MarioSabino

Haddad, o transcandidato

21.09.18

Poste, fantoche, marionete, boneco de ventríloquo, vassalo, lacaio, capacho. Nenhuma dessas imagens dá conta do estranho caso de Fernando Haddad e Lula. Trata-se de um fenômeno que vai muito além da total submissão política da qual a história está cheia em quaisquer latitudes. Dmitri Medvedev, por exemplo, é poste, fantoche, marionete, boneco de ventríloquo, vassalo, lacaio e capacho do déspota Vladimir Putin. É o preposto de plantão nos mais altos cargos de comando da Rússia, para fingir que existe alternância de poder no país. Mas Medvedev, ao que consta, jamais colocou uma máscara de Putin e disse que ele é Putin e que Putin é ele.

Ao que parece, ser ou não ser Lula esteve longe de ser uma questão para Haddad, a julgar pela tranquilidade com que aceitou despir-se da própria identidade e vestir a do chefe. E já que citei Shakespeare na diagonal, Haddad talvez até se dispusesse de forma espontânea a dar uma libra da própria carne ao Shylock de Garanhuns, apenas para exibir nove dedos – e, desse modo, corporificar a renúncia de identidade que serve tão somente ao projeto de liberdade e revanche do condenado. “Você não pode comer carne humana, mas se ela nada mais alimenta, alimentará a minha vingança”, diz o agiota Shylock, ao justificar o preço que cobrou de Antonio. Para o ressentido Lula, todos os que o condenaram e aplaudiram a sua condenação são Antonio (leia O Mercador de Veneza, vale a pena).

Embora não conheça pessoalmente Haddad, e o seu cotidiano me seja tão interessante quanto o meu a ele, fico intrigado com as eventuais repercussões cotidianas do fenômeno. Ao se olhar no espelho, ele perturba-se ao ver refletidas as suas próprias feições, a ponto de perguntar-se “onde está a minha barba”? Depois de um dia inteiro sendo Lula, ele volta a ser Haddad, ao sentar-se para jantar com a sua família, ou o ex-aluno de escolas de elite pede para que lhe passem “as travessa”? Na sequência do jantar, ele assiste a uma série da Netflix ou enche a cara de cambuci, lembrando os tempos de sindicato e “aquelas gostosa”? Haddad é Lula enquanto dorme? Explico: ele sofre de apneia e sonha em traçar uma rabada com polenta fora da cadeia?

Levamos os primeiros 25 anos construindo a nossa identidade individual — aquele conjunto de características com as quais tentamos nos diferenciar do outros. É um processo que começa no inconsciente, com a superação ou não do complexo de Édipo (pois é, sou um entusiasta do charlatão de Viena, de quem aconselho igualmente a leitura) e depois sobe a níveis mais ou menos conscientes. Na voragem hormonal da adolescência, a construção da identidade individual, que já passou pela moldagem familiar, é mais acentuada, tanto pela escolha da tribo a que se adere, como pela diferenciação que se busca dentro da tribo escolhida. Queremos ser iguais aos nossos semelhantes e ao mesmo tempo diferentes. Ao entrar na vida adulta, somos a síntese parcial dessas tese e antítese. Síntese parcial que determinará as nossas escolhas – e personas — profissional, intelectual, amorosa e ideológica. Nesse processo, é natural que possamos ter crises de identidade, expressão criada pelo psicanalista Erik Erikson.

Alemão naturalizado americano, Erikson sofreu bombardeio dos freudianos ortodoxos, ao concluir que a formação de um indivíduo estava em grande parte associada a vínculos psicossociais. Com base nisso, propôs uma espécie de roteiro para a criação de gente linda, bacana e sincera. Para ele, a chance de ser lindo, bacana e sincero aumenta exponencialmente se você cresce ajudado por pessoas lindas, bacanas e sinceras. Assim, pode até mesmo anular psiquismos inconscientes da infância mais tenra. Embora isso soe um tanto óbvio hoje, os freudianos ortodoxos acusaram-no de “higienismo” – “higienismo” está para a psicanálise e adjacências, assim como “golpismo” está para o petismo e adjacências. Erikson é um personagem curioso. Ao descobrir que não era filho do marido da sua mãe, mas de pai desconhecido, ele mudou o seu sobrenome judaico de Homburger para Erikson, ou “filho de Erik”, e se converteu ao luteranismo. A questão da identidade, portanto, não poderia deixar de ser central na sua obra. Ele sofreu uma crise de identidade, mas não trocou a sua por de outra pessoa, como Haddad. Se Erikson ainda estivesse vivo, eu o entrevistaria sobre o caso do petista.

Haddad Jekyll e o seu Lula Hyde não se encaixam, ainda, no transtorno dissociativo de personalidade, embora haja quem diagnostique patologia na adoração irrestrita ao condenado ou em qualquer culto à personalidade do qual autoritarismo e totalitarismos são pródigos. Fosse transtorno dissociativo de personalidade, teria se apresentado mais cedo na vida de Haddad. Não há registro de que o moço tenha se passado por Lula quando estava nos bancos do Colégio Bandeirantes. Quanto ao culto à personalidade, sem dúvida a afecção está presente na operação mental que permitiu a Haddad renunciar à sua própria. Porém não a explica inteiramente. Jaques Wagner, por exemplo, recusou-se a fazer esse papel, embora idolatre Lula.

Eu tendo a crer que o fenômeno que acomete Haddad só não causa maiores perplexidades do ponto de vista psicológico, porque hoje a identidade virou mercadoria de supermercado sujeita aos direitos do consumidor. Vende-se a ideia de que podemos trocar facilmente de características essenciais como quem troca de cuecas ou calcinhas. Ou cuecas por calcinhas e calcinhas por cuecas. É uma ideia falsa martelada na imprensa e na televisão. Ora, se você pode ser trans isto ou aquilo, qual é o problema de assumir a identidade de outro político e tornar-se um transcandidato?

Sei que “Haddad é Lula e Lula é Haddad” é um evidente estelionato eleitoral e que a minha elucubração soará desnecessária – e até mesmo tola — a vários leitores. Mas sigo espantado e intrigado, porque o caso de Haddad é único na história mundial. Será que ele vai cortar o mindinho da mão esquerda? Pior: será que já não vê o mindinho da mão esquerda mesmo o tendo conservado?

Eu ficaria mais tranquilo se Haddad afirmasse ser Napoleão Bonaparte. E pusesse um chapéu de duas pontas até o próximo 7 de outubro.

 

 

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