Bruno Poletti/FolhapressMarcelo Odebrecht: liberdade total no final de 2022

Como o STF pretende anular as principais provas da Lava Jato

Liderada por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, ala anti-Lava Jato do tribunal prepara terreno para decretar a "imprestabilidade" dos arquivos do departamento de propinas da Odebrecht
22.04.22

Quando foram assinados, em dezembro de 2016, os acordos de leniência da Odebrecht e de colaboração premiada de seus executivos faziam jus ao rótulo de “delação do fim do mundo”. O potencial das revelações feitas pela empreiteira era explosivo, não apenas pelos números superlativos —  eram 77 delatores, mais de 400 políticos delatados e 8,5 bilhões de reais a serem devolvidos aos cofres públicos –, mas também pelo farto acervo de provas do esquema de corrupção operado pela companhia ao longo de décadas. Sob a batuta de Marcelo Odebrecht, a companhia havia criado um departamento exclusivo para operacionalizar propinas, com dois sistemas secretos para trocas de mensagens e contabilidade envolvendo os pagamentos ilícitos. Estava tudo documentado e o metafórico “fim do mundo” para os corruptos parecia iminente.

Liderada pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, no entanto, a ala anti-Lava Jato do Supremo Tribunal Federal está pavimentando o caminho para tornar nulas — ou imprestáveis, no jargão jurídico — as mais robustas e consistentes provas do esquema de corrupção perpetrado pela Odebrecht. O plano, inaugurado para os processos envolvendo o ex-presidente Lula, no ano passado, e estendido em março passado ao empresário Walter Faria, dono do grupo cervejeiro Petrópolis, anula por completo um dos principais objetivos do acordo de leniência, que é a entrega de informações e documentos que comprovem o crime investigado. A anulação não comprometeria as vantagens oferecidas aos delatores nas colaborações premiadas. Ou seja, uma solução que mantém os benefícios concedidos aos corruptores confessos e livra a cara dos corrompidos.

Isso só está sendo possível porque as provas documentais do esquema da Odebrecht ficaram vinculadas ao acordo de leniência, uma espécie de delação feita por empresas nas quais eles se comprometem a revelar crimes, reparar os danos e não reincidir. Em 2017, a empreiteira forneceu à Lava Jato 54 terabytes de arquivos do sistema Drousys, usado para troca de mensagens secretas pelos funcionários do departamento de propinas da companhia, e do MyWebDay, onde era registrada toda a contabilidade paralela da Odebrecht, da origem ao destino do dinheiro sujo. Aos 77 delatores da empreiteira, coube esclarecer quem eram os destinatários da propina que apareciam com codinomes nos sistemas e contar como os acertos foram feitos e com quais objetivos.

Sem o Drousys e o MyWebDay, que eram criptografados e ficavam hospedados em data centers na Suécia e na Suíça, a megadelação da Odebrecht fica restrita aos depoimentos dos delatores. Embora sejam ricos em detalhes, os testemunhos, por si só, são insuficientes para resultar em condenação dos delatados. A lei das organizações criminosas, de 2013, que ampara os acordos de colaboração, estabelece que as delações são um meio de obtenção de provas. Como, no caso da Odebrecht, o grau de sofisticação do esquema criminoso era tamanho que as práticas ilícitas ficaram todas documentadas nos sistemas internos da companhia, inviabilizar o seu uso jurídico desidrata as denúncias e anula as condenações da Lava Jato. É isso que está em curso agora.

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência BrasilFabio Rodrigues Pozzebom/Agência BrasilGilmar e Lewandowski: tese que invalida o acordo de leniência da Odebrecht e anula processos da Lava Jato contra corruptos
A tese explorada tanto pelos advogados dos réus como pelos ministros anti-Lava Jato, com base no uso informal das mensagens hackeadas dos procuradores da extinta força-tarefa de Curitiba, é de que há uma “miríade de ilegalidades” envolvendo o acordo de leniência da Odebrecht. Duas delas se destacam, na visão dos algozes da operação: troca informal de informações dos procuradores do Paraná com autoridades americanas e suíças, sem que houvesse um acordo de cooperação internacional devidamente estabelecido, e quebra da cadeia de custódia dos sistemas de comunicação e contabilidade de empreiteira, porque em um dos diálogos hackeados do grupo liderado por Deltan Dallagnol há menção de que os HDs foram transportados em sacolas de supermercado.

Gilmar e Lewandowski já concordaram na “imprestabilidade” dos arquivos da Odebrecht e na “comprovada contaminação probatória do material”, por causa da alegada “manipulação inadequada” do acervo. Advogados, procuradores e juristas ouvidos por Crusoé nas últimas semanas disseram que é questão de tempo até que o STF declare as provas nulas para todos os réus, beneficiando dezenas de políticos que ainda estão enroscados na Lava Jato, como o ex-presidente Michel Temer, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o senador Renan Calheiros, o deputado Aécio Neves e o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, que será vice na chapa presidencial de Lula este ano.

O acordo de leniência e os acordos de delação da Odebrecht têm cláusulas de empréstimo mútuo de provas, mas são distintos. É perfeitamente possível anular as provas de um e manter os benefícios dos outros. Se isso realmente ocorrer, o estrago vai ser grande”, disse, sob reserva, um procurador que assinou os acordos pelo MPF. Para o criminalista Eduardo Sanz, um dos advogados de Marcelo Odebrecht, o acordo feito pelo ex-presidente da empreiteira estará preservado, independentemente da decisão sobre a leniência. “Certamente o colaborador não pode ser responsabilizado pela conduta ilícita do Estado. Não vejo nenhum risco aos colaboradores em face desses fatos”, afirma. Marcelo Odebrecht, aliás, já conseguiu no STF, por decisão do ministro Edson Fachin, a redução de sua pena de dez para sete anos e meio, além da liberação de 11 milhões de dólares de uma conta na Suíça. No fim do ano, o ex-presidente da empreiteira, que hoje cumpre regime aberto, não precisará mais se recolher aos fins de semana, nem prestar serviços comunitários, e poderá se dedicar ainda mais à guerra judicial travada com o pai, Emílio Odebrecht, pelo patrimônio da família.

Anular o acordo de leniência por inteiro poderia beneficiar a Odebrecht, agora batizada de Novonor, que está em recuperação judicial, com dívida próxima a 100 bilhões e dificuldade de honrar as prestações combinadas com o MPF. Isso resultaria em um impasse: o que fazer com os milhões que a empreiteira já devolveu aos cofres públicos? A previsão feita por quem acompanha o caso de perto é que o acordo de leniência será mantido, por interesse do Ministério Público e da União no que se refere ao dinheiro a ser devolvido, mas todas as provas originadas dele serão declaradas nulas. “O que a União ganharia anulando a leniência? Nada. E ainda abriria uma brecha para a Odebrecht não querer pagar as multas”, disse a Crusoé uma fonte próxima à empreiteira. A aposta nos bastidores é que a anulação das provas será feita de forma global, em efeito cascata, beneficiando não apenas Lula e Walter Faria, mas todos os delatados pela empreiteira. A decisão seria sacramentada depois das eleições, quando se projeta um cenário político menos conturbado. “O que está acontecendo é uma verdadeira garimpagem para passar uma borracha em tudo e tentar apagar a História”, resume um experiente procurador da República.

Não faz quatro anos que um perito da Polícia Federal que se debruçou sobre os arquivos secretos da Odebrecht sugeriu que o engenhoso setor de propinas da empreiteira virasse peça de museu, para que os brasileiros jamais se esquecessem do esquema de corrupção que assolou o país. Era 2018 e, assim como o perito federal, milhares de brasileiros acreditavam que seria possível vencer a guerra contra a corrupção. Hoje, quem combateu do outro lado é que está sendo aniquilado.

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