Ricardo StuckertValeska Teixeira, Geoffrey Robertson e Cristiano Zanin: eles emplacaram ação que deveria ter sido arquivada

Que ONU, que nada 

A decisão do Comitê de Direitos Humanos não é um parecer da organização internacional, não inocenta Lula, não condena Sergio Moro e só serve como trunfo político para o petista
12.05.22

Muitas organizações internacionais têm nomes parecidos. Algumas contam com departamentos batizados da mesma forma que outra organização vizinha. E tudo pode ficar ainda mais confuso quando traduzido para idiomas diferentes. Assim, ainda que esses órgãos sejam bem-intencionados, a desinformação em torno deles pode ser manipulada para fins políticos. Foi o que aconteceu no final de abril, quando o Comitê de Direitos Humanos divulgou uma decisão considerando que o Estado brasileiro violou direitos de Lula. A notícia foi dada como se a ONU tivesse condenado o trabalho do ex-juiz Sergio Moro e inocentado o ex-presidente Lula. Não é nada disso. Algumas considerações, portanto, são necessárias.

A primeira é sobre a ideia de que a ONU é que teria se pronunciado sobre o caso levado pelos advogados petistas para o Comitê em julho de 2016, quando Lula ainda não tinha sido condenado. Na verdade, são duas organizações com estruturas distintas. Explica-se. O Comitê foi formado e tem sua atuação com base no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia-Geral da ONU, em 1966. Esse pacto lista uma série de direitos humanos que devem ser respeitados pelos países. O Comitê foi o órgão administrativo incumbido de monitorar o cumprimento deles pelos Estados do pacto. Sem sede própria, essa entidade se utiliza das instalações do Alto Comissariado da ONU, em Genebra. Além disso, os salários de seus membros são pagos pela ONU.

É a partir daí que começam as diferenças. Somente os estados que assinaram o pacto fazem parte dele. E nem todos o adotaram. Vinte dos 193 integrantes da ONU ficaram de fora. “O Comitê é um órgão com vida própria, uma instituição administrativa que funciona de forma independente da ONU”, diz Wagner Menezes, professor de direito internacional da USP e ex-consultor jurídico da ONU. 

No Comitê, trabalham 18 especialistas em direitos humanos que atuam de maneira independente, apesar de terem sido nomeados pelos governos de seus países. Eles não consultam seus governos antes de votar, como obrigatoriamente devem fazer os representantes dos países nas entidades próprias da ONU, como o Conselho de Direitos Humanos ou o Alto Comissariado para os Direitos Humanos (nomes parecidos, certo?).  Esses 18 especialistas não representam seus países. Eles atuam totalmente no plano pessoal. Desde que acompanho os trabalhos, nunca vi um conflito de interesses por lá”, diz o advogado argentino Fabian Salvioli, que foi o presidente do Comitê de Direitos Humanos até 2016. Por causa da separação entre a entidade e a ONU, inferências de que a chilena Michele Bachelet, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, daria as cartas no Comitê carecem de sentido.

O fato de esses especialistas serem autônomos, contudo, não quer dizer que não sofram influência de terceiros ou que não cometam erros. Um dos casos mais estapafúrdios é o do empresário colombiano Alex Saab, que foi detido no arquipélago de Cabo Verde quando parou para reabastecer seu avião a caminho do Irã. Laranja do ditador venezuelano Nicolás Maduro, ele alegou, sem dar evidências convincentes, que estava sendo torturado na prisão. O objetivo era evitar uma extradição para os Estados Unidos, onde era acusado de lavagem de dinheiro e conspiração. 

ReproduçãoReproduçãoVenezuelana pede libertação de Saab: Cabo Verde ignorou a decisão do Comitê
Seu time de advogados incluía o espanhol Baltasar Garzón, que já defendera o hacker australiano Julian Assange. Garzón e seus colegas apelaram em todas as instâncias da Justiça de Cabo Verde ao longo de 16 meses, até que a Suprema Corte do país decidiu mandá-lo para os EUA, em maio de 2021. No mês seguinte, o Comitê de Direitos Humanos publicou uma nota pedindo que a extradição fosse suspensa, alegando que Saab deveria receber cuidados médicos adequados e que corria o risco de “ser torturado e maltratado em caso de extradição e de ser exposto a novas violações dos seus direitos”.

A hipótese levantada pelo Comitê sobre possíveis torturas em prisões americanas não tem qualquer base nos fatos. “Os advogados de Saab, que receberam milhões de dólares da ditadura venezuelana, foram muito eficientes em convencer os especialistas de que se tratava de um julgamento político, quando era apenas um caso de corrupção”, diz o ex-procurador venezuelano Zair Mundaray, exilado na Colômbia. “Esse Comitê é absolutamente irresponsável. Ainda bem que a Justiça de Cabo Verde ignorou sua recomendação.”

Além do espanhol Garzón, quem também tem bom trânsito em Genebra é Geoffrey Robertson, de cidadania australiana e britânica. Advogado de prestígio internacional, ele foi condecorado com os títulos da Ordem da Austrália e Conselheiro da Rainha britânica. Como Garzón, já deu conselhos para Assange. Seus honorários também não cabem em qualquer bolso e uma de suas especialidades é apresentar denúncias ao Comitê de Direitos Humanos. Robertson tornou-se conhecido dos brasileiros quando foi anunciado pelo PT, em 2016, como o advogado que levaria a denúncia de Lula para esse órgão. Dois anos depois, virou motivo de chacota ao tirar um cochilo nas audiências do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF-4. Mesmo assim, a aposta nele acabou se pagando.

ReproduçãoReproduçãoGeoffrey Robertson cochila no TRF4: aposta em advogado se pagou
A ação de Robertson pode ajudar a explicar algumas idiossincrasias do processo de Lula. Isso porque o Comitê, a princípio, só deve admitir uma denúncia quando já estão esgotados todos os recursos na Justiça interna dos países. Não foi esse o caso. Em 2016, quando a equipe de Lula enviou a denúncia, o ex-presidente ainda tinha diversos recursos para se defender nas instâncias nacionais, como efetivamente o fez.

Lula foi preso em janeiro de 2018, depois que TRF-4 o condenou em segunda instância. A defesa fez um pedido de habeas corpus, que foi rejeitado pelo STF. Depois de 580 dias em detenção, Lula foi solto após uma decisão do mesmo STF, que passou a rejeitar a prisão em segunda instância. No ano passado, os recursos do time de Lula foram bem-sucedidos quando uma nova decisão do STF favoreceu o petista, ao mandar o caso de volta à primeira instância, em Brasília, onde Lula já tinha sido absolvido duas vezes, depois que Sergio Moro foi considerado suspeito.  

Ao final do ano passado, após as diversas apelações feitas pela equipe de advogados de Lula, a sua situação já era bem confortável. Ele estava livre e apto a se candidatar novamente à Presidência. Ainda que se possa questionar as inclinações e as posições dos ministros que compõem o STF, o fato é que, no Brasil, um país democrático, a instância suprema da Justiça respondeu positivamente aos pedidos feitos por aquele que dizia ter seus direitos desrespeitados. Uma decisão do Comitê, portanto, já não teria validade. A admissão formal da denúncia também perderia o sentido, como afirmam dois dos 18 especialistas que votaram contra a decisão que concluiu que Lula teve os seus direitos desrespeitados. O mais correto seria que o Comitê arquivasse a denúncia. No final, eles deram uma decisão extemporânea, que chegou tarde e não irá mudar em nada o status do Lula. É algo que apenas demonstra o caráter político desse Comitê”, diz Maristela Basso, professora de Direito na USP. “O certo é que Lula pôde usar isso como um trunfo político, e que Robertson poderá cobrar um bônus de êxito por ter obtido essa declaração.”

A decisão do Comitê diz que Lula teve vários direitos violados, inclusive o de se candidatar à Presidência em 2018. Dezesseis dos 18 especialistas apoiaram a conclusão. A rejeição de seu nome, contudo, foi tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, que apenas aplicou a lei em vigor, a da Ficha Limpa, que não permite que cidadãos condenados criminalmente sejam candidatos. Ainda assim, o Comitê solicita que o governo brasileiro dê uma “reparação total” ao petista. O país precisa, ainda, traduzir a decisão em até 180 dias e dar ampla divulgação a ela. Medidas também devem ser tomadas para evitar danos no futuro.

Na prática, o que pode acontecer é Lula pedir uma indenização na Justiça e ganhar algum dinheiro. Com relação a Moro, não há consequências diretas. Isso porque quem foi julgado no processo foi o Estado brasileiro, incluindo as várias instâncias do Judiciário, com suas idas e vindas. A defesa foi feita pela Advocacia-Geral da União. “No fundo, toda a prisão do Lula foi um trabalho institucional. Inclusive, quem determinou a prisão do Lula foi o TRF4. A gente apenas cumpriu”, disse Moro para a Crusoé (leia a entrevista).

Em teoria, como o Brasil assinou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o país estaria obrigado a seguir a decisão dos especialistas. Ainda que o Comitê não seja um órgão jurídico, e sim administrativo, um compromisso foi assumido. Mas há divergências entre os juristas brasileiros sobre o quanto isso deveria ser levado a sério. E vale notar que nem mesmo o minúsculo arquipélago de Cabo Verde, no meio do Oceano Atlântico, importou-se com a decisão do Comitê contra a extradição do colombiano Alex Saab. Ele foi mandado para os Estados Unidos e pronto. EO Estado brasileiro poderia até dar de ombros ao Comitê. A ineficácia da decisão, porém, não invalida a vitória política de Lula, pela qual ele não pagou barato.

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