O quintal da China
Políticos americanos do Partido Democrata sempre tiveram inclinação por mesclar política externa com valores democráticos, como direitos humanos e eleições livres. Em 1994, logo após o fim da Guerra Fria, o então presidente americano Bill Clinton convidou chefes de governo das Américas para um evento em Miami, a primeira Cúpula das Américas. Os 34 que compareceram assumiram compromissos com os valores democráticos. Pouco depois, em 2001, os participantes da Cúpula adotaram a Carta Democrática Interamericana, afirmando que o regime que garante as liberdades deve ser o de todos os estados da região. Na 9ª Cúpula das Américas, que termina em Los Angeles nesta sexta, 10, o também democrata Joe Biden tentou articular sua política externa em torno dos mesmos princípios. Mas ele falou para poucos — uma repetição do passado já não é mais possível.
Nas mais de duas décadas que separam o primeiro encontro do de agora, uma reviravolta geopolítica alterou profundamente o vínculo entre os Estados Unidos e os demais países do continente. Na economia ou na política, não se pode mais falar em quintal dos EUA. A menor dependência econômica em relação aos americanos, com a entrada pesada da China, faz com que os governantes atuais sejam menos receptivos às declarações democráticas dos ocupantes da Casa Branca. “O comércio com a China e os seus investimentos na região fizeram com que o apelo em demostrar alinhamento com Washington diminuísse bastante. Ao mesmo tempo, o custo político de se colocar contra os Estados Unidos também caiu”, diz Evan Ellis, professor de América Latina no Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército americano, em Washington.
Enquanto os Estados Unidos buscam fazer negócios com países que apoiam a democracia e respeitam os direitos humanos, a China faz comércio com qualquer um, sem se importar com o regime em questão. O Partido Comunista em Pequim só se incomoda quando seus parceiros descumprem os acertos com as suas estatais ou tocam em temas sensíveis para o regime chinês, como os campos de concentração dos uigures na província de Xinjiang, a repressão em Hong Kong ou a soberania de Taiwan. Se essas questões não aparecem na pauta, não há qualquer impedimento.
O outro lado desse fenômeno é o declínio da fé na democracia e do alinhamento com os Estados Unidos. O fato de Joe Biden ser aprovado por apenas 41% dos americanos também não ajuda. Qualquer presidente latino-americano hoje, de esquerda ou de direita, sente-se à vontade para afrontar a Casa Branca. O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o da Bolívia, Luis Arce Catacora, e a de Honduras, Xiomara Castro, recusaram-se a participar da Cúpula, dizendo que só compareceriam a ela se as ditaduras de Venezuela, Cuba e Nicarágua fossem integradas ao encontro. A lista de convidados, contudo, é de responsabilidade do país anfitrião — no caso, os Estados Unidos.
Além deles, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, também preferiu não ir, por ter ficado ofendido com as críticas do governo americano ao seu autoritarismo. O da Guatemala, Alejandro Giammattei, não gostou de ser acusado de minar investigações de corrupção.
Para todos, contestar as posições americanas nos fóruns internacionais não causa qualquer estorvo. Brasil, Cuba, El Salvador, México, Nicarágua, Suriname e Trinidad Tobago não condenaram a Rússia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, após a invasão da Ucrânia. Na Organização dos Estados Americanos, OEA, que organiza a Cúpula das Américas, Brasil, Bolívia El Salvador, Honduras, São Vicente e Granadinas e Nicarágua se esquivaram de assinar uma resolução condenando a intervenção militar russa no país vizinho.
O brasileiro ainda faltou na abertura da Cúpula, na noite de quarta-feira, 8, em claro recado ao presidente americano. Antes do encontro bilateral com Biden, afirmou que há disposição para estreitar laços. “Vivemos há quase duzentos anos em parceria. Em alguns momentos, nos afastamos por questão ideológica. Mas tenho certeza que, com nossa chegada ao governo, nunca tivemos uma oportunidade tão grande pelas afinidades que nosso governo tem“, disse Bolsonaro.
O petista Lula, pré-candidato à presidência, também fustiga os Estados Unidos sem cerimônia, a ponto de condenar o apoio americano à Ucrânia. “Não é possível que eu veja na televisão o presidente Biden, que nunca fez um discurso para dar um dólar para quem está morrendo de fome na África, anunciar 40 bilhões de dólares para ajudar a Ucrânia a comprar armas. Não é possível”, afirmou em um discurso em Porto Alegre.
É um panorama desalentador para os Estados Unidos, muito distante daquele de 1994. Se na primeira Cúpula não havia um presidente de uniforme verde-oliva e vários deles estavam ajudando a reerguer seus países após períodos de trevas, como a nicaraguense Violeta Chamorro e o chileno Eduardo Frei, hoje são poucos os que se importam com a democracia e condenam as ditaduras. A China, obviamente, não está preocupada com isso. Ela só quer manter o seu quintal satisfeito. Para sorrir, é preciso fazer sorrir.
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