RuyGoiaba

O estranho mundo da etimologia freestyle

03.06.22

As duas ou três pessoas que me leem sabem que já usei algumas vezes aqui a expressão “etimologia freestyle”. Digo isso quando a alegada origem de uma palavra é completamente falsa e sem fundamento, mas circula como verdade absoluta, em geral porque parece ser avalizada por alguma historinha pitoresca. Exemplo clássico é dizer que “forró” vem do inglês “for all”: já vi mais de uma pessoa “explicando” que o termo teria surgido na Segunda Guerra por causa das bases americanas no Nordeste, quando os ianques promoviam bailes “for all” etc. História divertida, mas inverídica: o Houaiss nos diz que “forró” é apenas forma abreviada de “forrobodó”, com o sentido de “baile popular, arrasta-pé, festança”.

Até aí, por mais que isso me irrite um pouco, não vejo grande problema em a pessoa acreditar que “forró” deriva mesmo de “for all” ou que “carcamano” é de fato uma, digamos, homenagem aos imigrantes italianos que carcavam a mão na balança da venda. Só que o negócio muda de figura quando a etimologia falsa é não apenas tomada como verdade incontestável como usada para justificar cancelamento — tanto da palavra em si como do infeliz que por acaso a emitiu.

Há inúmeros casos recentes, mas o que ganhou mais tração nas redes sociais na semana passada foi o do apresentador da GloboNews que passou um pito na colega repórter, ao vivo, por ela ter usado o verbo “denegrir”. Deve ter sido batido aí algum recorde de deselegância, ignorância e sinalização de virtude ao mesmo tempo — piorado pela atitude da repórter, que se desculpou no ar por ter usado uma “palavra claramente racista”. O que a etimologia não freestyle nos diz? Que não há racismo em “denegrir”: o termo já existia no latim (denigrare) séculos antes do início da escravidão africana nas Américas, com o mesmo sentido essencial de “manchar” a imagem de alguém. A besteira enunciada por meus colegas jornalistas é parente daquela que transforma “esclarecimento” — alusiva à oposição luz/trevas, tão antiga quanto a espécie humana na Terra — em “escurecimento” ou rebatiza como “ovulário” um seminário só com mulheres.

E não para por aí. Já citei aqui o vexame daquela agência de checagem de informações (repito: agência de checagem de informações) que divulgou uma lista de mitos da internet sobre expressões supostamente racistas — como “feito nas coxas”, que se fosse alusão a “escravos fabricando telhas” requereria um escravo de uns 4 metros de altura, e “criado-mudo”, que é só tradução de dumbwaiter, não um “escravo proibido de falar”. Mais ou menos na mesma época do episódio na GloboNews, um site de um grande portal, cujo slogan é “por um mundo melhor”, repetiu as bobagens sobre “denegrir” e “feito nas coxas” e acrescentou outras, como “a coisa aqui tá preta” (olhaí, Chico Buarque, melhor copidescar logo aquela letra de “Meu Caro Amigo”). A lista desse site inclui uma ou outra expressão realmente racista, como a abominável “serviço de preto” — e presta um grande desserviço ao colocar no mesmo nível outros termos que nada têm de racistas (eu, pelo menos, adoraria ter direito a receber uma grana preta).

Muitas pessoas que fazem isso, repito outra vez, ganham a vida como jornalistas ou checadoras de informações. Por que gente que se diz tão empenhada em combater fake news insiste em propagar essas falsas etimologias? Porque fake news do bem vale? Porque querem muito pagar pedágio à polícia da linguagem e mostrar que estão do lado certo? Porque precisam puxar o saco dos novos legisladores e não querem deixar de ser convidados para o baile da polícia? Talvez tudo isso junto — e, como disse um amigo, ainda há a vantagem de a pessoa não precisar tomar atitudes concretas contra racismo e outras mazelas: para representar o papel de pessoa progressista, basta acusar as opressões do dicionário. Vejam: acho perfeitamente razoável que se evite empregar uma palavra ou outra quando ela pode resultar em interpretações indesejáveis. Mas não me venha com papinho etimológico freestyle como se fosse as tábuas da lei.

No melhor estilo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”, um grupo de amigos do Facebook resolveu ir fundo no freestyle, pegar qualquer palavra aleatória e inventar uma “história de origem” justificando por que ela deveria ser cancelada: por exemplo, “não escreva ‘negócio’ porque o termo significa ‘nego’ + ‘cio’, o que além de racista sexualiza indevidamente os corpos pretos”. Sou 100% a favor de fazer isso com TODAS as palavras possíveis e ver se cola: com o cancelamento generalizado da língua machista e opressora que é o português, pelo menos a gente chegará mais rápido àquele estágio em que só nos expressaremos com grunhidos — ou, na melhor das hipóteses, com o “ó o auê aí, ô” dos surfistas.

***

A GOIABICE DA SEMANA

A mais recente manobra diversionista do bolsonarismo é discutir essa questão de fundamental relevância para o Brasil que é a Barbie trans: Otoni de Paula, o vice-líder do governo na Câmara, conseguiu aprovar uma audiência pública para debater “as implicações psicossociais em crianças em decorrência da versão da boneca (…) com órgão sexual masculino” (o que aliás é mentira: a boneca vendida pela Mattel não vem com o acessório). Seria mais fácil os pais apenas ignorarem completamente a existência da boneca e/ou não comprá-la para os filhos, mas sabem como é: com inflação em alta, incompetência generalizada do governo e nada de bom para mostrar, só o que resta é fazer “guerra cultural” mesmo.

Divulgação/MattelDivulgação/MattelA “Barbie da discórdia”, inspirada pela atriz trans americana Laverne Cox

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  1. Um amigo nosso, o Negão (preto, top model, 1,90, lindo de morrer) disse-nos q não sabe o que responder quando lhe perguntam "como é q a gente tem q te chamar agora para que os outros ñ se sintam ofendidos?" kkkk

  2. O mundo virou um saco! Reconhecer os preconceitos não significa viver numa redoma de cristal, muito menos mentir com "justificativa". Excesso de frescura!

  3. Simplesmente não dou bola para isso.Zero! O preconceito não estão nessas palavras. Não tenho afeição a um suicídio das palavras. Não merecem. Um desrespeito e consideração as velhas palavras que tanto sentimento tiveram aqueles que as utilizaram. Seria trágico se não fosse cômico.

  4. Lendo sua coluna, pensei que talvez nós, avessos a essa importação ridícula da insuportável correção política dos EUA–por favor, reservem 1 hora do seu dia para assistir a palestra do dissidente da KGB, Yuri Bezmenov, dada nos anos 1980 (disponível com legendas no YouTube), para ver de onde vem tudo isso, e sua incrivelmente bem sucedida execução–pudéssemos aplicar os reforços comportamentais de Skinner com essa gente. Se não déssemos ibope ou indignação, continuariam crescendo? Repimândei! 🙄

  5. Obrigada pelo maravilhoso artigo. Chega a dar um alivio. Uma luz no meio da escuridão (ops) e pressão vigentes!

  6. Chegamos a um ponto em que costurar a boca é um 'habeas corpus' para evitar uma prisão. ... Um bananão cheio de analfabetos e famintos - sem falar dos delinquentes - e ainda temos de nos policiarmos para sermos "bacanas", ficar na moda, up to date. ... O inferno deve ser um pouco mais divertido. Ou menos chato.

  7. Sempre esquecem do termo "judiar" que é uma alusão à crueldade que os judeus fizeram com Jesus, termo amplamente utilizado, mas nunca, questionado.

  8. Adorei conhecer a etimologia freestyle! É no que dá ter um mercado que exige titulação acadêmica como diferencial para funções banais, gente sem noção e sem ideia que acaba escrevendo qualquer bobagem pra obter a titulação, pegando carona em temas que podem até ter importância e relevância em determinada área, mas que só causam confusão em outras, e uns abobalhados que, acreditando fazer divulgação e popularização científica, levam para o público coisas que são apenas lixo acadêmico.

  9. depois do Decoro Estético da coluna do Mainardi essa semana, já entendi que nós brasileiros temos um Decoro Freestyle. Adaptando nossas goiabices, sempre...

  10. Essa “guerra” insana contra a língua portuguesa afasta ainda mais o jovem do estudo do nosso idioma. O resultado é toda uma geração de gente que se formou na universidade mas não sabe falar nem escrever corretamente o Português. São advogados, jornalistas, engenheiros, médicos, recém-saídos das faculdades, com sérios problemas de comunicação oral e escrita.

  11. Os verdadeiros racistas são esses que procuram racismo em tudo e todos, com a clara intenção de sinalizar uma falsa virtude.

  12. Precisam de um assunto pra puxar voto como foi o caso do kit gay! Esses jornalistas de hoje são fraquinhos, fraquinhos, mesmos! Mal dominam a gramática! Esperar o que!

  13. O pessoal tá viajando mesmo... E cansando! Ô povo chato! Sobre a goiabice, ainda q venha do bolsonarismo, não acredito q seja verdade! Não é possível que seja verdade!

  14. Adoro ler a sua coluna , apesar da constatação de que a imbecilidade humana não tem fundo do poço .....e agente cava , cava.... é infinita

  15. Parabéns Ruy, como sempre! Sigo uma página no Facebook sobre etimologia, é muito bacana! Para quem quiser visitar: https://www.facebook.com/161842897299564/posts/2252191638264669/

    1. O lance do “criado-mudo” é infantil. Costumo perguntar ao repressor se criados e escravos só existiram depois da chegada dos europeus às Américas (me recuso a dizer “invasão”; tudo foi invadido, ora!) O repressor, então, me olha com cara de estafermo que descobriu que anda.

  16. Em vindo ou retornando a SSA/BA se for ao Pelourinho saiba que tem guia turístico que decodifica a origem do local pq ali existia uma papagaio e qdo se passava pediam "dá o pé lourinhoi". Não é mentira, tenha certeza.

  17. Essa deselegância ao vivo, causadas pela ignorância etimológica e pela vaidade vil, foi feita pelo mesmo apresentador que foi flagrado correndo na praia enquanto defendia na tv o necessário "fique em casa". A hipocrisia e a cretinice dele são bizarras!!

    1. Como já não aguento mais assistir Globo News, não soube desses fatos. E, como lá tem tido muitas dispensas não faço ideia de quem foi. Gostaria de saber (só para escra.char entre meus conhecidos que ainda assistem essas emissoras vendidas e parciais).

    2. Estranho são as feministas não falarem nada da mulher sendo tratada com deselegância e ignorância pelo âncora do jornal, e ainda obrigada a se desculpar, no ar, por um erro do repórter e não dela.

  18. A coisa aqui tá preta mesmo. A ponto da gente ver seu ótimo trabalho como uma flor de lotus do jornalismo nacional (ou seria necessário trocar por flor de vitoria regia para não melindrar tanto alguns colegas seus, valorizar a flora nacional, sei lá). Segue firme, alguém tem de lutar por não se deixar denegrir essa bela profissão.

  19. Assinante de primeira hora de O Antagonista e também da Crusoé, percebo que, apesar da crise financeira, conseguiram manter o notável talento do Ruy Goiaba, cujo cachê deve custar uma grana branca, ou seja, não é lá essas coisas. Isso me deixa contente.

  20. Na linha de vamos adotar a estratégia de terra arrasada seguem sugestões. A expressão "respeite meus cabelos brancos" é absolutamente racista, nazista, supremacista e desreipeitosa. O termo "negativo" deve ser abolido pois é discriminatório. "Tiro ao alvo" deve ser repensado. Alvo é branco mas a mosca é preta. O que fazer neste caso? Inverter as cores pode ser a solução.

  21. Ja que é pra inventar, lá vai minha contribuição etimológica cancelatoria: - Mude-se o nome da capital da África do Sul: " Pretoria " - preto + ria, realmente não fica bem.

  22. 2022: " Necessita-se de alguém habilitado para reescrever a Língua Portuguesa ( Brasil)." P.S.: O(A) autor(a) deve vir acompanhado(a) de um advogado, caso seja necessário alguma intervenção antes, durante ou após a publicação da obra atualizada . Que consigamos alcançar a paz . E que esta obra não necessite de alguma CPI antes de sua publicação.

    1. O autor deve vir acompanhado já com um habeas corpus…

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