Montagem com fotos de Adriano MachadoBolsonaro e Haddad: a disputa está cada vez mais polarizada

O plebiscito do século

Polarizada entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, a disputa presidencial mais renhida de todos os tempos se transformou, já na campanha de primeiro turno, em duelo entre petismo e antipetismo. No meio do tiroteio, há um país a ser recuperado de uma situação lamentável
21.09.18

Em uma das últimas conversas que tiveram na cela na sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula cumpre prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente foi claro na missão a ser cumprida por Fernando Haddad: “Em 2012 eu precisava de um candidato com a cara do PSDB para ganhar em São Paulo. Você cumpriu. Em 2018, para ganhar no Brasil, preciso de um candidato com a cara do PT. Quero o confronto”. No contrato informal selado entre os dois estava o combate intransigente à Lava Jato, a defesa de uma política econômica menos liberal e mais intervencionista e, claro, a devoção suprema ao próprio Lula. Haddad deixaria o encontro transformado. Ali saía de cena o petista moderado, que antes via com ressalvas os métodos usados pelo PT para conduzir a economia e defendia que os companheiros fizessem uma autocrítica depois dos escândalos que marcaram a passagem do partido pelo governo federal. Vestindo a nova máscara, a de substituto de Lula na corrida presidencial, Fernando Haddad assumia um novo personagem: adepto do populismo econômico, agressivo e leniente em relação ao mensalão e ao petrolão. A missão que Lula acabara de lhe dar era clara: eleger-se presidente da República e, então, conduzir com mão de ferro o processo de enfraquecimento da maior operação anticorrupção da história do país.

Haddad vem cumprindo com certa desenvoltura o processo de subversão de sua identidade original. Desde o dia em que foi anunciado como substituto de Lula na corrida presidencial, ele subiu 13 pontos no Ibope e sete no Datafolha. Herdou boa parte dos votos do chefe petista e se consolidou como o principal nome da centro-esquerda na disputa, deixando para trás os candidatos Marina Silva e Ciro Gomes. Sua ascensão foi acompanhada, no outro extremo, por Jair Bolsonaro, vítima de um atentado a faca no dia 6. No mesmo período do petista, o ex-capitão se estabilizou na liderança após subir seis pontos no Ibope e quatro no Datafolha, amealhando votos que antes eram destinados a candidatos de centro-direita, como Geraldo Alckmin, João Amoêdo e Alvaro Dias. A menos de três semanas do primeiro turno da mais renhida sucessão presidencial da história brasileira, as intenções de voto em Bolsonaro e Haddad se assentam a cada pesquisa e, desde já, dão à eleição o caráter de um grande plebiscito entre o petismo e o antipetismo.

Esse cenário se desenha e se consolida na mesma medida em que diminuem os votos brancos e nulos, assim como o número de eleitores que antes diziam não ter candidato. O Sr. Ninguém perde fôlego, ao contrário do que se imaginava. Conforme se aproxima o primeiro turno, mais eleitores fazem a sua opção, com um componente que tem se demonstrado forte nesta reta final: o voto útil. Segundo a última pesquisa Ibope, divulgada na terça-feira, mais de um terço dos entrevistados disseram ser alta ou muito alta a chance de votarem em um candidato que não seja de sua preferência para evitar que outro ganhe. De um lado, são eleitores avessos ao PT que admitem votar em qualquer candidato que impeça Haddad de vencer. De outro, há eleitores avessos a Bolsonaro que admitem mudar de voto para ajudar a derrotar o candidato do PSL. Um fator que demonstra o viés plebiscitário é a configuração, ao menos nas pesquisas, de um país dividido social e territorialmente. Nas sondagens mais recentes, Haddad cresceu muito no Norte e Nordeste, entre os eleitores com renda de até um salário mínimo mensal e com formação até a quarta série do ensino fundamental. Bolsonaro domina o outro extremo. É forte no Sul e no Sudeste, entre eleitores com curso superior e renda maior que cinco salários mínimos.

ReproduçãoReproduçãoJair Bolsonaro, em transmissão a partir do leito do hospital: o candidato do PSL faz campanha pela internet
As coordenações das duas campanhas que lideram a disputa até aqui avaliam que, com vaga praticamente garantida no segundo turno, a hora é de acenar não só aos demais partidos, mas principalmente ao eleitor moderado para vencer a eleição. O grupo próximo a Bolsonaro, por exemplo, repreendeu nesta semana o vice, general Hamilton Mourão, por suas declarações. Na segunda-feira, Mourão afirmou que famílias em que os filhos são criados por mães e avós têm mais probabilidade de virar “fábrica de elementos desajustados que tendem a ingressar nessas narco-quadrilhas”. Na semana passada, ele defendera uma nova Constituição sem uma Assembleia Constituinte. O general também disse  que, em situação de caos institucional, as Forças Armadas seriam acionadas, como previsto pela Carta Magna — uma das falas de Mourão que ajudaram a alimentar o discurso dos adversários de que, uma vez eleito, Bolsonaro promoverá um autogolpe, com apoio dos militares, para permanecer no poder. Já no PT, se antes o objetivo de Haddad era absorver ao máximo os votos que seriam destinados a Lula, o eleitor de centro passou a ser o alvo. O próprio candidato já menciona a possibilidade de aliança com Alckmin e Ciro no segundo turno e tenta fazer inflexões no discurso sobre a Lava Jato. Nos últimos dias, jogando com as palavras, ele negou publicamente a possibilidade de conceder indulto para soltar Lula – mas deixou aberta a janela para que “se faça justiça”.

No PT, o indulto presidencial não é tratado como o caminho preferencial em caso de vitória, mas está longe de ser descartado. O ideal, na visão da cúpula do partido, seria promover uma concertação entre os Três Poderes. “Concertação” é uma palavra elegante para definir do que de fato se trataria. Paralelamente, para livrar Lula da prisão, o partido segue apostando em uma solução “de fora para dentro”. O plano é insistir na cantilena falaciosa de que o Comitê de Direitos Humanos da ONU tem autoridade para declarar a prisão injusta e, no ano que vem, caso Fernando Haddad ganhe a eleição, usar essa balela para embasar um processo que resulte na libertação do ex-presidente, sem passar a impressão de que as leis foram atropeladas. Missão difícil. Claro está que vencer o pleito imporá a Haddad a obrigação de costurar “um grande acordo nacional” – aquele das célebres palavras do ex-aliado Romero Jucá – que seja capaz de emparedar a Lava Jato. Tudo, sempre, sob a tutela de Lula.

Em privado, petistas admitem que o ex-presidente será o dirigente de fato do país no caso de vitória de Haddad. Uma surpresa, não é mesmo? Enquanto estiver preso, a comunicação se dará por meio de emissários. Se for solto, muito provavelmente ocupará um ministério. O novo projeto do PT já está tão definido que, nas conversas, os petistas lançam mão até de um antecedente sul-americano para ilustrar o que seria a situação. O paralelo histórico está na Argentina de 1973. Naquele ano, do exílio, o ex-presidente Juan Domingo Perón, inabilitado para concorrer porque estava fora do país havia 17 anos, escolheu o ex-presidente da Câmara Hector Cámpora, “El Tío”, para ser o seu candidato sob o lema “Cámpora no governo, Perón no poder”. O ungido não só venceu como renunciou menos de dois meses depois para abrir espaço para novas eleições vencidas por Perón. A situação é semelhante à do PT de 2018. Com a diferença de que não está no roteiro a renúncia de Haddad para Lula assumir. A ideia é que o chefão seja o presidente “de fato”. Haddad seria o presidente “de direito”.

Renato Gizzi/Photo Premium/FolhapressRenato Gizzi/Photo Premium/FolhapressFernando Haddad em campanha em Guarulhos (SP), na quarta-feira: onipresença de Lula
Nos sonhos dos petistas, as urnas darão respaldo popular a uma espécie de revisionismo da Lava Jato. “Se ganharmos, a população estará dando o recado de que o combate à corrupção precisa ser feito dentro da Constituição. Temos que discutir com a sociedade como aperfeiçoaremos o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, disse a Crusoé o deputado Paulo Teixeira, um dos parlamentares mais próximos de Fernando Haddad e que auxilia a legenda na interlocução com os tribunais superiores. Sim, ele disse isso. Para não repetir os erros cometidos pelo poste anterior, a ideia é que, caso Haddad vença, Lula exerça sobre ele uma influência muito maior do que a que exercia sobre Dilma Rousseff. Dilma foi alvo de impeachment após quebrar o país e abrir mão da interlocução com o Congresso. Para Lula, ela descuidou da política. O mesmo erro, na visão dele, foi cometido por Haddad quando foi prefeito de São Paulo — ele teria feito um governo voltado para a classe média paulistana e, por isso, perdeu no primeiro turno ao tentar se reeleger. Lula tem dito que erros assim não podem se repetir. Para o condenado, os erros são sempre dos outros.

Da cadeia em Curitiba, uma das tarefas de Lula no sentido de moldar o novo poste presidencial a seu gosto é, neste momento, contornar a rejeição interna ao candidato. Como disse um petista a Crusoé, “Haddad era o plano C do PT para 2018”. Só foi escolhido depois que Lula caiu na Ficha Limpa e Jaques Wagner recusou o desafio de se candidatar ao Planalto. A relação de Haddad com a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, por exemplo, é de desconfiança. Ela sonhava em ser a escolhida de Lula. Preterida, não acredita, segundo seus interlocutores, que ele fará o enfrentamento que Lula e o PT precisam fazer à Lava Jato. Aliás, é justamente do grupo de petistas mais atingidos pela operação que costumam partir os maiores ataques a Haddad.

O azedume interno tem relação com o estilo do candidato de Lula. O ex-prefeito nunca conseguiu formar, dentro do partido, um grupo para chamar de seu. Nas vezes em que precisou se relacionar com a máquina petista, não se saiu bem. Sua relação com a esquerda sempre foi mais acadêmica do que política. Haddad é um marxista convicto. Formado em direito pela USP em 1985, defendeu cinco anos depois sua tese de mestrado na Faculdade de Economia, sob o título “O caráter socioeconômico do sistema soviético”. Sim, é de dar comichões. Durante os anos 1990, ajudava Guido Mantega na formulação de políticas públicas e de programas de governo do partido. Ocupou sua primeira função pública relevante como chefe de gabinete da secretaria de Finanças de Marta Suplicy em São Paulo. A vitória de Lula em 2002 abriu caminho para que ele fosse trabalhar em Brasília. Primeiro, com Mantega no Ministério do Planejamento. Depois, na secretaria-executiva do Ministério da Educação com Tarso Genro. Mais tarde, foi finalmente alçado ao cargo de ministro da pasta.

Divulgação/TV AparecidaDivulgação/TV AparecidaDebate nesta quinta-feira, na TV Aparecida: os demais concorrentes têm esperança de que o cenário da corrida mude nos próximos dias
Lula via em Haddad um professor universitário afinado com a classe média paulistana, a chance de avançar sobre uma faixa da população historicamente arredia ao petismo e, àquela altura, incomodada com o mensalão. O Haddad ministerial chegou a Brasília como uma estrela ascendente. Ao mesmo tempo, as desavenças no interior do partido se intensificavam. À boca miúda, petistas o classificam como “arrogante”, “intragável”, “cheio de exigências”. A lista inclui o apelido de “Fernando Vaidade”. Os críticos o tacham ainda de “vacilão” e “errático”. Dizem que, quando tinha o poder nas mãos, seja como prefeito, seja como ministro, “tomava decisão e ficava em dúvida depois”. “Ele sempre teve pouca confiança no que decidia”, diz um dos queixosos do estilo do candidato petista.

Se no ministério Haddad já não era visto por muitos petistas como o companheiro ideal, na prefeitura de São Paulo as relações internas se esgarçaram ainda mais, na mesma medida em que a dependência de Lula aumentava. De cara, ele permitiu que o ex-presidente loteasse todo o seu governo entre petistas e aliados. As correntes internas do PT paulistano ficaram com as áreas que detinham maior volume de recursos. As demais foram divididas entre integrantes do “Centrão” da capital paulista, que, assim como no Congresso, carrega a marca do fisiologismo. Acordos nacionais foram reproduzidos na esfera municipal. O então ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, atual líder na Câmara do governo Michel Temer, indicou o secretário de Habitação. O MDB de Temer ocupou duas pastas – para uma delas, indicou uma das filhas do atual presidente. O PTB de Roberto Jefferson também esteve presente. A divisão do latifúndio fez com que Haddad, inexperiente na administração de uma cidade do tamanho de São Paulo, perdesse o comando sobre diversos setores municipais. Eles foram tomados pelos políticos profissionais. “Era um relacionamento extremamente clientelista, com as subprefeituras loteadas, vereadores com indicados em tudo quanto é canto. Ele era inepto, não saía do gabinete, não ia nos bairros”, ataca o principal líder da oposição na época, Floriano Pesaro, do PSDB.

No plebiscito em que se transformou a eleição, Haddad é apenas a expressão de uma má ideia — a de soltar Lula e permitir que o condenado governe o país. Do outro lado, há uma vaga ideia — a de eleger Jair Bolsonaro para deter o plano petista de reconquistar o poder e também modernizar o país. O sistema político brasileiro não conseguiu regenerar-se para criar alternativas a essa polarização. No meio do tiroteio, há um país a ser recuperado da mais grave crise econômica da sua história, causada pelo primeiro poste lulista, e doente de qualquer ângulo que se examine: infraestrutura, educação, saúde, segurança e instituições. O confronto que o Brasil precisa ter é com a situação lamentável em que se encontra.

Leia a reportagem de capa que publicamos em maio sobre Jair Bolsonaro:

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