MarioSabino

A fake news antidemocrática de Dilma

22.04.22

Na noite de sábado passado, estava eu posto em desassossego em frente à TV, quando vejo aparecer Dilma Rousseff. Foi literalmente uma aparição. A senhora voltou a existir na propaganda partidária da organização do ex-condenado. Está mais magra e rejuvenescida, ao passo que eu estou mais gordo e envelhecido, na comparação que, naquele momento, pareceu-me inevitável. Pensei que talvez fosse o caso de ir para o aparelho de remo que jazia ali ao lado, mas logo desisti da ideia — já ando remando demais contra a corrente e não me pareceu razoável concretizar a metáfora em suor.

Estava eu ali, então, diante de Dilma Rousseff. E, como não dá para deixar de ouvir as palavras de uma aparição, visto que as aparições tomam conta de todos os sentidos quando dão o ar da sua graça — ou, no caso, desgraça —, fui compelido a ouvi-la. E a aparição disse o seguinte: “Nos governos do PT, as mulheres alcançaram avanços: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Lei Maria da Penha, do Feminicídio, Disque 180. Conquistaram posições de poder. Elegeram a primeira presidenta da República. O ciclo de 13 anos de conquistas foi interrompido pelo golpe. Agora é hora de assumir o que sabemos fazer de melhor: lutar pela vida, pela renda, pelo emprego e contra a inflação. Venha. Participe!”.

Depois que a aparição sumiu, pensei que Dilma Rousseff poderia ser mais utilizada nas propagandas do PT. Seria uma maneira eficaz de perder votos. Mas o pensamento se dissipou tão rapidamente quanto surgiu e foi substituído pelo seu exato oposto: talvez a maioria dos brasileiros esteja mesmo saudosa não só do ex-condenado como da sua “presidenta”. Desisti de tentar compreender o eleitor brasileiro e, para ser franco, a própria espécie humana.

Seja como for, intrigou-me que uma propaganda partidária, feita com dinheiro do fundo eleitoral, pudesse mostrar uma política de antigas envergaduras dizendo que houve um “golpe” no Brasil que tirou o PT do poder. Dilma Rousseff não citou explicitamente o seu impeachment, mas era a isso que ela fazia referência. Como é que uma ex-inquilina do Palácio do Planalto pode chamar de “golpe”, em propaganda partidária patrocinada por dinheiro público, um processo político-jurídico legítimo, que correu em obediência às regras da Constituição em vigor, no âmbito do Poder Legislativo e supervisionado pela mais alta instância do Poder Judiciário?

Depois de ouvir a aparição, fui procurar o Disque 180 do Tribunal Superior Eleitoral. Queria denunciar o ato antidemocrático e a fake news perpetrados por Dilma Rousseff na propaganda partidária do PT. Afinal de contas, chamar o impeachment de “golpe” é atentar contra os poderes constituídos, além de se tratar de divulgação de uma mentira escandalosa. Mas não há Disque 180 do Tribunal Superior Eleitoral.

Qual é a diferença entre um deputado bolsonarista que prega o fechamento do Supremo Tribunal Federal e uma petista, ex-presidente da República, que usa dinheiro público para deslegitimar a democracia brasileira, acusando-a de ter cometido um “golpe”? Nenhuma, zero diferença. Mas como a lei no Brasil é relativa, da mesma forma que as convicções morais, ela pune só o bolsonarista — e com espantosos 8 anos e 9 meses de prisão, parte deles em cana dura, mais a cassação do mandato, uma pena desproporcional ao crime efetivamente cometido de incitação à violência. O PT não está sendo festejado agora como um partido que sempre respeitou a democracia? Aquele professor brasileiro de Harvard não interrompeu Sergio Moro para dizer que o PT aceitou bem tanto o impeachment como a prisão do chefão do partido, contrariando tudo ao que assistimos ao vivo? Em nome da democracia, vamos perdoar o imperdoável e prender e arrebentar só quem está do outro lado — e estamos combinados na hora de ultrapassar limites constitucionais. Lei, ora a lei; realidade, ora a realidade; Dilma Rousseff, ora a Dilma Rousseff.

Fiquem aí com a sua “presidenta” e com quem a pariu. Mudei de canal e fui ouvir outra língua. 

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO