Uma semana no WhatsApp de Bolsonaro
Se publicamente o entourage bolsonarista se empenha em realinhar o conhecido discurso negacionista adotado pelo presidente durante a pandemia, em privado Jair Bolsonaro se mantém firme na propagação de teorias contra as vacinas. Por pura estratégia eleitoral, agora focada na tentativa de recuperar os eleitores perdidos, Bolsonaro já não esbraveja mais contra os imunizantes em seus discursos ou nas tradicionais lives das quintas-feiras, mas para o grupo restrito de políticos e amigos que recebem diariamente suas mensagens de WhatsApp a cantilena segue igualzinha. O mesmo se dá em relação a outros temas sensíveis que, neste período pré-eleitoral, vêm sendo deixados de lado. Por uma semana, entre os dias 5 e 12 de abril, Crusoé acompanhou o que o presidente envia em sua lista de transmissão no aplicativo, na qual ele inclui apenas os aliados mais próximos. O resultado é um festival de fake news e de ódio, com ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal, teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas e insultos a artistas considerados adversários do governo. No WhatsApp, o discurso raivoso do presidente é o mesmo de antes – e até pior, a depender do assunto e do momento.
Crusoé pôde acompanhar as mensagens enviadas pelo presidente para sua lista de transmissão com a autorização de alguns dos destinatários, que aceitaram mostrá-las desde que, por motivos óbvios, não tivessem suas identidades reveladas. Sobre a pandemia de Covid-19, no período Bolsonaro enviou três mensagens nas quais deixa evidente que sua posição antivacina segue intacta. Em uma delas, ele compartilha um vídeo de um telejornal com a notícia, de março, de que o Ministério Público Federal em Uberlândia, Minas Gerais, vem recebendo relatos de possíveis reações adversas ao imunizante entre adolescentes. O procurador Cleber Eustáquio Leite entrou com ação para que fabricantes criem no Brasil um grupo de monitoramento das crianças e jovens vacinados. Leite acusa a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, de aprovar a vacina da Pfizer, por exemplo, antes da conclusão de todas as etapas das pesquisas – o que não condiz com a realidade, já que a agência chancelou os estudos feitos em outros países, como os Estados Unidos. O procurador é o mesmo que, em 2021, se envolveu em uma polêmica com a propagação, especialmente por grupos bolsonaristas, de um vídeo no qual pedia que a vacinação fosse proibida no Brasil – depois se descobriu que a gravação, na verdade, era de 2015 e se referia à vacina contra o HPV.
Outra mensagem, enviada às 6h03 de 8 de abril, segue na toada em favor do “tratamento precoce” para a Covid, algo que a ciência já refutou amplamente: “Informação confirmada, a Pfizer imuniza por apenas 30 dias. O vírus veio para ficar e o tratamento precoce é a forma mais adequada de se combater a Covid, mesmo sem comprovação científica ainda”. Junto, havia o link de um texto da internet que trazia o resultado de um estudo feito em Israel e publicado no New England Journal of Medicine. A pesquisa apontou que a quarta dose da vacina da Pfizer diminuiu a contaminação em idosos, mas a proteção contra a infecção teve curta duração.
Quem está na lista de transmissão de Bolsonaro também tem a medida exata do animus presidencial em relação à cúpula do Poder Judiciário, em especial ao Tribunal Superior Eleitoral e a três ministros do Supremo Tribunal Federal: Alexandre de Moraes, que será o presidente da corte eleitoral durante as eleições, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Na terça-feira, 12, quando o bolsonarismo ainda não havia realinhado seu discurso sobre as pesquisas (antes criticadas, elas passaram a ser exaltadas a partir do momento que mostraram a redução da distância do percentual de intenção de votos entre o presidente e Lula), Bolsonaro enviou o link de uma notícia de jornal com o título “PT pede ao TSE que adote medidas para garantir a segurança das eleições” e comentou: “PT e TSE cada vez mais parecem ter o mesmo objetivo nessas eleições. A farsa das pesquisas não mais se sustentam (sic) diante da realidade das ruas a favor de Bolsonaro”.
As mensagens da lista de transmissão servem como uma espécie de “ordem unida” do presidente para que seus aliados mais próximos – ministros do governo, deputados, senadores e amigos particulares – reproduzam a retórica que mantém a militância bolsonarista mobilizada. Os disparos são feitos ao longo de todo o dia, mas há uma clara concentração no início e no fim da madrugada. Não raro, pouco depois das 4 horas ele já está ativo e com sua usina de mensagens em pleno funcionamento.
Muito embora o ambiente da comissão seja pacífico até o momento, sem nenhuma manifestação do Exército pondo em xeque o sistema, as mensagens de Bolsonaro vão na linha oposta: “O órgão máximo das eleições mostrou-se nitidamente surpreendido e constrangido com a capacidade do Centro de Defesa Cibernética (o braço do Exército do qual fazem parte os militares destacados para participar da comissão) em detectar pontos ‘falhos’ em seu ‘excelso programa’. Talvez, no TSE ninguém tivesse conhecimento da capacidade analítica dos militares. E que também as FFAA (Forças Armadas) não aceitariam quaisquer explicações dos técnicos do TSE. Talvez, o TSE achava que poderia usar as FFAA para dar ares de legalidade nas eleições. O TSE acabou em um beco sem saída, pois querendo ou não, tem que aceitar os questionamentos das FFAA, ou …”, escreveu o presidente na mensagem de WhatsApp enviada aos aliados. Fake news, evidentemente. Ainda nas mensagens, o presidente afirma que o TSE “nada fez para zerar esses riscos. Imaginem a confiabilidade das eleições anteriores”. Ele sugere que a corte age para beneficiar Lula, seu principal adversário. “Se Barroso, Fachin e Alexandre não têm interesse em eleger Lula, por que relutam em aceitar medidas que garantem a lisura nas eleições?”, afirma.
O candidato petista, como era de se esperar, também é alvo de muitos dos conteúdos compartilhados no WhatsApp de Bolsonaro. É o caso, por exemplo, de um vídeo com um trecho da participação de Lula em um debate promovido pela Fundação Perseu Abramo no dia 5 de abril, durante o qual o petista diz que o aborto deveria ser transformado em uma “questão de saúde pública e todo mundo ter direito e não vergonha”. Na edição do vídeo distribuído por Bolsonaro, sobre a imagem de Lula foi incluída uma animação de um feto tendo os membros arrancados, um a um, por uma pinça. Na sequência, aparece um vereador bolsonarista de Recife, Fred Ferreira, dizendo: “É, Lula, você fala do direito à vida matando uma criança dentro do ventre. É difícil. Lhe tirando todo direito à vida. Se a pauta da família e a pauta dos valores são muito atrasados, prefiro ser conservador e defender a vida, os valores e a família”. Em outra mensagem enviada após encaminhar o vídeo, Bolsonaro manda uma foto de Lula com a frase “Abortista, genocida de inocentes”, em letras garrafais.
Nas primeiras horas da manhã seguinte, precisamente às 6h32, ele volta torpedear o PT, Lula e seu novo aliado, desta vez misturando ao ataque pitadas da sua retórica sobre a lisura do processo eleitoral: “O vice do Lula tem uma mensagem muito especial para todo o Brasil. Impensável essa dupla do mal, com eleições limpas, ganhar qualquer pleito”. Depois, manda outro vídeo de Alckmin da campanha de 2018, no qual o agora vice de Lula chama o PT de “a própria escuridão, sempre radical e extremista e que foi envolvido no maior esquema de corrupção do mundo, o petrolão”. Sobrou ainda para João Doria, que havia acabado de iniciar uma viagem ao Nordeste. O presidente compartilhou um vídeo do ex-governador de São Paulo sendo recebido em Rio de Contas, na Bahia, por uma banda marcial. As imagens, que também seriam compartilhadas nas redes sociais por Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, não mostravam a presença de público. Bolsonaro fez troça. “Praça lotada. É muita popularidade do Calcinha”, escreveu.
Artistas críticos ao governo viram memes no WhatsApp do presidente, que dá vazão, ali, às montagens que recebe. É o caso de um vídeo do Canal Paródia Gospel que achincalha declarações recentes de Taís Araújo, Lázaro Ramos e Adriana Esteves sobre o governo. A edição feita pelo canal junta às críticas do trio ao presidente manchetes sobre o corte de verbas oficiais para a Globo e sonoras gargalhadas de Bolsonaro. Com frequência, o presidente antecipa, nas mensagens de WhatsApp que envia aos aliados, fake news que logo depois aparecem disseminadas publicamente por seus apoiadores nas redes. No dia 9, ele enviou um vídeo maldosamente montado que faz crer que a cantora Daniela Mercury disse durante um show que Jesus é gay. “A falta da Lei Rouanet leva ao desespero a escória da cultura. Eles querem voltar com o PT”, escreveu o presidente ao compartilhar a gravação. O vídeo, no entanto, havia sido editado, emendando diferentes trechos de declarações que a artista fez durante uma apresentação realizada 2018. A versão original tem Daniela Mercury interpretando a música Tempo Perdido, de Renato Russo – era a ele, na verdade, e não a Jesus, que a cantora se referia. “Era gay! Gay! Muito gay! Muito bicha! Muito veado, sim!”, diz ela. A artista virou alvo de montagens disseminadas nas redes bolsonaristas depois de receber Lula em sua casa em Salvador.
Ao longo da semana em que Crusoé acompanhou as mensagens enviadas pelo presidente em sua lista de transmissão, há uma clara diferença no tratamento dispensado às pesquisas eleitorais. Se antes eram postas em dúvida pelo bolsonarismo, de repente elas passaram a ser confiáveis quando começaram a indicar o crescimento do apoio a Bolsonaro na corrida eleitoral. Em 8 de abril, o presidente distribuiu, em pleno horário de expediente (às 14h26 e às 17h31), links de reportagens noticiando a recuperação de sua popularidade e o encurtamento da distância para o candidato do PT. Mais uma prova de que até o discurso radical se amolda às circunstâncias. Nesta quinta-feira, 14, Crusoé enviou para o número do presidente uma mensagem perguntando se ele gostaria de fazer alguma declaração acerca dos conteúdos distribuídos em sua lista de transmissão no WhatsApp. Bolsonaro leu a mensagem às 2h52. Depois, bloqueou a repórter.
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