Reprodução/Instagram/Gusttavo LimaGusttavo Lima: O Antagonista contabilizou 5,3 milhões de reais em contratos com prefeituras

Boi da grana preta

Financiamentos de sertanejos e outros artistas mostram que a política cultural de bolsonaristas e petisas é basicamente a mesma: faturar com dinheiro público
03.06.22

Em 2016, Michel Temer decidiu acabar com o Ministério da Cultura (MinC), o que provocou revolta no meio cultural. Ele logo mudou de ideia diante da repercussão negativa — artistas e produtores chegaram a ocupar as dependências do (MinC) —, mas seus apoiadores levaram a briga adiante. Meses depois, foi aberta a CPI da Lei Rouanet, que concluiu com alguns poucos pedidos de indiciamento e sugestões para melhorar a fiscalização de projetos beneficiados com recursos oriundos de renúncia fiscal, que totalizavam até ali 1,2 bilhão de reais. O material da CPI serviu ao discurso de Jair Bolsonaro contra a esquerda, a maior beneficiária do incentivo — e, ao ser eleito, o presidente anunciou a extinção da pasta. Não houve recuo. Ela foi substituída por uma Secretaria Especial de Cultura, ligada ao Ministério do Turismo. Desde o início do governo, passaram pela secretaria Henrique Pires, que saiu atirando, por causa da suspensão de projetos LGBT para TVs públicas, Roberto Alvim, que plagiou um discurso do chefe nazista Joseph Goebbels, para explicar a sua concepção de cultura, e a atriz Regina Duarte, que dispensa apresentações e comentários. Ela foi substituída pelo, digamos, ator Mário Frias.

De lá para cá, também foi aumentando o esperneio e o ranger de dentes da chamada “turma do Leblon“, com a produtora Paula Lavigne, mulher do cantor Caetano Veloso, liderando o movimento antibolsonarista na área cultural. Esse movimento aderiu imediatamente à campanha de Lula e vários artistas passaram a se manifestar pela volta do petista ao poder. No mês passado, até regravaram o jingle “Lula lá“, exibido no lançamento de sua pré-candidatura. À repulsa a Jair Bolsonaro e ao atávico esquerdismo dos artistas da MPB, da TV, do cinema e do teatro brasileiros, juntou-se a esperança de que voltem, com Lula, os tempos das vacas gordas para shows, filmes e espetáculos, bancadas com dinheiro de renúncia fiscal, dentro do âmbito da Lei Rouanet. Dinheiro público, portanto, visto que as empresas trocam parte do que é devido ao Fisco por financiamento a artistas, com a vantagem de que os financiadores podem fazer marketing das suas marcas.

A Lei Rouanet foi pensada para impulsionar artistas sem maiores recursos ou acesso a crédito, mas se tornou muito mais um instrumento para financiar nomes consagrados, que não precisariam de dinheiro público para exercer as suas atividades. Como é natural, os departamentos de marketing das empresas preferem famosos a desconhecidos — famosos que também contam com produtores com uma ótima rede de contatos no meio empresarial e que, até Jair Bolsonaro ser eleito, tinham amizades também no meio oficial, para facilitar a aprovação dos projetos movidos a renúncia fiscal. Do ponto de vista racional, faz sentido que o Estado ajude a patrocinar, direta ou indiretamente iniciativas culturais, visto que a arte é motor de desenvolvimento de uma sociedade, em vários planos. O cinema europeu, por exemplo, não existiria sem patrocínio estatal. O problema é a distorção que está ocorrendo no Brasil, desde que a Lei Rouanet entrou em vigor, no início dos anos 1990, no governo de Fernando Collor — e da distorção fazem parte desvios que deveriam ser melhor apurados. Houve, por exemplo, o caso de uma atriz já falecida que comprou um apartamento no Rio de Janeiro com dinheiro de renúncia fiscal, e não era incomum ouvir de produtores interessados em financiar projetos artísticos, via Lei Rouanet, que estava na hora de ir a Brasília para “bater umas carteiras“.

Mais uma vez, contudo, o bolsonarismo apropriou-se indevidamente de uma boa bandeira — a de pôr ordem na aplicação da Lei Rouanet —, para embalar tudo na sua alopragem ideológica, com personagens saídos de um circo macabro. Abriu, assim, o flanco para que os seus adversários do meio cultural atacassem o governo com carga pesada e sem medo de ser felizes apoiadores de Lula.

A reação à campanha lulista veio dos cantores sertanejos, a maioria antipetista. Em shows recentes, eles resgataram o discurso contra a “mamata da Rouanet“, mas acabaram levando um coice. Descortinou-se um milionário sistema de contratações por prefeituras espalhadas pelo país. Shows com artistas populares são frequentemente usados como estratégia de marketing por prefeitos que buscam visibilidade e os sertanejos têm cobrado alto para subir no palanque, quer dizer, no palco. O pretexto dos prefeitos é o de movimentar a economia local, mas o que eles movimentam mesmo são as contas bancárias das atrações. Alguns cachês ultrapassam 1 milhão de reais. A prefeitura ainda arca com despesas de hospedagem e transporte do artista e da sua equipe. É a verdadeira farra do boi da grana preta.

Reprodução/Instagram/Mateus e CristianoReprodução/Instagram/Mateus e CristianoMateus e Cristiano: jingle para Bolsonaro
Zé Neto, que puxou a fila de campanha bolsonarista, cobrou  400 mil reais no show que fez há poucas semanas em Sorriso (MT), às expensas da prefeitura da cidade. “Estamos aqui em Sorriso, no Mato Grosso, um dos estados que sustentaram o Brasil durante a pandemia. Nós somos artistas e não dependemos de Lei Rouanet, nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou não. A gente simplesmente vem aqui e canta e o Brasil inteiro canta com a gente”, disse, sorrindo sem corar. A prefeitura de Extrema, no sul de Minas Gerais, gastou 550 mil reais pela apresentação de Zé Neto e Cristiano na festa do peão marcada para outubro. O campeão Gusttavo Lima cobrou 1,2 milhão de reais para cantar em Conceição de Mato Dentro (MG) e outro 1 milhão de reais em Magé (RJ). O contrato com a prefeitura de São Luiz (RR) ficou em 800 mil reais. Lima também fechou por 850 mil reais com a prefeitura de Santa Terezinha do Itaipu (PR) — o recurso sairá dos royalties pagos pela hidrelétrica binacional — e por 704 mil reais com a administração de Teolândia, na Bahia, onde se apresentará na Festa da Banana. O Antagonista contabilizou ao todo 5,3 milhões de reais em contratos firmados pela produtora de Lima com prefeituras. Vários entraram na mira das promotorias estaduais. Em live, o artista foi às lágrimas e reclamou de “perseguição“.

Nomeados “embaixadores do turismo” pelo atual governo, Bruno e Marrone também foram favorecidos com shows contratados por prefeituras interioranas. Mozarlândia, uma cidade de 15 mil habitantes no norte de Goiás, topou pagar 300 mil reais para a dupla. A prefeitura de Lagarto, distante 80 quilômetros de Aracajú, contratou o show por 420 mil reais. Outra dupla bolsonarista que criticou a Lei Rouanet e foi igualmente beneficiada com contratos públicos é formada por Henrique e Juliano. Eles também se apresentaram em Santa Terezinha do Itaipu. Valor do cachê: 663,5 mil reais — montante 35,4% maior que o pago pela mesma prefeitura em 2020. Na época, o município contratou o show, mas ele foi cancelado em virtude da pandemia.

Para surpresa de ninguém, além de contratos com prefeituras, os sertanejos também bicaram a Lei Rouanet que tanto criticam. Crusoé apurou que a dupla Mateus e Cristiano, que compôs e cantou um jingle para Bolsonaro durante a visita de Elon Musk, captou 199 mil reais via Lei Rouanet, para a gravação de um DVD ao vivo da dupla, em 2020 — na época, a Secretaria Especial de Cultura já era comandada por Mário Frias. No início deste ano, a dupla conseguiu um aditivo ao contrato, que a autorizou a captar mais 26,1 mil reais para gravar o DVD, totalizando 225,1 mil reais. Segundo as portarias da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, ligada ao Ministério do Turismo, a dupla justificou o pedido de apoio financeiro para “divulgar seu novo material de trabalho, além de revisar clássicos”. “O desempenho da apresentação pretende mostrar uma compilação de canções inéditas e canções populares que fazem parte de um repertório tradicional reconhecido, harmonizando em um clima agradável a possibilidade para se ouvir a boa música brasileira”, argumentam os cantores. A dupla, que afirma ter 26 anos de carreira, compôs a música para Bolsonaro a pedido do marqueteiro do PL, Duda Lima. O refrão da canção diz que “no mito eu boto fé / É ele que defende a nação / Que tem nossa bandeira no seu coração”.

Nesta semana, alguns parlamentares ventilaram a ideia de instalação de uma ‘CPI dos Sertanejos’, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira, sinalizou que não há clima — nem tempo — para uma nova investigação parlamentar às vésperas da eleição. Seria realmente difícil reunir deputados em Brasília em plena campanha. Além disso, a CPI esbarraria em restrições legais para a convocação de prefeitos e secretários de Cultura, como ocorreu quando bolsonaristas tentaram convocar governadores petistas para a CPI da Pandemia. Afora o fato de que a apuração acabaria atingindo artistas simpáticos a Lula, como a cantora baiana Daniela Mercury, que fez campanha para Lula, no último Dia do Trabalho, em show bancado pela Prefeitura de São Paulo. O cachê de 100 mil reais acabou cancelado após O Antagonista ter noticiado a história. A cantora Anitta, em 2019, também foi criticada por seu cachê de 500 mil reais, em show custeado pela Prefeitura de Parintins (AM). Dias atrás, diante da repercussão dos contratos milionários dos sertanejos, ela debochou. “E eu achando que tava só fazendo uma tatuagem no tororó”, disse Anitta, numa rede social. Enquanto artistas, do lado A ou do lado B do espectro político, faturam alto às custas do erário, o pagador de impostos assiste atônito da plateia.

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