MarioSabino

Ali Akbar

28.04.22

Nesta edição da Crusoé dedicada à liberdade de expressão, resolvi tirar Ali Akbar da minha caixa de assuntos. Ali Akbar era o último vendedor de jornais ambulante de Paris. Durante a pandemia, preso em São Paulo, li em sites franceses que ele havia se aposentado — o que só aumentou a minha sensação de que o meu velho mundo também estava dando o seu derradeiro suspiro. Quase setentão, Ali Akbar dizia estar cansado de andar de 15 a 20 quilômetros por dia, vendendo o seu pão de informação.

Ali Akbar é paquistanês de origem. Nasceu perto da cidade de Islamabad. Começou a trabalhar aos 6 anos, carregando sacos de cimento mais pesados do que ele, em canteiros de obras de Rawalpindi. Para escapar de uma prisão existencial recheada de violência e abusos, inclusive estupro, embarcou na marinha mercante, quando tinha 17 anos. Rodou o mundo e chegou à França em 1973. Fez uma escala em Le Havre e resolveu ficar no país. Dormiu debaixo de pontes e em porões. Começou a sua vida de vendedor de jornais ambulante com o Charlie Hebdo, o semanal satírico cuja redação foi dizimada por terroristas islâmicos, em janeiro de 2015. (Eu soube do atentado, aliás, por meio de Ali Akbar, que entrou no restaurante onde eu estava almoçando e anunciou aos clientes a tragédia que ainda não saíra nos jornais.) Quem lhe deu o trabalho foi um dos fundadores do Charlie Hebdo, Georges Bernier. Ali Akbar contou à revista Le Point que, muitas vezes, se sentiu constrangido por vender o jornal, por causa das charges atrevidas de Maomé. “Você sabe, venho de uma família puritana: muçulmana, com tendência budista”, disse.

Quando se tornou vendedor de jornais ambulante, havia quarenta profissionais como ele em Paris. Ao gritar os títulos divertidos do Charlie Hebdo, com o seu sotaque cantado e jeitão simpático, ele caiu nas graças dos habitantes do bairro de Saint-Germain-des-Prés. Já conhecido da vizinhança, passou a vender também o jornal Le Monde, que saía mais numa região repleta de ministérios, editoras e escolas superiores. A sua técnica para passar adiante o jornal sisudão era gritar manchetes engraçadas na sua inexistência. Uma delas o anunciava como finalista do Goncourt, o principal prêmio literário da França. Outra dizia que Patrick Balkany, um dos maiores corruptos da política francesa, havia “devolvido todo o dinheiro”. Nos anos 1990, Ali Akbar chegava a vender mil jornais por dia. Nos últimos tempos, não vendia mais do que 50, e boa parte dos clientes comprava porque o considerava um amigo a ser conservado. Ele ganhava 30 centavos de euro por exemplar vendido. Em 2017, o Le Monde não queria mais que Ali Akbar vendesse as suas edições, a fim de entregar tudo a um único distribuidor, mas o pessoal da Sciences Po se mobilizou para que a direção do jornal voltasse atrás na decisão. Voltou.

Com a venda de jornais, ele construiu a sua vida na França, formou uma família (cinco filhos) e fez fama em Saint-Germain-des-Prés. Ali Akbar atravessou muitas fronteiras para chegar a Paris, mas estabeleceu limites bem precisos para vender jornais, gritando manchetes tão inexistentes quanto divertidas, sempre com um boné de beisebol enfiado na cabeça. “Ça y est, ça y est, número special du Monde…” e lá vinha ele. O seu perímetro preferido era demarcado pelo Théatre de l’Odéon, o Jardin du Luxembourg, o Bon Marché e o Boulevard Saint-Germain. Quando você sai do Boulevard Saint-Germain e pega a pequena rue des Ciseaux, em direção à rue du Four, os dois blocos do único quarteirão enquadram, lá no fundo, um retrato em grafite de Ali Akbar. É a Mona Lisa do bairro.

Ainda enclausurado em São Paulo, li que havia sido organizada uma vaquinha para comprar uma espécie de food truck para ele, a ser instalado perto de um portões do Jardin du Luxembourg, numa das bordas do seu perímetro. Os panfletos da vaquinha anunciavam a sua aposentadoria à maneira das manchetes gritadas por ele: “Ça y est, ça y est… Ali prend sa retraite”. Fiquei triste por mim e pelo meu velho mundo, mas alegre por sabê-lo tão cheio de amigos (7 mil pessoas participaram da vaquinha).

Depois de mais de dois anos de pandemia, voltei a Paris. Eu estava almoçando no mesmo restaurante onde soube do atentado ao Charlie Hebdo, quando ouvi um “Ça y est, ça y est, Poutine se retire de l’Ucraine!”. Tive um élan de joie, como na música de Charles Aznavour. Ali Akbar estava ali, todo serelepe, com os seus exemplares de jornal e as suas manchetes imaginárias. O último vendedor de jornais ambulante de Paris não se aposentara. Esqueçam alguns verbos no passado usados por mim neste artigo. O meu velho mundo ainda resiste.

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  1. Et voilà Sabino: Ça y est, ! Aussi mon élan de joie,1971, le même arrondissement , chez Sorbonne au 14ème, FIAP...

  2. Historia saudável para aliviar o espírito pessimistas da situação política de nosso país. Se tivessemos um Ali Akbar que bom seria.

  3. Merci, Mário Um texto precioso em qualquer tempo verbal. Superação e espírito de sobrevivência, a arte da convivência mesmo diante de profundas diferenças. No fim de sua andanças, o seu grande personagem foi capaz de mobilizar muitos por sua causa. Já que ele continua firme em seu caminho, ele bem que podia anunciar algumas boas notícias para nós. Fale com ele, quem sabe? Só temos que trabalhar sério para que não fique apenas em nossa imaginação.

  4. Sou do tempo em que este artigo era chamado de crônica. Muito bem escrito, com a leveza que uma discreta melancolia torna obrigatória. Parabéns!

    1. Continua sendo, caro Rogério Augusto. É crônica, sim.

  5. Puxa vida q história linda! Pensei um monte de coisas enquanto lia, mas ñ cabem em 500 caracteres... Fiquei triste pelo Ali pq... poxa q vida difícil, q infância triste! Achei divertido (acho divertido) o sr falar dos lugares franceses como qm fala ali... da esquina de casa (pode ser inveja tb, mas acho q ñ😜)! Fiquei "preocupada" sobre a aposentadoria do Ali, como é o jeito francês? Deve ser ruim tb pq ele teve q voltar pro trabalho! Esse seu jeito de falar "velho mundo" acaba cmg! 🙈🥲🤷‍...

    1. Não se comover com a história do "último jornaleiro ambulante de Paris", quiçá da França, o magnânimo ALI AKBAR, só se for uma pessoa de coração frio! É uma crônica para se ler consternado e solidário a essa grande pessoa! Parabéns, jornalista Mário Sabino, e faço das palavras de sua crônica as minhas! Thank you!

  6. Agora vem você com seu texto me lembrar que há uma humanidade que sobrevive e merece ser chamada de humanidade! Aí voltei a chorar!

    1. Sim , a humanidade resiste , porque a vida é uma coisa maravilhosa. O difícil é encontrar alguém como Mario Sabino que coloca em palavras toda esta universalidade. Embora conheça Paris, leitor avido, principalmente de jornais, não sabia da existência de Ali Akbar.

  7. Mário, meu amigo, ando muito chorão. A semana passada não conseguia parar de chorar ao constatar que realmente os brasileiros inventaram um carnaval na data de Tiradentes e do descobrimento do Brasil, ignorando a morte de milhares de ucranianos por um capricho de Putin, o louco e que naquela madrugada, à uma da manhã, uma jovem foi levada à morte ao ser atropelada por um carro alegórico, com sua mãe, grávida, provavelmente tomando cerveja e discutindo o enredo da escola de samba.

  8. Grata Mário, por sua maneira de ver e sentir o cotidiano. Grata, também, por me fazer voltar às lembranças de Paris. A boa memória não envelhece…

  9. Que lindo. Me emocionei ao ler tão delicado texto e lembrar que aqui em Florianópolis tínhamos um jornaleiro também muito especial. Todos os dias quando caminhava rumo ao colégio já escutava longe seus grito de "Olha o Globo," com suas manchetes. Eu criança, ele já mais para velho que novo. Foi assim até minha adolescência quando um dia ele já não estava lá. As agruras da vida e a doença o levara e assim as manhãs no centro da cidade ficaram vazias de sua presença é mais tristes.

  10. Você sempre me leva em suas viagens a cantos tão líricos inatingíveis a qualquer pessoa normal. E nesses horas de leitura nobre, amo você mais ainda. Obrigada. ♥️

  11. Com seu jeito simples e sorriso maroto surpreendia turistas entendíados e indiferentes. Escreveu um lindo livro sobre seu percurso e lutas. Lição de integração e resiliência.

  12. Relato emocionante que demonstra mais uma vez a sensível e atenta jornada do narrador, nestes tempos tão inesperados quanto difíceis que a gente compartilha…

  13. Muita tristeza ao constatar que as grandes cidades e seus bairros icônicos pioraram! Tradicionais lojas e restaurantes fecharam, figuras ilustres se foram, recordações se diluíram… reconhecer esse ou aquele “antigo” traço, cruzar com um velho conhecido, tudo isso dá um aperto danado no coração!

  14. Grata, Mario, por sua sensibilidade. É preciso "afinar" a alma de tempos em tempos - pra não morrer antes da hora - e suas crônicas me alimentam de uma beleza e um frescor quase esquecidos. É quando redescubro o poder das páginas literárias.

  15. Texto delicioso, Sabino! Sua sensibilidade é contagiante. Sou super fã da Crusoé, mas devo dizer que esta edição está fantástica! Parabéns a todos!!!

  16. Ao ler o MÁRIO SABINO compreendo bem seu mundo e suas angústias. Morei 30 anos em São Paulo e hoje estou em Porto Alegre. Quando lá estive da última vez, senti muita tristeza ao passar pela velha Barão de Itapetininga sem a confeitaria Vienense e o escritório de GUILHERME DE ALMEIDA no andar superior, além das livrarias e bancas de jornais. Porisso tudo o MÁRIO nos mostra com maestria a velha Paris para que possamos confrontar a Paulicéia Desvairada com a Cidade Luz!

  17. Três coisas Mário Sabino: Amo você, adoro ler seus artigos e gosto também de ler os comentários, ver como tantos elogiam a sua inteligência e amam você. Parabéns.

    1. Maria Eduarda, quem não ama Mário Sabino? Só um louco, fanático ou algum canalha não o ama. Eu também gosto de ler os comentários e os elogios que ele recebe. São suaves e belos.

  18. Acho que o mundo está chato Sabino. Deve ser por causa dos meus 65 anos. O Belo não é mais visto, o feio e o bizarro são cultuados e o conceito de certo e errado estão invertidos. O gosto coletivo são duvidosos. Prefiro viver na bolha do mundo Sabino/Ali Akbar.

  19. Muito legal o paralelo do Ali Akbar com o velho mundo e a liberdade de expressão como elo de tudo isso : o velho mundo livre materializado num vendedor ambulante de jornais, anunciando comicamente manchetes inexistentes. Tudo com alegria e solidariedade. Se fosse aqui no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor seria usado para multar o pobre Ali por supostamente propagar informações falsas, teria inquérito de fake news... afff

  20. Mario, temos quase a mesma idade e seu texto e suas lembranças têm o dom de me emocionar, sem nunca ser piegas. Obrigado

  21. Uma história que mexe com o coração e traz esperança Quantos milhões de Ali Akbar estão espalhados pelo mundo, sofrendo seus revezes, mas sendo valorizados por admiradores secretos.

  22. Você é mais que demais, Mário! Amo seu jeito de falar sobre coisas simples de uma forma suave. Você, Diogo Mainard e Ruy Goiaba fazem a minha sexta-feira melhor (tá, depende) Só uma observação: Começo pelo Ruy, porque é a única diversão real da minha sexta-feira, e eu preciso rir Brasil e de mim mesma.

  23. Aumento do IR para as grandes fortunas, aliás, esqueçam o adjetivo: aumento do IR para os donos de fortunas. Basta da classe média suportar as bolsas dos pobres e os privilégios dos ricos. E que torre no inferno quem “odeia a classe média”, que as sete pragas atinjam a família desses que conseguem se esconder dos marginais vulgares porque não precisam andar nas ruas e vivem em bolhas blindadas e bem abastecidas.

  24. Excelente, que história gostosa de ler! O velho continente está firme e forte, mais humano que os novos!

  25. Emocionante! Ouvi os gritos de Ali Akbar ,andei pelas ruas de St Germain de Prés lendo seu artigo nesta manhã de sexta-feira. Grata por me trazer um pouco de esperança...

  26. É uma delícia participar de suas histórias, Mário e, através delas, de uma vida tão interessante. Entendo seu desconsolo, mais que o nosso, de viver num país tão deprimente.

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