RuyGoiaba

Somos vira-latas, sim

26.05.22

Eu juro que não é implicância com a Folha: para quem não sabe, o jornal é minha alma mater, mais que a universidade que cursei (“eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho”). Passei muitos anos ali, publiquei a coluna de Ruy Goiaba por bastante tempo no F5 e tenho até amigos que são de lá — ou tinha; é provável que, a esta altura, eles já tenham desistido. Mas parece que a turma tem se empenhado em fornecer pautas para esta coluna, pelo que agradeço. A mais recente está em uma reportagem publicada na semana passada, sob o título “Escorregões de Lula em linguagem inclusiva viram alvo de aliados e rivais”.

O que foram os tais “escorregões”? Cito ipsis litteris a Folha, que descreve o “desconforto” na base do petista: “As queixas, geralmente feitas em privado para não respingar na candidatura, giram em torno do uso de palavras como ‘índio’ (em vez de indígena) e ‘escravo’ (no lugar de escravizado) e de referências que contrariam, por exemplo, os veganos, com repetidas alusões a churrasco e picanha. Outro problema apontado é um termo com conotação sexual no bordão de Lula sobre ter 76 anos de idade, mas ‘tesão de 20’. Sob anonimato, uma apoiadora diz que, embora o presidenciável faça uma associação com sua energia política, o termo soa depreciativo para o conjunto das mulheres.”

É tanto absurdo que não sei nem por onde começar — e quero deixar claro que não estou atirando no mensageiro: parto do princípio de que os repórteres só retrataram a realidade, por mais surreal que ela seja. Vocês conseguem imaginar Lula — ex-operário, ex-sindicalista, com quase 80 anos na cara e precisando de dezenas de milhões de votos num país como o Brasil — se policiando para não falar em “churrasco” e ferir suscetibilidades veganas? Levando sermão porque “o certo é ‘escravizado’” (importação daquele “debate” bem americano sobre slave e enslaved)? E, Deus do céu, desde quando “tesão” é depreciativo para mulheres? Mulher não tem tesão? Prefere escolher parceiro (parceira, parceire, parceirx, seja lá o que for) em uma comunidade de eunucos, para evitar ser depreciada?

Pelo que se depreende da reportagem da Folha, os críticos do ex-presidente são magnânimos: até toleram o fato de ele se dirigir aos ouvintes como “meus amigos e minhas amigas” (o que, de resto, Sarneyzão da massa já fazia com seu “brasileiros e brasileiras” há quase 40 anos), em vez de recorrer à “linguagem neutra” e sair dizendo por aí coisas como todes e amigues. Em compensação, problematizam — não estou brincando — o fato de Lula ter chamado Gleisi Hoffmann de “galega”. Não consigo imaginar nenhum lugar em que “galega” possa ser considerado termo ofensivo, com exceção da Catalunha, talvez.

O texto ainda nos informa que as redes bolsonaristas fizeram a festa com falas como a da apresentadora do evento que oficializou a chapa Lula-Geraldo Alckmin, no dia 7 de maio (“quero aqui fazer um escurecimento, ou esclarecimento”). Ora, mas alguém tem alguma dúvida de que isso é levantar uma bola redonda para bolsominion cortar? Nem entro, aqui, no mérito da etimologia freestyle, tirada daquele lugar que não posso citar numa revista de família como a Crusoé, com sua invenção de que palavras e expressões como “criado-mudo” e “feito nas coxas” têm origem racista. Seria um parêntese gigante, do tamanho de uma coluna inteira — aliás, talvez eu escreva sobre isso um dia.

O que quero é chamar a atenção para esse traço bem brasileirinho, e bem subdesenvolvido, de importar toda e qualquer moda do exterior, por mais estúpida ou mais fora de lugar que ela seja no contexto do Bananão. Vale para as duas pontas da boa e velha ferradura ideológica: à direita, aquela turma que se acha embaixadora da National Rifle Association (só falta invocar the right to keep and bear arms, em inglês mesmo) e está prontinha para imitar a invasão do Capitólio se Jair Bolsonaro perder. E, à esquerda, aquele povo sempre antenado na última moda em baboseira identitária que estiver bombando na metrópole. Esse tipo de discussão, luxo de país com alto IDH e necessidades básicas dos habitantes resolvidas, fica ainda mais ridículo num lugar em que meia população caga no mato (pardon my French). E trocar “escravo” por “escravizado” não mudará em um milímetro o racismo e a violência associada a ele no Brasil.

Dois anos atrás, escrevi aqui mesmo que estava cansado de ouvir/ler a expressão “complexo de vira-lata” e argumentei que o brasileiro precisava, ao contrário, parar de se considerar um ser de exceção. Hoje, admito que estava procurando o tal complexo no lugar errado: ele não só existe como sua vira-latice se manifesta plena e ruidosamente na importação de tudo quanto é bugiganga mental (dos Euá ou da China, conforme o gosto do freguês). Deixem a gente continuar brincando com os espelhinhos que os gringos nos mandam: afinal, transformar o Bananão num país minimamente habitável dá muito trabalho. Deus nos livre.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Uma vereadora bolsonarista de Londrina, cujo nome obviamente não vou publicar aqui para não gerar engajamento (se estiverdes curiosos, oh leitores, procurai e encontrareis), protocolou um projeto de lei para proibir a venda de “produtos alimentícios em formato de órgãos sexuais humanos” na cidade do Paraná. Eu só lamento que a proibição não se estenda a animais como cavalos e baleias (“ah, como era grande!”) e, sobretudo, que esse projeto de lei não englobe o que o Casseta & Planeta chamava de vegetais de duplo sentido: seria divertido ver os pobres londrinenses tendo que se deslocar até Maringá para comprar berinjelas, batidas policiais encontrando pepinos e cenouras em lugares recônditos nas casas dos “elementos”, repressão ao tráfico de bananas etc.

Susotil/FlickrSusotil/FlickrComo diria o poeta, eu não quero mais pepino, nem do grosso nem do fino

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