RuyGoiaba

O meu X-tudo é sem nazismo, por favor

05.05.22

Acabou nossa inocência: descobrimos que o McPicanha não tem picanha e que os ingredientes do Whopper Costela incluem apenas “aroma” de costela. Vocês leram sobre o caso na semana que passou, é claro: Procons estaduais foram para cima do McDonald’s e do Burger King, respectivamente, dizendo que as duas redes de fast food induziam o consumidor a erro nas propagandas dos sanduíches e ameaçando multá-las em até 11 milhões de reais. As empresas soltaram notas que diziam “mal aí, vacilamos” e prometeram mudar o nome dos hambúrgueres para algo mais fiel à realidade — mas nem tanto, já que o certo, McAroma “Natural” de Picanha, seria um fracasso de vendas.

Essa história me fez lembrar de um caso famoso ocorrido no Reino Unido, há uns 13 anos, quando a Procter & Gamble sustentou que sua batata frita Pringles não era batata: tinha 42% de certified batata, legítima, na sua composição, mas o restante era gordura e farinha. O que a multinacional queria era escapar do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) cobrado dos produtos enquadrados como “aperitivos” no país. Pois bem, não só não conseguiu — no fim, a Justiça britânica decidiu que a Pringles tinha de ser taxada como batata — como ficou célebre por admitir que um de seus produtos mais vendidos é uma não-batata, ou uma quase-batata. Sim, só falta agora revelarem que o Baconzitos não tem bacon.

O que me leva a uma questão quase metafísica: é pouco provável, eu sei, já que os Procons tendem a se concentrar em casos envolvendo grandes empresas. Mas e se um dia um fiscal aparecer no boteco da esquina e quiser autuar o dono porque o X-tudo vendido no pé-sujo não tem, well, TUDO? “Olhe aqui: esse cardápio de vocês está induzindo o consumidor a erro. Claramente, o sanduíche que é vendido como X-tudo não inclui tudo, como o estabelecimento alardeia. Não tem, por exemplo, ovas de esturjão do mar Cáspio, nem foie gras, nem guacamole, nem o menor resquício de um pastel de Santa Clara. E isso é só o começo da lista!”. “Tem, sim, é que a maionese verde da casa esconde um pouquinho o sabor. Mas é só o senhor procurar que acha.” Ou então o dono do bar, só para se poupar do trabalho e da multa, vai desistir do X-tudo e começar a vender X-nada — só com pão, queijo e a carne produzida pela sua imaginação.

Já pensei em escrever uma história na qual o X-tudo seria como o Aleph do conto de Jorge Luis Borges, “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos” e que podia ser encontrado, sabe Deus por quê, no porão da sala de jantar do poeta Carlos Argentino Daneri. O freguês se senta no banco sem encosto do balcão do bar, pede o X-tudo, morde o sanduíche e vê todas as civilizações presentes, passadas e futuras; esta galáxia, as próximas e as distantes; impérios nascendo e morrendo, a circulação do próprio sangue, a quadra de futsal onde ele levou uma bolada na boca aos oito anos, o lado B de um compacto do Agnaldo Timóteo, o movimento das folhas de plátano em um bosque canadense, a escalação completa do Guarani campeão brasileiro de 1978, Shakespeare assoando o nariz etc. Tudo isso acompanhado por maionese verde da casa e aquelas batatinhas fritas em óleo velho.

Jamais escreverei o conto porque, obviamente, Borges teve a ideia antes e a executou muito melhor do que eu poderia sonhar em fazer — fora que “Aleph” é um símbolo muito mais arcano e charmoso do que “X-tudo”. Também não tenho nenhuma esperança de encontrar o X-tudo verdadeiro, com TUDO dentro, nas minhas andanças pelos bares paulistanos. Mas, se um dia começarem a vendê-lo por aqui — nunca se sabe, a gastronomia evoluiu tanto, de repente a Helena Rizzo ou a Paola Carosella estão para incluir a iguaria nos seus cardápios —, já deixo registrado que o meu X-tudo é sem nazismo. E sem azeitona, por favor.

***

A GOIABICE DA SEMANA

É dificil escolher apenas uma baboseira no meio da torrente que Lula despejou em sua entrevista à Time. A mais óbvia, e que repercutiu bem à beça na opinião pública internacional (só que ao contrário), foi dizer que Volodymyr Zelensky, presidente de um país invadido e que em nenhum momento atacou a Rússia, era “tão culpado” pela guerra na Ucrânia quanto o carniceiro Vladimir Putin — claro, assim como a culpa por aquela invasão nazista em 1939 foi dos poloneses. E isso depois de ter dito que, no Brasil, o conflito “seria resolvido em uma mesa tomando cerveja”. Também afirmou que “nós não discutimos políticas econômicas antes de ganhar as eleições”, o que dá a entender que aqueles 45 parágrafos da “Carta ao Povo Brasileiro” de 2002 eram um poema em prosa.

É o que dá deixar o grande gênio político de vocês (não vocês aí, outros vocês) falando o que dá na telha e se achando lindo — sem os adestradores das campanhas anteriores, como Duda Mendonça e João Santana, e cercado apenas do cordão de puxa-sacos batendo palminha. Se continuar caprichando assim, será ultrapassado até por Jair Bolsonaro e seu QI de temperatura ambiente.

Ricardo Stuckert/Flickr/LulaRicardo Stuckert/Flickr/LulaLula não pode ver uma casca de banana na frente que vai logo escorregar nela

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