MarioSabino

O barbeiro e as moiras

26.05.22

Quando era criança, entre tantas personagens da mitologia grega que me foram apresentadas por Monteiro Lobato, fascinavam-me as três moiras, as irmãs que fabricavam, mediam e cortavam o fio da vida. A primeira era Cloto, que o fiava; a segunda, Láquesis, que estabelecia o seu tamanho; a terceira, Átropos, que o cortava e, assim, dava um fim à existência de cada homem.

Átropos esteve presente no meu último domingo.

Como faço a cada duas semanas, lá se vão 30 anos, vou ao barbeiro para cortar o cabelo que não tenho. Carecas são assim: cortam um cabelo inexistente, mas que insiste em encanecer lateralmente e avançar como penugem para o topo da cabeça. Eu poderia abrir uma barbearia na minha casa, tamanha a quantidade de maquininhas de que disponho, mas gosto de ir ao barbeiro. É um dos poucos momentos nos quais me permito não pensar em nada de preocupante ou muito complexo. Foi uma das coisas de que mais senti falta na pandemia. Barbeiros tanto cortam cabelos e aparam barbas como desbastam problemas e aplanam ideias, que só voltam a crescer assim que pisamos fora. Por causa disso, mesmo quando não era calvo, sempre fui homem de barbearias, não de cabeleireiros.

A barbearia da qual sou cliente não é uma dessas chiques, com nome de mafioso. A minha barbearia fica num canto esquecido do meu clube. Lá trabalham (ou trabalhavam) o Marcos, o Tomás, o Barbosa e o Israel. O Israel entrou no lugar do Alexandre, que descolou a retina e, depois disso, resolveu mudar de cidade. O Samuel, que teve uma separação traumática, mas jura ser inocente e hoje vive com uma personal trainer, decidiu abrir a sua própria barbearia no bairro em que mora, ainda durante a pandemia.

No último domingo, apareci por lá. A barbearia estava vazia de clientes e barbeiros, apenas eu e o Tomás no pequeno salão de azulejos beges, de teto alto, com cinco cadeiras distribuídas em bancadas em paredes opostas, três cadeiras de um lado, duas de outro, e uma televisão invariavelmente ligada num canal esportivo (contíguos ao salão, há uma pequena sala de espera e um salinha de pedicure, que usei uma vez, para tirar um calo). Das duas portas de entrada do pequeno salão de azulejos beges, uma estava fechada, o que é nada usual.

Sentei-me e pedi o mesmo serviço de sempre: máquina zero, aparar a barba e dar um jeito nos fios das sobrancelhas que crescem desiguais.

“Nunca vi tão vazio.”

“É, está ficando assim…”

“Tomás, o Marcos usa máquina e pente para dar um jeito nas taturanas. Você pode fazer igual a ele, está bem?”

“Está certo.”

“E o Marcos, como vai? Faz tempo que não vejo.”

Tomás desligou a máquina e sua figura congelou-se no espelho.

“Você não sabe, Mario?”

“O quê?”

“O Marcos morreu.”

Virei-me, aturdido.

“Morreu?!”

“Morreu. Câncer, estava todo espalhado.”

“Mas… Quando ele morreu?”

“Ah, já faz 40 dias.”

“Quer dizer que o Marcos já havia morrido quando estive aqui na vez passada?”

“Sim.”

“Mas como é que ninguém me conta, Tomás?”

“A gente fala disso de vez em quando… Puxa, Mario, não pensei que você fosse ficar assim…”

“Como não?! O Marcos fazia parte da paisagem da minha vida… Achei que ele estivesse a caminho da aposentadoria, vindo menos… Meu Deus, Tomás, o Marcos morreu…”

Tomás espantou-se que um cliente pudesse se interessar pela morte de um barbeiro. Contou-me, então, que a doença se manifestara inicialmente como uma dor nas costas, que o Marcos tratou com acupuntura. A dor melhorou, mas logo depois ele começou a sentir fortes dores abdominais. Veio o diagnóstico: câncer no fígado que já se espalhara pelos ossos.

“Sim, eu me lembro da dor nas costas. Ele comentou comigo.”

“Então, não era ciática.”

“Quanto anos ele tinha?”

“78.”

“Deu duro até o fim.”

O Marcos era o concessionário do salão. Agora, o negócio deve passar para as filhas. Tomás trabalhava com ele havia mais de 30 anos.

“Devo tudo ao Marcos. Eu não fiz escola, aprendi a cortar cabelo sozinho, tenho o meu jeito. Ele acreditou e me deu uma chance. Foi um pai. Acho que fez comigo o que fizeram com ele quando ele era jovem. Vou ser eternamente agradecido. As filhas dele podem contar comigo.”

“Onde ele estava internado?”

“No Hospital do Mandaqui. Fui lá visitar. Ele estava inconsciente, mas muito agitado, fazia uns gestos com os braços… Acho que percebeu a minha presença e queria me abraçar.”

Uma lágrima brotou no meu olho direito.

Ficamos calados, ele exercendo o seu ofício, o salão ainda mais vazio.

Quando acabou, levantei-me, lancei um olhar para a bancada onde o Marcos trabalhava e perguntei onde estavam os apetrechos dele.

“As filhas levaram. Eu queria como lembrança uma tesoura alemã que compramos juntos, mas acho que ele mandou afiar e ninguém sabe onde está…”

“Uma tesoura alemã?”

“Ele comprou uma e eu comprei outra igual, fomos juntos.”

“Você tem a tesoura aí?”

“Quer ver?”

“Claro.”

Tomás foi até a bancada dele e tirou de uma caixa uma tesoura de barbeiro de aço escovado. Mostrou-me, entusiasmado, como as serrilhas das lâminas eram boas, como os anéis encaixavam-se perfeitamente nos dedos, uma verdadeira obra de arte.

“A sua tesoura também é uma recordação dele, Tomás.”

“Verdade.”

Silêncio.

“Quanto lhe devo?”

“Vou cobrar só o cabelo, que no domingo é mais caro, você sabe. A barba fica por conta.”

“De jeito nenhum.”

Paguei, demos um aperto de mão e um meio abraço.

“Sinto muito, Tomás.”

“Obrigado, Mario.”

Antes de sair, lancei um olhar para o salão. Na viga central do teto alto, há um velho boneco do Topo Gigio pendurado.

“Eu tinha um Topo Gigio como esse quando era criança. Era do Marcos?”

“Não, já estava aí, quando ele pegou o salão.”

Não era Topo Gigio que nos observava com o seu olhar vítreo, lá de cima, mas a moira Átropos, cuja tesoura não precisa ser afiada e que cortara o fio da vida do Marcos.

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  1. O Clube é o Pinheiros? Será o mesmo Marcos que cortava os meus (também poucos) cabelos enquanto fui sócio, até os meados da década passada? Tristeza...

  2. Nascer, Viver e Morrer !Essa é a caminhada de todos, sem escolha. Mas, feliz é aquele que deixou uma lembrança para ser chorada. Assim como, também é feliz, quem tem um amor para lembrar e uma saudade que mantém presente quem se foi.

  3. Que o bom Deus receba a alma do Marcos em Sua Glória! E obrigada, Mario, por compartilhar conosco suas reflexões sobre a vida, que é muito mais do que a politicagem rasteira e a mesquinhez humana cotidianas.

  4. Que conversa lírica. Em meio a tantas discussões dessa política que nos dá enjoos , você nos dá um bálsamo. Obrigado Mário, te amo muito. Por mais momentos assim no Antagonista também. 👏👏👏

  5. Se é lokoooooo! 😍 É disso que estamos precisando…. Amor ao próximo, um olhar além dás aptidões. Valeu Mario! 🌹

  6. Não pude conter as lágrimas, que rolaram copiosamente, pois me veio à mente uma sobrinha de 28 anos, que perdi há 4. Sentia dor nas costas, aí descobriu-se o retorno de um câncer tratado 5 anos antes. Voltou furioso e cortou o fio e deixou as dores para trás.

  7. Mário, permita-me chamá-lo de meu amigo. Gosto de suas histórias. Você tem o nome de meu pai. Quanto aos barbeiros, tive poucos ao longo da vida. Lembro de quase todos eles. De suas barbearias. De seus papos. Não sei se sou fiel, ou acomodado. Sua história botou-me em movimento. Viajei por todas aquelas barbearias de minha vida. Belíssima história. Mais ainda, comovente. Abraços...Ney

  8. E a vida segue, para alguns. Impossível não refletir sobre nossas perdas, principalmente nesse ambiemte de pandemia

  9. Lágrima ……. desculpem …. Ando extremamente emotivo… uma hora dessas te encontro Marcos ; e te dou um abraço pelo Mário !

  10. Como as coisas simples do dia a dia tornam-se necessárias e viram referências durante a vida. O seu barbeiro, onde quer que esteja, deve estar feliz por saber que deixou marcada sua pasagem nestas plagas. Obrigada, Mário, pela sensibilidade e delicadeza com que nos trouxe esse relato.

  11. Os fios ; o fio da vida , o fio de Areadne , o fio da faca , o fio da trama... muito boa referência aos fios . obrigada Grande Mário. parabéns..

  12. A sensibilidade do Mario é como a tesoura alemã: nos corta a dureza que se instala na alma pelos embates do dia a dia.

  13. A percepção da transcendência alivia a dor da perecibilidade da vida. Mas é necessária a mestria para versar sobre a escassez de fé no Grandão lá de cima e da certeza do impreciso fim sem ser piegas. De qualquer forma, a saudade dos que partem doi como aviso dessa nossa finitude. Que seja certo o ponto ômega profético com as promessas do paraíso. Amém.

  14. Mario, você conseguiu me emocionar daquele jeito bom, jeito de ser humano. Coisa que quase esquecemos ao ver tantas barbáries todos os dias. Obrigada por me devolver este fio que nos liga a todos.

  15. Texto maravilhoso, como sempre! Hoje faleceu em PoA um jornalista (David Coimbra) que, como tu, Sabino, escreve brilhantemente sobre as coisas simples da vida. Gente como vocês são raros! Te cuida e obrigada!

  16. "fazia parte da paisagem de minha vida", expressa o conhecimento da condição humana . Fiquei comovida. Abraço forte.

  17. Mário, muito bacana seu texto. Acho que as vezes devemos desligar para as loucuras do cotidiano e olhar a vida como deve ser vista. Afinal, a vida é um sopro ...

  18. Consegui imaginar essa sala da barbearia. Que gostoso ler esse texto. Momentos para parar com essas loucuras políticas e cair no nosso cotidiano. É aí que vale viver.

  19. Que texto sensível e delicado! Vc tem sentimentos nobres, coisa rara. Que bom saber de gente que vale a pena existir , em meio a tanta grosseria que se vê por aí . Obrigada por esse respiro de humanidade!

  20. Bonita e sensivel homenagem! A sua sensibilidade, Mario, transpira em cada texto seu, seja um comentário politico ou comentario de vida, como este.

  21. A delicadeza e sensibilidade que VC escreve a perda de seu amigo barbeiro; dita como é verdadeiro o seu Ser e tão humano. Obrigada, pois precisamos muito de pessoas como VC, Mario Sabino🙏

  22. Mário, também tenho uma história parecida. Foi esses dias. Morreu de COVID o meu barbeiro. Cortou meu cabelo por 42 anos. Fiquei vários meses sem cortar o cabelo, não conseguia encontrar um outro ou não queria encontrar outro. Dessas coisas que só você sabe escrever.

  23. Também enchi os olhos d'água ,Mario. E que fio ,o seu. Gosto de segui-lo e me colocar ao lado dele ,o que o devaneio e anonimato me permitem.

  24. Vou fingindo que nem chorei, nem que tive que tirar os óculos, nem que ainda tenho um nózinho na garganta...

  25. Como é impactante para a minha simples vida esperar essa coluna às sextas-feiras. E hoje eu a leio da cama, infectado pelo vírus por alguns desses milhares de inconsequentes que estavam no Center Norte na semana passada, acreditando que “as máscaras foram banidas, não precisa usar”. Eu não contaminei ninguém, continuei usando a minha.

  26. Como me faz bem ler seus artigos, depois de leituras tão ácidas sobre política, polarização, ficando claro o rumo sem futuro do nosso país!

  27. Ai que nó na garganta! Sinto muito pela sua perda, sinto muito pelo Marcos. Sempre me entristeço e me preocupo pelo fim... Creio em Deus e em vida eterna, mas sempre tenho o peso de saber que não a mereço, então o fim me preocupa bastante! Acho q me perdi por aqui... Mario, lamento muito. Sinceramente.

  28. Esse seu texto e aquele só do seu pai estão entre meu favoritos. Esse do barbeiro daria um lindo curta metragem para ganhar prêmio.

    1. Que Atropos te deixe deixe e paz , e vc viva muito muito para contiarmos admirando a sua sensibilidade....Coisa mais linda!

    1. Realmente uma poesia!!!! Uma leveza, uma doçura nos mostrando os caminhos da vida!!!

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