Reprodução/Instagram/Leo e RaphaelA dupla Léo e Raphael, que canta Os Menino da Pecuária: "Não é à toa que o PIB começa com P de pecuária"

O país dos ‘bruto’

O sertanejo ganhou voz política e está pronto a entrar em guerra com outras ideias de Brasil, representadas por outros estilos musicais, como o pop e o MPB
03.06.22

A encrenca entre o sertanejo Zé Neto e a cantora pop Anitta deixou no ar uma pergunta: afinal, a bronca do peão tinha mais a ver com a tatuagem íntima da “Rainha” ou com o uso da Lei Rouanet pelos artistas de esquerda?

No desenrolar da história, a questão política ganhou proeminência. Descobriu-se que uma casta privilegiada de artistas de direita, mesmo quando não usa leis de incentivo, também tira casquinhas do dinheiro público, vendendo shows a preço de nióbio para prefeituras do Brasil profundo. Reviravoltas desse tipo sempre são divertidas.

O aspecto comportamental da crítica de Zé Neto, entretanto, não deve ser ignorado. Uma semana depois de apontar seu dedo acusador para a tatuagem de Anitta (No toba ou no tororó? Nem nisso eles concordam), o músico voltou ao palco, dessa vez na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Durante o show, seus fãs puxaram um coro contra a cantora carioca. Dessa vez, a fala de Zé Neto foi mais elaborada.

“Gente, não precisa”, disse ele. “Vamos rezar por essas pessoas e que Deus abra a mente delas e que elas entendam. Que venham um dia, um dia só na vida, calcem uma botina amarela, entrem num curral cheio de bosta para separar o gado, tirar um leite, passar peia num bezerro. E ver que a vaca não dá leite, você tem que ir lá tirar. O leite que você compra não vem bonitinho da caixinha, alguém tirou.”

Essa é a bronca do peão — o que está por trás do apoio que os sertanejos têm dado a Bolsonaro.

Ela não é visível nas músicas do gênero que fazem sucesso em todo o Brasil, entoadas por Gusttavo Lima, Luan Santana, Maiara & Maraísa ou Marília Mendonça, morta o ano passado. Essas, ou são para animar a balada, ou falam de confusões amorosas, sofrência, pegação e bebedeira.

Há, no entanto, segmentos do sertanejo que não atingem todos os cantos do país, mas são muito populares nas regiões agrícolas, com seus circuitos de festas, feiras e exposições. Zé Neto, com sua dupla Cristiano, pertence ao mainstream e faz canções românticas. Mas as letras daquele segmento mais escondido espelham o seu pensamento.

Um bom exemplo é a canção “Os Menino da Pecuária” (sem o “s” mesmo), da dupla Léo e Raphael. Ela é uma ode ao sucesso do homem do campo e tem os versos “Não é à toa que o PIB começa com P de pecuária / Senta aqui nós tem dinheiro, mas usa chapéu de palha / Pelo valor que tá o gado, quantas Ferrari tem aqui nesse pasto?”

“Doutor do Agronegócio”, uma parceria entre o cantor Paulo Mocelin e a dupla Fernando & Sorocaba, traz outras linhas reveladoras: “Mal sabia o cidadão que o meu patrimônio é grande / Estocado no porto seco de Cuiabá e Campo Grande / Na exportação de grãos, domino e não tenho sócio / Sou gauchão conhecido, doutor do agronegócio (…) Sobra os trocados que de quatro em quatro anos / Por farra vou financiando campanha de deputado”

Um último exemplo, cantado pela dupla Adson e Alana: “Nome é Brasil, Sobrenome Rural / Não é mais o País do Carnaval / No mundo inteiro é respeitado / Brasil agora é o País do Agro / Sem o campo e sem a roça a cidade não almoça / Se o agro não planta a cidade não janta / Hoje o trator é quem desfila e a colheitadeira é quem dança.” Essa música, “O País do Agro”, tem uma particularidade: cita uma marca de equipamento agrícola, que também financiou a produção de seu vídeo. A proximidade entre os artistas e todos os negócios e marcas que estão presentes nas feiras do setor agrícola é algo que não se deve perder de vista.

Adriel Santos/Instagram/AnittaAdriel Santos/Instagram/AnittaA cantora Anitta: um Brasil LGBTQIA+ e desapegado de raízes
Ascensão social é um tema presente há bastante tempo na música sertaneja. Mas antes ela tinha a ver exclusivamente com o enriquecimento pessoal, que ajudava o boiadeiro a conquistar a mulher dos seus sonhos (ou o punha em apuros nas mãos de interesseiras). Agora é diferente: o sertanejo quer respeito político, porque põe o jantar na mesa dos brasileiros, levanta o PIB e tem dinheiro para financiar campanha de deputado.

Ele também decidiu que não vai mais se encolher diante da gente da cidade. Bruto é uma palavra muito usada nessa vertente de música hiperassertiva. “Cinco playboy não faiz o que um bruto faiz”, cantam o DJ Kevin e Luan Pereira. “Pro azar do playboy, o agro venceu!”, dizem Antony e Gabriel. E também existem meninas brutas. “As bruta do agro chegou / o playboyzinho senta e chora”, cantam em parceria Ana Castela e Antoniela Bigatão (que só tem 16 anos). Segundo Antoniela, em outra música, “quando as gurias dançam, sobe o PIB do Brasil”.

A dupla Davi & Fernando bate de frente com os jovens urbanos politicamente corretos. Em “Velório do Boi”, eles celebram o churrasco com pinga e modão de viola, e arrematam: “Enquanto nóis festa os vegano chora”.

Essas músicas “brutas” mostram um homem do campo muito mais brigão do que qualquer outro que tenha sido representado anteriormente pelo sertanejo. Elas revelam disposição para entrar em guerra com outras ideias de Brasil, apresentadas por outros estilos musicais: o Brasil bucólico, de matas preservadas e gente simples do campo, ainda cantado pela MPB; e o Brasil LGBTQIA+, desapegado de raízes, do pop de Anitta, Pabllo Vittar e Luísa Sonza, que aparece em “Modo Turbo”, que as três cantam juntas: “Foguete do tipo NASA saindo da atmosfera / Tem turbina nessa raba e agora ninguém me pega (vai!)”

Não é correto chamar essa nova cultura sertaneja de bolsonarista, porque Bolsonaro vai passar, mas os rodeios, as feiras agrícolas e os sucessos musicais que os animam, não. A convivência entre o Brasil dos brutos — ou dos “bruto” — e dos modernos é, portanto, uma questão de longo prazo. Nas paradas musicais, as baladas e as aventuras e desventuras da vida amorosa criam um espaço ecumênico, onde Anitta e Gusttavo Lima podem cantar juntos, como já fizeram algumas vezes. A questão é se um espaço semelhante vai surgir na política.

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