MarioSabino

Um dia, um pai

05.05.22

Ava Gardner entrou na minha vida numa tarde de 1999, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, quando estava visitando o meu pai, que havia sido internado depois de ser atropelado por um táxi, em frente à igreja onde assistiria a uma missa.

Meu pai tinha 67 anos e ficara cego havia seis, justamente no ano em que nasceu o meu primogênito. Degeneração macular. Nunca enxergou direito o primeiro neto e muito menos o segundo, nascido 12 anos depois do meu segundo filho, quando a sua doença ocular estava ainda mais avançada. Meu pai, o verdadeiro Mario Sabino (sou Mario Sabino Filho), completaria 90 anos no último dia 2 de maio. Morreu aos 75. No dia do aniversário dele, postei no Twitter o seu retrato de médico quando jovem que está pendurado aqui no meu escritório. A foto foi muito apreciada. Meu pai era um homem tão bonito quanto atormentado. Perdeu a mãe quando tinha seis anos. Ela morreu durante o parto de uma irmã. Dias antes, ele havia corrido ao seu encontro, para abraçá-la, e se chocou contra a barriga da minha avó gestante, que exclamou: “Ah, você me matou!”. Meu pai achava, assim, que havia matado a própria mãe, opinião compartilhada por meu avô, na sua ignorância de ex-pastor de ovelhas. O menino é pai do homem, e eu ganhei um pai atormentado.

Eu jamais consegui ter uma conversa linear com o meu pai. A sua fala era fragmentada, começava num assunto, terminava no outro, se é que terminava. As digressões embaralhavam-se e ele dificilmente retornava ao ponto de partida. Era preciso guiá-lo no discurso, assim como foi preciso guiá-lo na cegueira. Mas ele era engraçado e capturava bem a essência dos seus interlocutores, de quem fazia troça. Acho que, no fundo, ele troçava de si próprio e dos seus infortúnios. No seu tormento permanente, ele se viciou em psicotrópicos, as bolinhas, e depois no whisky. Em várias situações, passei vergonha e dificuldades por causa dele. Depois que se casou outra vez, as coisas melhoraram. Mas ele acabou cego e a mulher dele, encerrada no próprio corpo, com uma síndrome que começou com Parkinson e evoluiu de maneira tal que a deixou completamente paralisada e incapaz de se comunicar. Sim, raios podem cair duas vezes no mesmo lugar.

Naquela tarde de 1999, contudo, o meu pai estava diferente. Parecia rejuvenescido, o olhar cego brilhava e um sorriso gentil emoldurava a sua boca carnuda. Sentei-me no sofá do acompanhante, ele recostado no leito hospitalar, e começamos a conversar, eu já preparado para guiá-lo na sua fala. Não precisei. Foi a primeira e única vez que o meu pai manteve comigo uma conversa absolutamente linear, sem digressões incoerentes, com relatos que tinham começo, meio e fim. E foi nessa conversa fantástica em mais de um sentido que ele me contou como fizera amizade com um americano chamado Harry Stone e conhecera a atriz Ava Gardner, definida por Jean Cocteau como “o mais belo animal da Terra”.  

No início da década de 1950, antes de começar a estudar medicina, meu pai trabalhou na empresa aérea Cruzeiro do Sul, como comissário de bordo. Fazia a rota entre São Paulo e Rio de Janeiro. Pouca gente viajava de avião naquela época e, como a tripulação variava pouco e a clientela também, todos se conheciam.  Um dos passageiros constantes era Harry Stone, representante da Motion Picture Association of America na América do Sul, que se instalara no Rio de Janeiro não havia muito tempo. Se você fizer uma pesquisa no Google, Harry Stone é apresentado como “lobista de Hollywood” e “inimigo do cinema nacional”. Ele lutou na Segunda Guerra, na Itália, e aprendeu português com pracinhas da FEB, o que certamente o ajudou a conseguir o trabalho no Brasil. Aqui, casou-se com uma Burle Marx. Aqui, morreria, vítima de Alzheimer, em 2000, na condição de personagem relevante. Mas, em 1953, ele era apenas um executivo desconhecido da indústria cinematográfica dos Estados Unidos, recém-chegado ao país — e, ainda desimportante, ficou amigo do comissário de bordo brasileiro, natural de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.

O meu pai contou que servia como isca para Harry Stone “paquerar umas pequenas”. Iam para a noite juntos, quando estavam no Rio de Janeiro, principalmente. Amigos de balada, Harry Stone o convidou, em 1954, para ir a um jantar bacana no Copacabana Palace. “Quero que você conheça a Ava Gardner”, disse ele ao meu pai. 

Arregalei os olhos:

“Você esteve com a Ava Gardner, na visita dela ao Brasil?”, perguntei, incrédulo.

 “Sim”, respondeu o meu pai. “Foi um jantar inesquecível, o Harry Stone me pôs do lado dela, a certa altura”.

A visita de Ava Gardner ao Brasil, para lançar o filme A Condessa Descalça, foi curta e marcada por incidentes. A confusão começou no aeroporto, com gente apalpando a atriz, e continuou com a troca de hotel, o Glória pelo Copacabana Palace. Publicaram que ela destruíra o quarto do primeiro, num ataque de estrela bêbada. A atriz dedicou um parágrafo da sua autobiografia à passagem pelo Rio de Janeiro: 

“A United Artists não tinha nos colocado no hotel que eu havia pedido, mas sim numa espelunca que cheirava a fumaça e tinha mais queimaduras de cigarro do que a Carolina do Norte inteira. Por isso me mudei calmamente para o hotel que eu queria. Na manhã seguinte, no entanto, os jornais contaram uma história completamente diferente. Eu tinha chegado bêbada, fazendo confusão, descalça (era verdade que eu chegara descalça, porque o salto do meu sapato quebrou quando fui espremida por uma multidão no aeroporto). Eu destruíra meu quarto e a gerência do hotel, para provar a coisa, logo chamou fotógrafos, sem ter outra opção a não ser me expulsar. O que realmente aconteceu foi que o hotel, numa espécie de vingança por eu ter decidido me mudar, contratou um verdadeiro exército destruidor menos de uma hora depois que saí. Quebraram todos os espelhos, atiraram garrafas de whisky por toda parte, destruíram a mobília, arrasaram literalmente tudo. Nem vamos levar em conta que eu jamais teria conseguido fazer aquele estrago com um machado e uma semana para trabalhar. Todos acreditaram nas manchetes. Nem uma entrevista à imprensa e nem uma desculpa do governo brasileiro fizeram com que a verdade vencesse a mentira nos jornais do mundo inteiro.”

Meu pai confirmou que aprontaram muito com Ava Gardner e que Harry Stone teve o seu batismo de fogo com a visita da atriz ao Rio de Janeiro. Ele contou que alugou um terno para ir ao jantar no Copacabana Palace, o mais chique a que já havia ido na vida inteira, e que foi Ava Gardner que quis que ele se sentasse mais próximo dela.

“Agora, você está exagerando.”

“Juro a você.”

“Te achou bonitão.”

“Eu era.”

“Sim, você era. É verdade que o Jorginho Guinle, dono do Copa, namorou a Ava Garder?”

“Mentira. Parecia um boboca no jantar.”

“Mesmo?”

O meu pai voltou a negar que Jorginho Guinle tivesse namorado a atriz e, ainda mais sorridente, disse:

“Ela gostou mesmo foi de mim…”

Para mim, não importava se o meu pai estava contando ou não vantagem indevida. Na verdade, pouco importava Ava Gardner. Eu finalmente tinha um pai com o qual eu podia conversar — um pai com começo, meio e fim — e isso me fascinava. Mas a hora urgia:

“Tenho de ir trabalhar. Volto amanhã, para continuarmos a conversa, está bem?”

No dia seguinte, entrei no quarto do hospital, mas não encontrei o mesmo pai do dia anterior. Lá estava ele envelhecido como sempre, com o seu olhar morto de cego como sempre, sem sorriso como sempre, num sempre que começara com a degeneração macular e sucedera a outros sempres igualmente tristes. 

Ainda tentei:

“Pai, conte mais sobre a Ava Gardner.”

“Quê?”

“O jantar com a Ava Gardner, o Harry Stone.”

Não veio nada, a química já era outra.

Ava Gardner trocara de hotel mais uma vez.   

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