Ricardo Stuckert/Twitter/LulaLula, com Janja: institutos colocam o petista à frente de Bolsonaro, mas seguidores do presidente não acreditam

Datapovo: dá para confiar?

No Brasil e no mundo, as pesquisas eleitorais foram colocadas em dúvida após erros do passado. Crusoé analisa se ainda faz sentido acreditar nelas
20.05.22

Nunca o eleitor brasileiro foi bombardeado por tantas pesquisas. Em algumas semanas, até mesmo três delas chegam a ser divulgadas, somente sobre a corrida presidencial. Embora uma mesma pesquisa se mantenha em geral consistente de uma edição para outra, os números apresentados por empresas diferentes podem divergir em dez pontos percentuais, ou até mais. Junte-se a essa discrepância o fato de que os resultados de eleições recentes, como a de 2018, afastaram-se das estimativas feitas por institutos tradicionais, e está explicado por que muitos eleitores hoje têm grandes dúvidas sobre a precisão das pesquisas, enquanto políticos as atacam frontalmente quando os resultados lhes são desfavoráveis. Ainda que Jair Bolsonaro venha estreitando sua diferença em relação a Lula, esse tipo de ataque se mantém comum especialmente entre seus apoiadores. Nesta semana, Flávio Bolsonaro afirmou em uma entrevista que seu pai deve vencer disparado, no primeiro turno, as eleições de 2022. A base para essa previsão seriam sondagens encomendadas pela campanha bolsonarista e o “Datapovo” — uma expressão que engloba tanto as aglomerações com que Bolsonaro é recebido em eventos, quanto enquetes organizadas por veículos de comunicação, simpatizantes ou meros curiosos (como fez, cerca de um mês atrás, o dono de um posto de gasolina em uma estrada movimentada). Números do tal Datapovo têm circulado bastante nas redes sociais, sempre como contraponto a levantamentos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que mostram Bolsonaro atrás de Lula. Eles vêm acompanhados de mensagens como esta, disparada em 11 de maio no Twitter, mais uma vez pelo filho 01: “Nova pesquisa? No, tks. Essas amostras de 1.000 pessoas com metodologia questionável não me convencem. Prefiro essa pesquisa aqui, com mais de 2 milhões de votos, um IP válido por voto, e por todo Brasil”. Nesse exemplo, o presidente aparece com quase quarenta pontos a mais que o seu adversário petista.

Esta reportagem de Crusoé mostra que pesquisas podem ser manipuladas de muitas maneiras. Mostra ainda que pesquisas estão sujeitas a erro e terão sua credibilidade tão mais ameaçada quanto mais forem tidas como aquilo que não são: previsões do futuro. Ao mesmo tempo, ela demonstra que, ao lado das dúvidas justificáveis, existe um certo tipo de crítica que é parente do negacionismo contra as vacinas, porque embaralha ou ignora de maneira intencional a ciência envolvida nas pesquisas eleitorais. Como demonstrado pelo estudo Os erros de pesquisa eleitoral através do tempo e do espaço, realizado pelos pesquisadores Will Jennings, britânico, e Christopher Wlezien, americano, a taxa de acerto das sondagens realizadas em 45 países, ao longo das últimas oito décadas, é muito maior do que se imagina. “A ignorância não nasceu nas redes, mas com a expansão dessas mídias, numa sociedade do espetáculo digitalizado, a disseminação da informação falsa ganhou velocidade e escala, sendo extremamente difícil para instituições e pesquisadores a desmentirem”, diz a cientista política Mara Telles, presidente da recém-fundada Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel), que reúne até agora mais de 320 acadêmicos e profissionais de mercado e que realizou nesta semana, em Minas Gerais, o seu primeiro seminário internacional.

Nem a multiplicação das pesquisas, sejam elas bancadas por veículos de imprensa, bancos ou organizações não governamentais, nem a disparidade entre os números obtidos, sobretudo em períodos ainda afastados da ida às urnas, são sinais seguros de que um trabalho foi manipulado ou teve falhas técnicas. Sobre o primeiro ponto, diz Murilo Hidalgo, presidente do Instituto Paraná Pesquisas: “Como em todo mercado, a variedade e a competição levam ao aprimoramento. É melhor ter vários institutos trabalhando do que apenas um ou dois”. Sobre o segundo tópico, o sociólogo Antônio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, lembra que existe uma diferença essencial entre “atitudes”, registradas pelas pesquisas, e “comportamentos”, registrados na cabine de votação. “Quantas vezes você saiu de casa disposto a fazer uma compra e voltou para casa com um produto completamente diferente na sacola? Isso também acontece nas eleições, e só pesquisas de boca de urna têm alguma chance de captar esse fenômeno”, diz ele. Há também o fato de que a parcela de eleitores brasileiros com identificação ideológica clara é muito menor do que, por exemplo, nos Estados Unidos. Segundo Lavareda, isso faz com que o voto estratégico (no candidato que se rejeita menos) e o voto randômico (que não tem motivação consistente) sejam mais prevalentes no Brasil, podendo de novo trazer surpresas no momento da apuração — pois eles, além do mais, só se definem de última hora. A despeito de todas as falhas que as pesquisas possam ter, é melhor tê-las do que não tê-las. “Menos da metade da população mundial vive em países onde as pesquisas eleitorais são completamente livres e independentes. É importante ter isso em mente, principalmente quando as pesquisas desagradam”, diz o búlgaro Kancho Stoychev, presidente do instituto Gallup International, que conduz pesquisas regularmente em cerca de 130 países. “A democracia depende de opiniões informadas, inclusive a respeito do que os nossos vizinhos estão pensando sobre questões sociais e sobre os políticos que podem chegar ao poder.”

A diferença entre pesquisas e enquetes

A história do nascimento das pesquisas eleitorais põe em relevo essa diferença. Foi no ano de 1936, quando Franklin Delano Roosevelt e Alf Landon disputaram a presidência dos Estados Unidos. Como vinha fazendo havia várias eleições, a revista Literary Digest encaminhou a seus assinantes um cartão, pedindo que indicassem em quem pretendiam votar. Em paralelo, George Gallup decidiu aplicar às eleições os métodos estatísticos que vinha desenvolvendo para outras sondagens de opinião pública. Embora a Literary Digest contasse com 2 milhões de respostas, e Gallup com 50 mil, foi o segundo quem conseguiu prever a vitória de Roosevelt. Isso aconteceu porque os leitores da revista representavam apenas uma fatia homogênea da população americana, enquanto a amostra de Gallup, embora menor, procurava representar proporcionalmente todos os segmentos da população — inclusive os mais pobres, que não assinavam revistas, mas deram a presidência ao candidato democrata. Se nos 86 anos que transcorreram desde 1936 a metodologia para sondagens de opinião se aprimorou de diversas formas, permitindo inclusive a realização de muito menos entrevistas do que aquelas 50 mil feitas por Gallup, a diferença fundamental entre pesquisas e enquetes permanece a mesma: enquanto as primeiras refletem diferenças demográficas, as segundas ignoram esse fator e, por isso, não conseguem captar de fato para onde pendem as intenções de voto da população como um todo.

ReproduçãoReproduçãoA enquete compartilhada por Flávio Bolsonaro: ciência pelo avesso

Como são feitas as amostragens?

Uma boa amostra é aquela que espelha com a maior precisão possível a população: sua distribuição no território nacional, as proporções por idade, sexo, renda, religião ou educação. A analogia mais corriqueira para explicar por que dá certo trabalhar com amostragem é que, para testar o sal de uma sopa, só é preciso experimentar uma colher — desde que os ingredientes estejam bem misturados. A maior parte das pesquisas registradas no TSE entrevista atualmente entre mil e 2 mil pessoas. Mesmo considerando os estudos mais amplos, ainda assim o número de entrevistados é uma fração de 0,0009% dos 214 milhões de habitantes do país. A complicada conta que permite extrair, de uma base ínfima, números representativos para todo o país, foi sendo aprimorada e testada, principalmente após a década de 1950. “A teoria matemática que sustenta esses cálculos tem sido muito bem-sucedida, tanto que não há motivo hoje para coletar amostras maiores que 3 mil pessoas numa pesquisa para presidente. O custo iria aumentar muito e o ganho de precisão seria marginal”, diz o estatístico brasileiro Neale el Dash, que criou o agregador de pesquisas Polling Data.

O que é margem de erro? E nível de confiança?

Quem trabalha com uma amostra dos eleitores, e não com o seu universo completo, perde inevitavelmente uma parte da informação. Margem de erro e nível de confiança expressam essa perda. Quando um instituto registra no TSE uma pesquisa com nível de confiança de 95% e margem de erro de 3 pontos percentuais, está assegurando que, se as mesmas perguntas forem apresentadas 100 vezes, para grupos com as mesmas características demográficas (ainda que as pessoas sejam sempre diferentes), o resultado se repetirá 95 vezes, podendo sempre variar três pontos percentuais para mais ou para menos. Se duas pesquisas tiverem o mesmo nível de confiança, mas uma contar com mil entrevistas e a outra com duas mil, a margem de erro da primeira será um pouco maior que a da segunda. Isso faz diferença? Só se a corrida estiver muitíssimo apertada. Um instituto que trabalha com amostras menores pode sentir a necessidade de aumentá-las caso a disputa fique embolada no decorrer da campanha.

Pesquisas presenciais são melhores que as feitas por telefone e pela internet?

O Tribunal Superior Eleitoral entende que existem três tipos de pesquisas: presenciais, telefônicas e online. Em todos eles, os especialistas buscam criar uma amostra que seja o mais parecida possível com a população brasileira. Há vantagens e desafios associados a cada um dos métodos.

O tipo que dá ao entrevistador mais garantias sobre a qualidade das informações coletadas é o presencial, que já foi considerado o “padrão ouro” das pesquisas. Quando um entrevistador toca a campainha de uma casa, ele tem alto grau de confiança sobre as características de seus moradores. Os institutos selecionam algumas regiões de várias cidades, levando em conta suas diversas características econômicas e demográficas, e realizam entrevistas presenciais no menor tempo possível. Em uma pesquisa nacional do Ipec, por exemplo, mais de 60 entrevistadores vão a 122 municípios, para falar com 2 mil entrevistados em três dias.

Alguns institutos fazem entrevistas presenciais, mas mandam seus funcionários para locais de fluxo intenso de pessoas, como um terminal de ônibus ou a entrada de um shopping. Nesse caso, há mais chance de as pessoas mentirem sobre alguns assuntos — como renda, por exemplo. Nas pesquisas feitas por telefone ou pelo sistema online, há menos certeza ainda sobre a exatidão das respostas. Um número DDD permite fazer deduções sobre onde a pessoa mora. Nas pesquisas online, nem isso. A enquete compartilhada pelo senador Flávio Bolsonaro, mencionada no início desta reportagem, ressalta o fato de que nela, “cada IP de computador significa um voto”. Mas IPs não ajudam a compor uma amostra estatisticamente válida, ainda que o número de respondentes seja elevado.

Os institutos vêm trabalhando para tornar mais confiáveis as pesquisas online. Uma das táticas é oferecer benefícios para que pessoas se voluntariem a participar. Com isso, é possível compor a amostragem necessária. Pesquisas online também são combinadas com outras metodologias e os resultados depois são submetidos a uma calibragem matemática. “O maior desafio nas pesquisas online é a penetração da internet em um grupo ou no público-alvo. É preciso garantir que ele seja de mais de 90% e que a distribuição seja homogênea entre essas pessoas”, diz Kancho Stoychev, do Gallup International.

Nos últimos anos, o método presencial tem sido gradualmente substituído pelo telefônico e, mais recentemente, pelo online. Enviar funcionários treinados para percorrer várias cidades custa caro. Além disso, muitas pessoas passaram a viver em condomínios fechados ou não estão dispostas a atender visitantes. Outras estão em regiões dominadas pelo crime organizado. Por causa desses fatores, muitos institutos passaram a recorrer mais ao telefone e à internet. “De muitos pontos de vista, o método clássico presencial é o melhor para pesquisas sociais e eleitorais, mas também é o mais caro e lento. Com isso, o método online já é dominante no Ocidente”, diz Kancho Stoychev.

ReproduçãoReproduçãoBolsonaro e o Datapovo: Brasil ainda tem muitos indecisos

É possível distorcer uma pesquisa?

Com certeza, tanto por erro quanto intencionalmente. Todo pesquisador precisa tomar diversas decisões na preparação de seu levantamento, e todas elas podem enviesar os resultados. Décadas de estudos acadêmicos e prática de mercado tornaram quase impossível ocultar maracutaias, se os especialistas tiverem acesso aos parâmetros metodológicos e ao questionário que será aplicado. No Brasil, tanto os parâmetros quanto as questões precisam ser divulgados no site do TSE, que mantém o registro de todas as pesquisas eleitorais que publicam seus resultados (só em maio, já são mais de 50). “Pesquisa de opinião não é física quântica, é mil vezes mais simples”, diz  Kancho Stoychev. “Um pesquisador tem de seguir fielmente cerca de uma dúzia de regras, sendo que a maioria é estatística e se destina a garantir que a seleção dos entrevistados seja adequada.” Há escolhas que ajudam a explicar as diferenças de resultado entre institutos que competem entre si. A ordem das perguntas no questionário é um dos fatores que podem induzir o entrevistado a dar uma resposta. Se o entrevistador faz uma questão logo no início sobre a situação do país e depois faz outra sobre intenção de voto, a resposta tende a ser contra o candidato do governo. O entrevistado pensará antes sobre problemas como corrupção e desemprego e acabará colocando a culpa no representante do oficialismo. Uma amostragem de composição mais grosseira pode impactar os resultados, ao gosto do freguês, fazendo o ponteiro pender mais para um lado do que para outro. Para alguns pesquisadores, perguntar sobre o voto em eleições passadas acrescenta uma variável política no levantamento que ajuda a calibrar os resultados, tornando-os mais precisos — mas esse não é um item presente em todas as pesquisas feitas no Brasil.

Afinal, as pesquisas acertam ou erram mais?

A resposta vem do estudo publicado em 2018 pelos pesquisadores Will Jennings, do Reino Unido, e Christopher Wleizen, dos Estados Unidos. Eles analisaram 30.916 pesquisas eleitorais feitas entre 1940 e 2017, em 45 países, inclusive o Brasil, para verificar a percepção de que os enganos estavam se tornando mais comuns. Eles compararam os números das sondagens com os resultados das eleições. Nas décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970, a diferença média foi de 2,1%. De 2000 em diante, foi de 2,0%. “Isso contradiz a ideia de que houve um aumento dos erros”, diz Wlezien. “A surpresa do estudo foi que, mesmo com os institutos de pesquisa reduzindo as amostragens ou migrando para o ambiente online, a taxa de acerto não mudou.”

Sempre haverá circunstâncias em que os movimentos da opinião pública escaparão às pesquisas. Isso aconteceu em 2016, quando elas previram que os britânicos escolheriam ficar na União Europeia — mas o Brexit, a saída do bloco, acabou sendo a opção de 52% deles. Aconteceu em novembro do mesmo ano, quando a maioria dos prognósticos apontava uma vitória de Hillary Clinton na eleição presidencial americana, mas foi Donald Trump quem acabou levando, ainda que no Colégio Eleitoral, e não no número total de votos. E aconteceu em 2018, no Brasil, quando Jair Bolsonaro venceu o primeiro turno da votação com 46% dos votos, à frente do petista Fernando Haddad, que teve 29%. Os dois ficaram fora da margem de erro dos principais institutos de pesquisa. Tropeços também ocorreram nas previsões para estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

No caso do Brexit, as pesquisas superestimaram o comparecimento dos jovens, mais favoráveis à União Europeia. No caso da eleição de Trump, os pesquisadores não captaram as preferências dos americanos brancos sem formação universitária. No Brasil, os institutos não identificaram suficientemente a onda antipetista que ganhou força na véspera da primeira votação.

A fonte mais comum de erros, no entanto, está no eleitor que faz a sua escolha em data muito próxima das eleições ou nos contingentes muito grandes de indecisos e pessoas que podem não comparecer às urnas. Estima-se que, em todos os países democráticos, algo entre 10% e 20% da população decida o voto no último minuto. No Brasil, tanto o número de abstenções quanto o de eleitores que não querem Lula, nem Bolsonaro (nem-nem) é elevado. Em pleitos recentes, as abstenções têm girado em torno de 20% do eleitorado. Estima-se que o nem-nem será de 30% ou mais em 2022. A eleição deste ano deverá ser, assim, um novo desafio para os institutos de pesquisa, mas é melhor tê-los em abundância a ficar na escuridão.

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