De pai para filho

26.05.22

O ex-presidente Lula costumava contar uma história de como seu pai, uma vez, lhe negou um sorvete. A recusa o teria ferido profundamente. Só um pai insensível, afinal, poderia ignorar o desejo de um filho. Mas a pergunta que gostaria de propor ao leitor é a seguinte: se você um dia se tornasse prefeito, governador ou presidente, qual o tamanho do sorvete que daria para o seu rebento?

Ou será que você, respeitando as exigências de um cargo público, apenas ajudaria o seu filho no papel de pai? Se for assim, haveria nisso uma questão ainda mais complexa: e se, como pai, surgisse a oportunidade de arrumar uma “colocação”, um “bico” ou uma “boca” para o filho? Haveria como evitar que o filho fosse nomeado por meio de recursos que o pai, legitimamente eleito, controla? Ou impedir que o filho, de repente, tivesse sua punição aliviada após cometer algum malfeito?

Há em todos esses confrontos e dilemas uma reflexão que raramente é feita e que se encontra na intersecção entre o mundo da casa e o da rua.

O mundo da casa é aquele das relações entre parentes próximos. Todos nós que vivemos em família temos de cumprir com uma série de obrigações morais, as quais são pouco faladas, mas muito praticadas. O mundo da rua é aquele da sociedade, em que vicejam inúmeras regras que exigem anonimato, neutralidade e isenção.

Mesmo para aqueles mais felizes com suas famílias, o mundo da casa é uma obrigação que, às vezes, precisa ser cumprida com sacrifício ou com dor, como ocorre nas festas de aniversário e, sobretudo, nas de casamento. Nessas últimas, eu — por exemplo — dei mais do que podia. Em uma delas, um dos meus irmãos, preocupado com a abundância do uísque, chamou-me de lado e perguntou se eu tinha feito alguma falcatrua. Mas não pense que ele estava buscando algo errado. Se eu tivesse mesmo feito algo irregular, isso seria plenamente justificado, porque teria sido para uma filha querida.

Esse é o mundo da casa. Quem o inventou foram os velhos reis, que perderam a cabeça em seus reinados, mas deixaram o legado das “obrigações de família”, que batiam em seus corações.

A aristocracia é fundada justamente nesse “direito” de herdar dos pais. Um bom brasileiro não pode negar o que tem — seja um objeto ou uma capacidade, como um nome honrado — para um filho. Seria algo condenável. Esse raciocínio no Brasil vale tanto para o mundo da casa quanto para o mundo da rua. Na nossa “consciência cívica” nacional, as normas sagradas do ambiente doméstico não foram neutralizadas como deveriam. Há, pelo contrário, uma personalização de tudo, e aqueles que ocupam cargos públicos continuam seguindo as mesmas regras da casa.

Uma das maiores contradições do mundo “político nacional” é essa oposição entre os deveres da família e da casa, os quais cada pai ou mãe escolhe seguindo uma tradição, e a impessoalidade obrigatória contida nos cargos públicos. Como é possível ser presidente da República e não “arrumar” algo para seus filhos, cunhado, sobrinhos e tios? Uma vez, um prefeito de Magé, na Baixada Fluminense, nomeou sete parentes dizendo que eram pessoas de confiança. Também já tivemos um presidente ocasional que simplesmente nomeou toda a sua família. Seu nome era José Linhares, que governou durante apenas três meses, em 1945. Em sua época, criou-se até um dito popular: “Os Linhares? Ah! São milhares“.

É preciso uma revisão profunda desses costumes que são tidos como “naturais”, como inocentes e até mesmo como “bíblicos”. Não podemos seguir pensando que “farinha pouca, meu pirão primeiro” e, assim, empregar os familiares mais próximos em bons cargos.

Sociólogos clássicos, como Maria Isaura Pereira de Queiroz, chamaram esse fenômeno de “filhotismo”. Outros, como Gilberto Freyre, mencionaram o âmbito poderoso da “casa” — sobretudo da casa-grande — sobre a senzala. Eles não deixaram de tocar no ponto de que, na nossa sociedade, obrigações de carne e sangue, da amizade e do parentesco eram consideradas “sagradas” e bloqueavam ou impediam as normas impessoais do mercado e das leis.

A busca de um “pai da pátria”, um rei populista forte, é nada mais que um modo de tentar resolver essa luta entre a casa e a rua. O que é pessoal, no final, acaba prevalecendo sobre o impessoal. Enfrentar esse problema seria importante para resolver nossa desigualdade aviltante, que também tem suas origens em um familismo que desmoraliza todas as ideologias.

Até lá, seguiremos fabricando leis e ficções legais para beneficiar parentes, amigos e correligionários. Continuaremos demitindo juízes e procuradores para proteger nossos filhos. São essas coisas que nutrem as dinastias políticas, que crescem e se solidificam num entorno profundamente antidemocrático e desigual. Não foi por acaso que o escritor Luis Fernando Verissimo chamava o governo atual de “Bolsonaro&filhos”, uma brincadeira com mais essa dinastia nacional.

Honestamente, não sei qual é a melhor maneira de sanar o filhotismo. Afirmo, porém, que países nos quais o espaço público tem leis que valem para todos são nações onde reina o cidadão, não o súdito. É esse o caso dos Estados Unidos, onde o puritanismo individualista, a ausência de uma religião oficial e de um escravismo em escala nacional fizeram com que as regras da casa se conjugassem melhor com as da rua.

Enquanto no Brasil impera a ideia de que a lei deve proteger um clube de privilegiados, que frequentemente ameaçam os demais com a frase “você sabe com quem está falando”, a democracia americana foi fundada na percepção de que quanto menos governo, melhor, e que todos devem ter igualdade de condições. Foram essas qualidades que tanto impressionaram o francês Alexis de Tocqueville, ao viajar pelos Estados Unidos em meados do século XIX.

Seria então o filhotismo o nosso enorme e invisível entulho que nos impede de ter um estilo de vida mais igualitário e mais democrático? Se continuarmos sem criticar honesta e profundamente os nossos costumes mais “inocentes”, esse jogo decepcionante jamais acabará.

Roberto DaMatta é antropólogo e professor emérito da Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos. Seu último livro é Você Sabe com Quem Está Falando?, publicado pela Rocco.

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  1. Apesar da demora das informações da revista , vale acrescentar que a prostituição ‘e a mais velha das profissões e relacionadas as mulheres , mas hoje por osmose se juntou aos togados , eis que surge um Salomão , que vem a engrandecer a profissão para agradar o futuro presidente bandido . Que país será este ?

  2. E o interessante é que a nossa Jurisprudência permite que coloquemos um filho como secretário de estado, como secretário municipal; pois entendem que são cargos políticos.

  3. Excelente reflexão sobre os costumes herdados dos portugueses das Capitanias Hereditárias, que prevalecem até os dias atuais, e se perpetuarão, se o cidadão brasileiro honesto e íntegro continuar assistindo passivamente a todas as acomodações engendradas por pessoas colocadas lá por nós mesmos.

  4. São repulsivos esses pais e filhos com suas condutas criminosas, espantosamente indecentes e parasitárias! E é impressionante como esses filhos completamente condicionados, robotizados e teleguiados são absolutamente incapazes de se libertarem do subjugo e questionarem o modus operandi paterno que, covardemente, lhes subtraiu o direito à decência e à correção de conceitos e procedimentos!!! É de dar nojo geral!!!

    1. Maria a esquerda nunca olha o próprio umbigo com o Lula 🦑 e lulinhas e consortes e amantes ! Ou ministros do STF e sua s esposas e filhos numa promiscuidades afrontosa em escritórios de advocacia privilégiiados!

  5. Só não podemos generalizar! Aqui em casa, meus filhos ganham ou perdem pontos dependendo do comportamento e atitudes. Assim , no final do mês, decidimos o valor da mesada. E sou servidora pública e brasileira! Independente, quero educar meus filhos a serem bons e respeitosos cidadãos!

  6. O pai negou-lhe o sorvete, pois naquele tempo, assim como hoje, esse filho não fazia por merecer. Na verdade umas boas palmadas

  7. Vamos mais longe nesse momento copo dó filhotismo, estamos na esfera judiciária também não só política, agora tudo está na mão dessa casta nojenta, repugnante, filhos laranjas de país juízes, escritórios de advocacia que encaminham seus processos para seus pais influentes neste sistema. Esse Brasil já não vai dar mais nada. Estou desanimado completamente. Quanto mais leio me enojo.

  8. Estamos numa espécie de monarquia. Basta ver o Congresso Nacional, as câmaras de vereadores, prefeituras, legislativos estaduais. Sempre tem um ou mais herdeiros, parentes etc., para continuar a casta da roubalheira, privilégios, proteção judicial e o povo que se phoda.

  9. Acho que houve a confusão. Os filhos de JB foram eleitos de forma democrática. Não existe apadrinhamento nesse mérito. Seu exemplo, citado por veríssimo, foi no mínimo desastroso.

    1. Foram eleitos para o legislativo e não para presidente da República que é como teimam em atuar.

    2. Mas sao protegidos pelo pai. Foi exatamente essa tentativa de proteção que desencadeou a saída de Moro do governo

  10. Ótima análise. O foro privilegiado é elo poderoso pra esse filhotismo. A harmonia constitucional entre os 3 poderes também é desculpa pra essas relações de compadrio. Pobre país

  11. O apodrecimento continuo da moral e dos bons costumes coloca o brasileiro decente em desespero, em razão de eventual embate pela presidência entre dois dos mais notórios e determinados ladroes, ditos país exemplares em prol de suas crias, mas em prejuízo das necessidades da população brasileira,

    1. Não poderia deixar de agradecer ao professor Da Mata pela excelente oportunidade oferecida aos leitores de Crusoé para refletir uma vez mais sobre assunto, de tamanha relevância sempre.

  12. Excelente artigo! Infelizmente para chegarmos a ser igualitários, só começando tudo de novo sem a presença dos muitos caciques políticos e seus derivados. Como fazermos isto? Se os que tem discernimento não tem peso político nenhum?! Como resolver o impasse?

  13. Não iria tão longe na história e na sociologia pra explicar essa atitude no Brasil. É mais simples que isso. Aqui não há a ideia de civismo nem exercício de cidadania, que vem de educação sólida, não de berço. Assim, o serviço público não é "ao público", mas sim "do público a mim". Deste modo não nos faltam empregados públicos em cargos políticos que os vêem como porta de ascensão social para si e para os seus, nos faltando altruístas estadistas.

  14. meu querido e saudoso pai sempre falou que tinha duas coisas essenciais para se dar aos filhos, educação e um nome honrado. ele nos deu os dois. Lhe custou muito, trabalhou como um condenado mas seus 5 filhos foram educados e hoje carregamos seu nome com muito orgulho. É um ultraje para o cidadão de bem ver esses dois marginais criarem essas aberrações. Mas pensando bem só podiam ser crias desses marginais, não tiveram os pais que eu tive e nós vamos continuar a sofrer.

  15. Perfeito, prof. Damatta. Ainda evitanos o entendimento do Espírito das Leis no Brasil inculto e belo por natureza.

  16. Infelizmente o patrimonialismo é uma prática danosa, enraizada na cultura do povo brasileiro, desde os primórdios do império. invejo o zelo e seriedade como essa questão, entre os limites do público e os limites do privado, é prioritária e de extrema relevância na cultura dos países escandinavos.

  17. Este texto do professor Roberto Damatta é simplesmente fantástico e mostra-nos a estrutura podre da nossa sociedade, mas como mudar tudo isso se o povo na sua quase totalidade não se apercebe desta realidade pra fazer valer o poder que emana do povo e cair pra cima dos políticos que elegemos pra mudar esta realidade? Povo sem cultura, sem comida, consequentemente sem conhecimento e força e sobretudo sem vontade de mudar, morre escravizado pela casta de sempre.

  18. Faltou dizer q p/mudar a natureza humana - filhotismo incluído - não se espere educar para consciência social ou política. P/evitar que os desejos humanos se sobreponham aos interesses públicos, o cidadão precisa ser árbitro e chefe dos seus representantes, com voto distrital puro e recall de eleitos e nomeados. Filhotismo alí, corrupção lá, incompetência acolá: basta convocar o recall e limpar o lance. A mera existência do recall na democracia americana já refreia enorme parte desses males.

  19. Texto muito pertinente! Parabéns ao autor. O que emperra nossa democracia são esses " pequenos" detalhes , que em grande medida são suportados ( qdo. não aplaudidos) por grande parte de nossa população. Pois o silêncio diante do abuso também é conivência!

  20. Meu LIVRO “O INROTULÁVEL”. Link de acesso: https://www.amazon.com.br/dp/B09HP2F1QS/ref=cm_sw_r_wa_awdo_PQSA5Z6AXXH2SX16NH87 #MOROouNULO: o ACORDÃO dos DEGENERADOS MORAIS para EVITAR o IMPEACHMENT do BOLSONARO e TIRAR LULA da CADEIA! os EXEMPLOS EXECRÁVEIS que uma SOCIEDADE tão CORRUPTA é capaz de produzir! Em 2022 SÉRGIO MORO “PRESIDENTE LAVA JATO PURO SANGUE!” Triunfaremos! Sir Claiton

  21. Parabéns para a Crusoé pela iniciativa de trazer um texto do Roberto da Mata. Obrigada professor Roberto pela assertividade dos argumentos.

  22. Saudades do meu professor na FGV e autor do livro a Casa e a Rua, entre vários. Excelente texto, parabéns professor!

  23. Exemplos de filhotismo no judiciário: Marco Aurélio e Luiz Fux, o primeiro ex-ministro e o segundo presidente do STF, usaram seus cargos para conseguir a nomeação das respectivas filhas para o cargo de desembargadoras.

    1. Voto distrital puro e recall de eleitos e nomeados: do diretor da escola ao desembargador, todos submetidos à vontade do chefe, ou seja, o cidadão com voto naquele local. Eu voto, você vota, nós DESVOTAMOS o incompetente, o ladrão e o filhotista. Enquanto isso, podemos também instruir nossos filhos e aguardar algumas décadas para alcançar outra consciência social.

    2. Na Justiça, no Legislativo e no Executivo essa praga nos colocou entre os países que menos crescem no mundo e tem um dos maiores contingentes de super-ricos cuja fortuna em boa parte foi amealhada a partir de dinheiro público. Não entendo como nada se fala para a adoção do voto distrital puro que ajuda a resolver isso em boa parte.

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