ReproduçãoConvenção chilena: "Às vezes uma Constituição descuidada pode solapar o regime democrático"

Melhor não mexer na Constituição

Esboço de nova Carta do Chile suscita o perigo de uma ditadura socialista e serve de alerta aos brasileiros
09.06.22

A Convenção Constitucional do Chile tem até o próximo dia 4 de julho para concluir a fase de harmonização das diversas leis aprovadas ao longo das últimas semanas. Em menos de um mês, será preciso fazer ajustes para evitar que os 499 artigos que integram o esboço do texto entrem em contradição uns com os outros. Apesar da vontade de produzir um texto democrático para substituir o atual, feito durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), a leitura desse rascunho suscita a preocupação de que sua aplicação poderia colocar em risco a democracia chilena. Até que os chilenos votem em referendo a ser realizado em setembro se aprovam ou não o novo texto, a lição que deve ficar para os brasileiros é que o risco não compensa. Uma Constituição não pode ser substituída ao bel prazer dos representantes políticos.

Antes de entrar em uma análise sobre o esboço dos chilenos, é importante lembrar que intentos de mudar a Constituição volta em meia surgem em todos os países, inclusive no Brasil. Há pouco tempo, em 2018, essa possibilidade foi aventada tanto pelo atual vice-presidente Hamilton Mourão, como pelo petista Fernando Haddad, que disputou a eleição com Jair Bolsonaro.

Soa estranho, a meu ver, que alguns brasileiros queiram trocar a Constituição sem que tenha ocorrido uma ruptura da ordem social. No contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 foi promulgada após o fim do regime militar, que vinha desde 1964. O texto substituiu a Constituição de 1967, que por sua vez tirou de circulação a de 1946, que regeu o período democrático anterior. Fora essa hipótese de ruptura, não se pode cogitar levianamente a possibilidade de se fazer outra Constituição.

No Chile, o texto atual vem dos tempos de Pinochet, tendo sido aprovado por plebiscito, em 1980. Há lógica, portanto, em pedir um texto para o novo momento democrático. Mas esse período não começou ontem. A fase democrática atual já tem 32 anos, nos quais foram realizadas diversas alterações na Constituição. O argumento de que houve uma mudança do regime, portanto, perde sua força.

Além disso, às vezes uma Constituição descuidada pode solapar o regime democrático, como ocorreu na Venezuela, em 1999. A Carta atual abriu caminho para o regime ditatorial de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, governantes que fragilizaram aquele país, reduzindo-o a uma situação calamitosa.

Atentemos, agora, para os riscos embutidos no esboço da Constituição chilena. Seu objetivo parece ser o de transformar o Chile em um “Estado social”, por excelência. Salta aos olhos a imperiosa necessidade de participação efetiva das minorias, como mulheres, indígenas (principalmente) e pessoas de diversos gêneros, nos órgãos que compõem a estrutura organizacional daquele Estado. Além de terem seus direitos fundamentais preservados, esses grupos teriam, também, participação nas Forças Armadas e no sistema eleitoral, além de poderem criar e derrogar parcial ou totalmente as leis e participarem ativamente de audiências públicas. O texto também propõe a realização de plebiscitos e referendos, com o objetivo de ampliar ainda mais a participação popular.

O pano de fundo da futura Constituição chilena remete, inquestionavelmente, ao conceito socialista de “igualdade substantiva”, do filósofo húngaro István Mészáros, quando trata do eterno debate entre os princípios de liberdade e igualdade. Para ele, a igualdade substantiva resulta da colaboração de vários cidadãos que se associam livremente para realizar uma transformação social. É uma ideia diferente da de democracia liberal, presente em todas as Constituições, que prevê a igualdade de todos perante a lei. No mundo de Mészáros, retomado pelos constituintes chilenos, o que vale são os cidadãos organizados. Só com eles se pode alcançar uma verdadeira igualdade social.

Outro conceito presente é o de que os direitos de todos só podem ser efetivados por meio do Estado, pois só o poder estatal teria capacidade de minimizar ou eliminar interesses privados. Isso pode provocar um efeito colateral irreversível. Em primeiro lugar, porque a Constituição deveria representar um valioso instrumento de limitação desse poder. Além disso, há a possibilidade de que o governo assuma o controle desses grupos organizados, como ocorreu em diversos regimes socialistas. Com apoio de cima, eles ficariam encarregados de mudar a realidade.

A aplicação desses conceitos, em conjunto com uma intervenção muito maior do Estado para proteger os vulneráveis dos fortes, poderia terminar por mitigar a democracia, ao criar uma situação em que os direitos dos demais, aqueles que não estão organizados, seriam desrespeitados.

A Constituição, sob essa perspectiva, não é vista como algo de natureza essencialmente jurídica, cujas normas disciplinam uma sociedade, mas como uma força política representada por grupos de poder que conduzem as mudanças de acordo com os seus interesses e necessidades.

Há que se constatar ainda no rascunho da Constituição chilena o caráter subjetivo, vago e aberto de muitos de seus dispositivos, os quais facilitariam múltiplas interpretações no julgamento de casos concretos, podendo levar a uma situação em que um Estado poderoso decidiria de forma injusta e parcial, a depender das circunstâncias e das pessoas envolvidas.

Um dos termos amplos e polêmicos é o de “integridade afetiva”. O esboço afirma que toda pessoa tem direito à integridade física, psicossocial, sexual e afetiva. Mas o reconhecimento do que seria isso depende de uma definição do Estado e não de um conceito compartilhado entre todos os cidadãos. Como isso poderia ser regulado? Ou, mais preocupante, haveria o risco de um controle político afetivo dos cidadãos?

Fala-se ainda em “dissidências sexogenéricas”, em que se supõe que os gêneros homens e mulheres estariam em oposição às demais identidades de gênero e essas teriam que ser protegidas pelo Estado. O termo “dissidência” é propositadamente utilizado, pois simboliza, do ponto de vista político, uma discordância da “política oficial” ou do poder durante os governos autoritários e totalitários.

Se o leitor ficou espantado com esses termos, sem entender o que de fato eles definem, saiba que não é o único. O que mais me preocupa é que os conceitos aparentemente ingênuos e imprecisos acabem dificultando a ação dos demais poderes que têm a função de fiscalizar o Poder Executivo. Nesse caso, a aprovação de uma nova Constituição poderia ser um perigoso instrumento para a ascensão de uma ditadura de esquerda, em moldes parecidos ao da antiga ditadura de direita, de Augusto Pinochet. Se o Chile cometer esse erro, as consequências serão desastrosas do ponto de vista social, político e econômico.

Vera Chemin é advogada constitucionalista.

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