Divulgação/Netflix"Stranger Things": comunismo, aqui, não (ou será que não é nada disso?)

A encruzilhada do streaming

O aumento da concorrência, a instabilidade na economia global e o achatamento da curva de novas assinaturas lançam Netflix e outras plataformas de filmes e séries em uma zona de turbulência que pode mudar (de novo) o panorama da indústria de entretenimento
20.05.22

Em meados de abril, a Netflix descobriu que havia calculado mal: em vez de ganhar novos assinantes no primeiro trimestre deste ano, como projetado, perdera um punhado deles. Sendo uma empresa de capital aberto, viu-se na obrigação de manejar as expectativas e revelar que deve perder outros 2 milhões ainda nos próximos meses. Ora, para quem fechou o mês de março com coisa de 220 milhões de inscritos espalhados por 190 países, isso não há de ser nada, certo? Errado. As ações da Netflix despencaram em cerca de 40%, para valores comparáveis aos do período imediatamente anterior ao surgimento da Covid-19, e o valor de mercado da companhia recuou de 300 bilhões de dólares para menos de 100 bilhões (neste momento, ainda na tendência de declínio, está em 81,5 bilhões). Toda a indústria do streaming, que tanto se agigantou durante a pandemia, entrou em estado de alerta. Ao contrário do que as aparências possam sugerir, não se trata de uma daquelas reações excessivamente emotivas que às vezes acometem os mercados.
De pioneira locadora online de DVDs a pioneira plataforma de streaming, a Netflix cresceu em disparada – e saltou para a expansão em escala geométrica quando inaugurou a produção de conteúdo próprio com “House of Cards”, dez anos atrás, e revolucionou o entretenimento doméstico com o conceito de “maratona” – temporadas inteiras disponíveis de uma vez e não no conta-gotas semanal. Desde 2007, quando a Netflix virou serviço de streaming, nunca houve um trimestre em que ela deixasse de crescer. Até este primeiro de 2022, cujos números acabou de fechar. Os players desse segmento entraram em crise de ansiedade: a Netflix é a bola de cristal que todos eles perscrutam porque ela é a forma na qual se moldaram.

É fácil identificar a tríade de fatores que lançou a Netflix – e, por extensão, todo o streaming – na zona de turbulência: a concorrência excessiva (ao que parece sim, isso existe), os efeitos econômicos do binômio pandemia-guerra e o achatamento da curva de novas assinaturas. Não só eles estão interligados, como cada um deles arrasta consigo um enovelado de variáveis próprias. Olhe-se o quadro à distância, porém, e o que se vê é uma constante: as obviedades só são identificadas como tal – como coisas óbvias – quando o processo que as criou e que elas por sua vez alimentam já está tão avançado que só resta tentar lidar com suas consequências. “Tentar”, frise-se, é a palavra-chave.

Primeira obviedade: antes de decidir o tamanho do rebanho que se vai comprar, convém medir o pasto que se tem. A Netflix cresceu a taxas tão impressionantes, e por tanto tempo, que aos estúdios começou a parecer loucura manter-se na beirada de um negócio tão arrojado e bem-sucedido. De onde, em diferentes momentos, mas convergindo para um resultado comum, a Disney lançou o Hulu, a Disney+ e a Star+, a HBO se reconfigurou em HBO Max ao agregar o conteúdo recente e o vasto catálogo da Warner, a Paramount correu com a plataforma Paramount+, e assim por diante. Não menos importante, dois gigantes de bolsos sem fundo entraram no jogo: a Apple, com sua AppleTV+, e a Amazon, com seu Prime Video. Parecia uma festa, mas vê-se agora que talvez tenha sido um Baile da Ilha Fiscal. O número infinito de assinantes a conquistar se está revelando finito como tudo o mais, e mercados estratégicos como Brasil, Alemanha, Reino Unido, Coreia do Sul, Índia e – eis o decisivo – Estados Unidos dão sinais de estar próximos da maturação plena. Em outras palavras, estão perto de estagnar.

Divulgação/HBO MaxDivulgação/HBO MaxEuphoria, da HBO Max: modelo de produção que pode sair vencedor
Também não deveria ser preciso lembrar que, por mais camarada que seja a mensalidade deste ou daquele streaming, somadas elas podem pesar, e muito, no orçamento doméstico. Escolher entre streamings, porém, não é como escolher entre operadoras de celular, cujo produto central é basicamente o mesmo: significa limitar a participação em grupos culturais, abandonar conversas, reduzir universos, desistir de prazeres, ficar de fora. É uma escolha com sabor de privação, que amarga a boca de quem a faz.

Segunda obviedade: a pandemia foi um acelerante poderoso para o streaming, mas deveria ser evidente que nem o isolamento duraria para sempre, nem o saldo deixado por ele permaneceria inalterado. Imprevistos são a única certeza e, mal as economias começavam a se recuperar da Covid-19, a Guerra da Ucrânia já as golpeou duro de novo, com um conflito que se anuncia longo, volátil e de repercussões econômicas incalculáveis. A Europa aperta o cinto para uma recessão; os Estados Unidos enfrentam um processo inflacionário; o FMI faz corte após corte na projeção de crescimento da China; todo o restante do mundo põe as mãos na cabeça, sem saber o que o espera mas já contando com o pior. O impacto no poder aquisitivo de cada cidadão é direto. Por consequência, é um mau momento para crescer, e particularmente ruim para obrigar esse cidadão à escolha descrita no parágrafo acima.

A terceira obviedade é que, uma vez que tenha que ser feita, toda escolha obedecerá ao critério do maior ganho ou maior vantagem. E aí, apesar dos resmungos dos executivos da Netflix, não há fator externo em que ela possa pendurar a fatura negativa: entre o público, a percepção é de que a qualidade do que se oferece caiu, e o preço que se cobra subiu. A Netflix banca, sim, títulos de prestígio merecido e, embora tenha saído da festa de mãos quase abanando, foi o estúdio recordista em indicações ao Oscar neste ano. Mas seu combustível real não é “Ataque dos Cães”, “Roma” ou “O Irlandês”. É a produção média, ou a lenha que ela joga na fornalha no dia a dia. Essa tem queimado rápido e criado pouco calor. E o estoque de toras maiores, aqueles que aquecem durante um bom tempo, está baixo.

Três dos maiores sucessos da plataforma – as séries “Ozark”, “Stranger Things” e “Peaky Blinders” – já se encerraram ou estão para entrar na reta final, sem que algum título novo pareça capaz de tomar o lugar que elas deixam vago. Entretanto, serviços de streaming que começaram em relativo descrédito, como AppleTV+, ou que titubearam de início, como a HBO Max, vêm se consolidando com rapidez, à base de – óbvio – séries e filmes originais em menor quantidade mas de grande qualidade (para a angústia da geração de maratonistas compulsivos criada pela Netflix, até o episódio semanal virou chic de novo). No caso da HBO, não é aí, na qualidade, que está a surpresa, mas em outro lugar: em demonstrar que essa tática muito seletiva de produção que a consagrou, resultando em séries como “Mare of Easttown” e “Euphoria”, e que a certa altura se acreditou fatalmente ameaçada pela Netflix, pode ser, quem sabe, o mais apto a resistir a tormentas.

O que não é óbvio é o aspecto que esse panorama vai adquirir quando visto do lado de cá – o do assinante, do espectador, o seu lado e o meu. Um palpite, porém: antes de desistir, os players vão insistir. No futuro próximo, ao que parece, o jeito é o de sempre: resignar-se com o fato de que, entre tantas opções, não se pode ter todas.

Isabela Boscov é jornalista, especializada em cinema. Atualmente, mantém um canal de críticas de filmes e séries no Youtube.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Isabela, você era a única razão pela qual eu ainda lia a Veja. E eu já não aguento mais política, então até na Crusoé e no Antagonista, leio só na diagonal. Só leio crônicas como as do Sabino, Goiaba etc. e por isso assino a Gazeta do Povo. Eu sinceramente espero ler muito mais de você aqui. Não me entenda mal mas não tenho tempo para YouTube.

  2. É muito bom ter artigos e reportagens com assuntos diversificados. A política esta nos sufocando . Achei ótimo

  3. Excelente poder ler a Isabela na Crusoé! Sigo seu canal no Youtube e gosto muito da sua forma de criticar sem dar spoiler.

  4. A revoada de assinantes da Netflix está, ao meu ver, mais atrelada ao alto volume de produção de conteúdo woke do que outros fatores. Não que a cultura woke se restrinja a essa plataforma, mas a consequência da clara orientação política é mais visível nela.

  5. Muito bacana! Gostei de tudo! Do artigo, do tema "diferente" aqui na Crusoé, e de saber q não sou só eu q estou no aperto, a Netflix tb! (Brincadeira 😜). Acho a qualidade da nossa tv aberta muito ruim, principalmente, para crianças, por isso há tempos, temos todas essas plataformas aqui em casa🙄. Espero q a situação melhore para as plataformas e para todos nós🙏! E q vc continue aqui com suas críticas cinematográficas e deixando o ar mais leve☺️!

  6. Interessante. Bom poder tirar a cabeça da política e respirar outros ares. Boa escolha editorial. Bom artigo. Apesar de assinante da Netflix e Prime não gosto desse modelo de plataformas de streaming. Hoje a programação está toda fatiada em diferentes plataformas, restando-nos pagar muito mais do que quando estava tudo num pacote de TV por assinatura

  7. Bem vinda, Isabela! Sigo seu canal no You Tube e fiquei feliz em vê-la aqui. Gosto muito das suas análises e críticas. Espero que seja toda semana.

  8. Gostei da chegada da Isabela, espero vê-la com alguma frequência, tanto em análises como desse artigo como comentando sobre o que tem de bom - e ruim - por aí. Bola dentro da Crusoe.

  9. Isabela Boscov por aqui. Que surpresa agradabilíssima é uma jornalista especial, crítica com muita base e argumentos. Parabéns a revista por te la ao grupo. Bem vinda IB!

  10. Ainda enxergo vantagens, 1) acabou esta obrigação de buscar e devolver filmes 2) acabou a necessidade de pagar 10 vezes mais por TV por assinatura, como era antes, tipo Directv e outros. Serviços de streaming vieram pra ficar, trata-se apenas de uma crise passageira

  11. Faltou um dado nesse artigo: Com serviços de streaming a baixo custo e catálogo imenso, a pirataria on line diminuiu significativamente. Agora, para se ter acesso a todos os títulos de interesse, é preciso assinar inúmeros serviços, o que acaba sendo por demais oneroso. O resultado é o recrudescimento a todo o vapor da pirataria: um fator importante de problemas para o steaming negligenciado no artigo.

  12. A Isabela Boscov é sempre uma referência na hora de escolher o melhor. Tomara que o streaming se consolide, com conteúdo variado e de qualidade, porque a tv aberta no país se tornou máquina de emburrecer povo. O desperdício de dinheiro e tempo com a ignorância, a escatologia, a manipulação de mentes e a ma qualidade é abissal!

  13. Que bom termos um artigo deste nível e que foge da política. Gostei! Crusoé continue incluindo outros temas, agradeceremos.

Mais notícias
Assine agora
TOPO