mudou completamente de uma semana para cá. Nenhum veículo de imprensa teve a ousadia de repercutir a matéria publicada por nossa revista. Só eu, o novo Pierre Menard.

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