Nelson Jr./SCO/STFA estátua da Justiça, no STF: da prudência nos sobrou o seu antônimo

É razoável ter medo do STF?

Proteger a democracia é necessário e a corte tem um papel central nessa tarefa. Mas é preciso agir com o máximo cuidado, para que os danos não sejam tão grandes quanto aqueles que se desejava evitar. As reações do STF nem sempre são proporcionais e muitas vezes causam perplexidade
09.06.22

Em 2017, a Corte Constitucional da Alemanha, equivalente ao Supremo Tribunal Federal no Brasil, reuniu-se para decidir se o Partido Nacional-Democrático (NPD) deveria ser banido por defender políticas neonazistas. No final do julgamento, a resposta foi negativa: a legenda poderia continuar suas atividades. Há aspectos importantes nessa história. Primeiro, o fato de a Alemanha ser o berço da “democracia militante”, a doutrina segundo a qual um país democrático deve ter ferramentas legais para se defender daqueles que, internamente, desejam enfraquecer ou derrubar as próprias instituições democráticas. Nas décadas que se sucederam à II Guerra Mundial, dezenas de organizações extremistas de esquerda e direita foram dissolvidas pela Justiça alemã com base nesse conceito. Mas, ao analisar o caso do NPD – considerado o herdeiro direto das ideias de Adolf Hitler – a Corte Constitucional fez uma pergunta básica: qual o nível de ameaça que a legenda, de fato, representa? Os juízes concluíram que o NPD era irrelevante demais para precisar ser banido. Nas palavras de Andreas Vosskuhle, presidente do tribunal, “o NPD persegue objetivos contrários à Constituição, mas, no momento, o peso das evidências é insuficiente para fazer parecer possível que suas ações tenham sucesso”. Esse exemplo de contenção merece ser ponderado cuidadosamente no Brasil, num momento em que o STF tem posto em prática as ferramentas da democracia militante com frequência e contra os mais diferentes tipos de ator. A régua do “nível de ameaça” usada na Alemanha não está visível em decisões do tribunal brasileiro. Com isso, o exercício de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, fica sujeito à dúvida e ao medo. Ao mesmo tempo, os radicais se sentem incentivados a investir ainda mais contra a democracia, usando do argumento de que o tribunal, sim, a estaria solapando. É a pior combinação possível.

“A ideia de que os Três Poderes devem ser harmônicos é uma idealização da nossa Constituição”, diz o jurista Joaquim Falcão. “Em todo lugar, os Poderes são tensos entre si.” É evidente, no entanto, que o Brasil não passa por tempos normais. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro disse que não engole mais o preceito institucional de que decisão do Judiciário precisa ser cumprida. Ele afirmou que não pretende acatar uma sentença do STF que amplie o marco temporal da demarcação de terras indígenas. É o enésimo capítulo na guerra contra o tribunal que ele iniciou já no primeiro ano de seu mandato. Bolsonaro também prometeu um “novo 7 de Setembro”, em referência às manifestações que, no ano passado, o levaram à beira de uma ruptura com a ordem constitucional, pelo menos no discurso. Deputados e outras personalidades do bolsonarismo organizam novas passeatas para o dia 31 de julho, a princípio em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Nenhum deles esconde que o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são os principais alvos, por supostamente praticarem aquilo que a deputada federal Carla Zambelli chamou de “perseguição aos conservadores”. Dois políticos serão tratados como mártires nas passeatas: o deputado federal Daniel Silveira, condenado a 8 anos e 9 meses de prisão por pregações antidemocráticas e ameaças ao STF e seus ministros, e em seguida perdoado da pena por Jair Bolsonaro; e o deputado estadual paranaense Fernando Francischini, cuja cassação por ataques contra o sistema eleitoral, no dia da votação de 2018, foi confirmada nesta semana também pelo STF, depois de ser decretada pelo TSE.

“O poder de Bolsonaro é de pautar todo mundo. Ele tem conseguido até mesmo transformar em ação judicial do STF a sua política de comunicação”, afirma Joaquim Falcão. A reação do STF aos movimentos do bolsonarismo contra a sua legitimidade foi o inquérito das fake news. Ele foi instaurado em 2019, por ordem do então presidente da corte, o ministro Dias Toffoli. Toffoli também escolheu a dedo o relator do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes, que conta com uma equipe de policiais federais para reunir provas. Embora a decisão de Toffoli tenha sido depois ratificada pelo plenário da corte e pela PGR, a ideia de uma instituição que é vítima, investigadora e julgadora, tudo ao mesmo tempo, é de uma estranheza insuperável. Estranheza ampliada pelo fato de que as diligências já duram três anos, sem data para acabar, e de que os autos são mantidos na maior parte em segredo, inclusive para os investigados.

Marco Aurélio Mello, ministro do STF recentemente aposentado, foi o único que não chancelou o inquérito quando o tema foi analisado. Ele diz que hoje, “como cidadão comum”, sente mais desconforto ainda. “O inquérito começou mal, instaurado pela vítima. O segredo e a duração criam medo e instabilidade. Além disso, está cabendo tudo nessa investigação. Medidas restritivas estão sendo decretadas inclusive contra quem não tem prerrogativa de ser julgado pelo STF. O que nasce errado não tem como acabar certo, essa é a minha preocupação”, disse Marco Aurélio Mello a Crusoé.

Divulgação/PCODivulgação/PCOProtesto do Partido da Causa Operária (PCO): aliança com o bolsonarismo
No dia 2 de junho, o inquérito das fake news se voltou contra quem é, teoricamente, antípoda ideológico do bolsonarismo. Alexandre de Moraes mandou que as redes sociais do ultraesquerdista Partido da Causa Operária (PCO) fossem tiradas do ar por causa de uma mensagem que propunha o fechamento do STF. Derrubar as redes sociais de um partido significa privá-lo de um canal para veicular todo e qualquer tipo de mensagem, das políticas às, digamos, que celebram efemérides, como a data da morte de Jose Stálin. É o tipo de medida que causa calafrios em quem acredita que a liberdade de expressão deve ser praticamente ilimitada, como nos Estados Unidos. Mas quem é partidário da democracia militante à moda dos alemães (e também dos franceses, belgas, austríacos e dinamarqueses, entre outros europeus) também tem motivos para erguer as antenas. O PCO é um partido de ideias comunistas radicais, que desmontaria a ordem constitucional brasileira pedra por pedra, se um dia chegasse ao poder. Isso é sabido. Sempre foi assim. De repente, no entanto, a presunção de que esse discurso extremista poderia ser tolerado, por seu baixo nível de ameaça, foi deixada de lado. Fica, além disso, a impressão ruim de que a medida foi tomada para sugerir imparcialidade: pau que bate em Chico, à direta, também bate em Francisco, à esquerda. O resultado é que hoje PCO e Bolsonaro se defendem mutuamente, numa aliança bizarra, enquanto outros se perguntam qual será o próximo “radicalismo” a ser calado. Cabe lembrar que um homem bêbado que gritava idiotices contra Alexandre de Moraes em um clube de São Paulo já foi levado para a delegacia pelos seguranças do ministro.

A liberdade de imprensa merece um capítulo próprio. E não faz sentido fingir que Crusoé não tem motivos para se preocupar especialmente com o tema. A revista teve uma reportagem sobre o ministro Dias Toffoli censurada pouco depois da abertura do inquérito das fake news. A medida foi rapidamente revertida, uma vez que a reportagem se baseava em documentos oficiais e nada tinha a ver com notícias falsas, objeto do inquérito. Ainda assim, Crusoé permanece nele, mesmo depois de o STF ter decidido que veículos de imprensa não deveriam ser alvo de uma investigação desse tipo. Como os autos estão em segredo de justiça, é impossível saber por que isso acontece. Uma situação kafkiana.

O confronto com o bolsonarismo levou o STF a nutrir ideias equivocadas sobre sua missão institucional – e a exagerar nas medidas de autodefesa. Em 2020, durante um debate online, o ministro Dias Toffoli disse que o tribunal atuava como “editor de uma nação inteira” no inquérito das fake news. “Todo órgão de imprensa tem censura interna”, disse ele. “Em que sentido? O seu acionista ou o seu editor, se ele verifica ali uma matéria que ele acha que não deve ir ao ar porque ela não é correta, ela não está devidamente checada, ele diz: ‘Não vai ao ar’ (…) “Nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”. A pretensão de um dos poderes do Estado de funcionar como censor geral da nação não combina nem com o modelo americano, nem com o europeu, nem com qualquer outro modelo moderno de liberdade de expressão. Ele pertence a um mundo anterior à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793.

Embora nada tenha a ver com o inquérito das fake news, outro caso que ganhou repercussão há poucas semanas mostra o momento em que a autodefesa começa a se confundir com a intimidação. Um acórdão do STJ, ratificado pelo Supremo, submeteu o jornalista Rubem Valente, veterano de reportagens investigativas, a pagar uma indenização de R$ 310 mil ao ministro Gilmar Mendes. Na origem do processo está o livro “Operação Banqueiro”, que só lateralmente fala do integrante do STF. Gilmar Mendes se sentiu ofendido pelo texto e entrou com um processo contra o autor – o que é seu direito. O valor da indenização, no entanto, fugiu ao padrão adotado em causas semelhantes pelo próprio STF, como observou em editorial o jornal Folha de S. Paulo, onde Valente trabalhou. “Em outros casos envolvendo indenização por danos morais e materiais, a corte tem aplicado a chamada ‘cláusula de modicidade – que prevê montantes proporcionais ao dano sofrido. Tratando-se de material jornalístico, deve-se considerar também que ‘todo agente público está sob permanente vigília da cidadania’, como o STF entendeu ao julgar a Lei de Imprensa, em 2009″, registrou a Folha. O jornalista só não foi à bancarrota porque conseguiu reunir o valor da indenização com doações. Outra medida imposta pelo Supremo foi a obrigação de publicar todo o longo texto da condenação em futuras edições do livro – o que simplesmente as inviabiliza. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) considerou o caso grave e decidiu levá-lo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “É um precedente perigoso, que impõe um dever de indenização muito grave para o exercício da liberdade de imprensa, sobretudo quando não se verifica nenhum abuso por parte do profissional”, diz a presidente da Abraji, Natalia Mazotte.

Tanto Jair Bolsonaro quanto Lula, os dois candidatos que lideram a corrida pela Presidência, têm feito declarações hostis à imprensa. Lula insiste no discurso decrépito da regulamentação dos meios de comunicação, enquanto Bolsonaro disse nesta semana que empresas jornalísticas com décadas de atividade, como a Globo e a Folha de S.Paulo, deveriam ser fechadas. Nesse cenário acidentado, tampouco a Justiça vem funcionando como um anteparo firme contra a censura. O Brasil aparece na posição 110, entre 180 nações, na edição mais recente do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa, que a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publica todos os anos. Segundo Emmanuel Colombié, diretor do escritório da RSF para a América Latina, as leis brasileiras são boas, mas sua interpretação pelo Judiciário, nem sempre. “A judicialização da censura é, sim, um problema brasileiro”, diz ele. “Na atualidade, observamos que parte das limitações ao exercício da atividade jornalística no Brasil decorre de decisões judiciais equivocadas e, algumas vezes, censórias. Essa realidade não é exclusiva do país, mas, em razão do momento político conturbado, o Judiciário brasileiro precisa estar atento e ser cuidadoso com a imprensa, estimulando-a, jamais a inibindo ou permitindo que ela seja criminalizada.”

É de se perguntar se esse padrão de reação exacerbada não está presente até mesmo nos casos em que, sem dúvida, um crime foi cometido. Daniel Silveira, por exemplo, claramente ameaçou Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes com violência. No contexto de mobilização permanente do bolsonarismo, suas ameaças de destituir os ministros e fechar o STF não podem ser vistas como meras bravatas. Mas a pena de quase nove anos para declarações que não representavam um risco imediato a ninguém acabou parecendo desproporcional – e foi uma das razões mencionadas por Jair Bolsonaro ao indultar o seu apoiador.

Também a cassação de Francischini não é unânime entre os especialistas. Nada tem de desprezível o argumento de que a punição por uso das redes sociais para pôr em risco as eleições representa uma novidade no Direito Eleitoral e, por isso, só deveria ser aplicada a partir deste ano, e não a um caso de 2018. Mesmo sem interromper o mandato do deputado estadual paranaense a poucos meses do seu término, o TSE e o STF poderiam ter dado o recado de que comportamentos semelhantes não serão aceitos em 2022. A escolha da alternativa mais dura possibilita que se veja em Francischini um bode expiatório.

O fato de que a democracia pode ser corroída por dentro hoje é pouco contestado. A frase de Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler, sobre a ascensão dos nazistas ao poder, teve muitas oportunidades de ser repetida nas últimas décadas: “Será sempre uma das melhores piadas da democracia, o fato que ela deu aos seus inimigos mortais os meios para destruí-la.” Por causa disso, a doutrina da democracia militante também ganhou nova força. Ela foi desenhada, em 1937, pelo cientista político alemão Karl Loewenstein. Ele percebeu, antes mesmo do início da II Guerra, como era sinistra a “piada” que atingia o seu país. As cortes constitucionais sempre foram vistas como as responsáveis por cavar a trincheira contra os autoritários. A história comprovou essa tese. “Na Europa ou na América Latina, cortes que se abstiveram de montar resistência foram, mais tarde, sufocadas pelos movimentos antidemocráticos, que substituíram os juízes por gente fiel ao regime”, disse o professor de Direito da FGV Oscar Vilhena Vieira a Crusoé.

A ideia de restringir direitos políticos para proteger uma sociedade aberta, no entanto, só pode ser posta em prática com o máximo cuidado, para que os danos não sejam tão grandes quanto aqueles que se desejava evitar. Como diz o americano Alexander Kirshner, um dos principais teóricos do assunto na atualidade, “os esforços dos democratas para proteger o regime devem levar em conta os danos que podem resultar da ação defensiva. Esse é o princípio da responsabilidade democrática. Ações podem ficar aquém do necessário para proteger a democracia, mas também podem ir longe demais. Por consequência, práticas defensivas devem ser usadas tanto quanto necessário, mas também tão raramente quanto possível.”

Crusoé procurou ouvir presidente do STF, Luiz Fux, para esta reportagem, mas foi informada que ele não está concedendo entrevistas neste momento. O fato é que, no caso brasileiro, a ação do tribunal tem causado perplexidade. No lugar da previsibilidade, da proporcionalidade e do absoluto apego às soluções jurídicas ortodoxas, surgem o inquérito das fake news, secreto e interminável; as punições sem método claro de dosagem, que não fazem diferença entre os riscos hipotéticos e as ameaças concretas envolvidas em cada situação; e até mesmo as decisões que parecem mais preocupadas com a defesa corporativista dos próprios ministros, do que com a reafirmação de princípios democráticos. Tudo isso é muito ruim. Em um momento conturbado da história brasileira, a Justiça precisa ser parte da solução, não do problema.

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