MarioSabino

Chega de defender a democracia

20.05.22

Não sei se você compartilha do meu enfado, mas não aguento mais tanta gente defendendo a democracia todos os dias, de segunda a domingo. Eu mesmo tenho de me policiar para não defender a democracia a cada artigo que escrevo. Jair Bolsonaro ataca o STF para defender a democracia. Alexandre de Moraes ataca Jair Bolsonaro para defender o STF e a democracia. Lula ataca a imprensa para defender a democracia. A Jovem Pan defende a democracia. A Rede Globo defende a democracia. Folha e Estadão fazem editoriais defendendo a democracia. As Forças Armadas defendem a democracia. O TSE responde defendendo a democracia. Daniel Silveira tira a tornozeleira para defender a democracia. Alexandre de Moraes multa Daniel Silveira porque ele tirou a tornozeleira e para defender a democracia. Rodrigo Pacheco pede calma para defender a democracia. Arthur Lira, veja bem, defende a democracia. Juízes fazem manifestos para defender a democracia; advogados criminalistas também; empresários idem.

O aspecto tristemente irônico dessa insistente defesa da democracia é que a democracia para a qual não existem versões conflitantes vai sendo ferida de morte no cotidiano, e com a participação de alguns dos seus defensores intransigentes. A democracia é ferida quando poderosos voltam a ficar imunes à ação da Justiça. A democracia é ferida quando parlamentares se esbaldam com o dinheiro de orçamentos secretos. A democracia é ferida quando cidadãos são aterrorizados por ladrões que roubam celulares. A democracia é ferida por sindicatos que tramam a volta do imposto sindical para financiar indiretamente partidos políticos. A democracia é ferida quando candidatos a presidente pretendem “regular a mídia”. A democracia é ferida quando juízes se arrogam o papel de editores da nação. A democracia é ferida por vagabundos que ameaçam matar autoridades em nome da democracia. A democracia é ferida quando comitês do politicamente correto interditam o debate. A democracia é ferida quando puritanos querem vestir a arte com camisa de força. A democracia é ferida com a incultura do cancelamento nas redes sociais.

Como sair dessa situação no que ela tem de diretamente política? Não ria, por favor, da minha resposta. A saída é o voto. Precisamos votar melhor, mas é preciso construir um sistema eleitoral que nos permita fazer isso e ser melhor representados. Que privilegie gente honesta e com visões estratégicas modernas. Que aponte para a extinção do caciquismo partidário. Que elimine as legendas de aluguel. Um sistema que apele menos à emoção e mais à razão dos cidadãos. Eu já culpei muito os eleitores brasileiros pelo atual estado de coisas, e não os isento de todo, mas a verdade é que fica mesmo difícil achar os bons num sistema eleitoral que seleciona principalmente os maus e subverte a democracia, transformando-a de campo de oportunidades em valhacouto de oportunistas. É por essa mudança que deveríamos nos bater, ao invés de nos contentarmos em fazer catarse no Twitter ou aderir ao enésimo salvador da pátria que nos aparece pelas costas.

A democracia não precisará de tantas defensores lá em Brasília e adjacências, se conseguirmos ser bem representados e, desse modo, instilar no cotidiano das pessoas e das instituições (e as instituições são pessoas) a ideia básica de que, assim como ninguém pode desejar ser escravo, ninguém deve querer ser senhor. Tudo o que diferir dessa ideia não é democracia. Agradeça o resumo a Abraham Lincoln.

Chega de defender a democracia, vamos fazê-la.

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