MarioSabino

Ser do passado

09.06.22

A velhice tem início quando você começa a ser tempo passado (ou perdido) para gente mais jovem. Um exemplo cotidiano e bastante ilustrativo: você envia mensagens e elas não são lidas, ou são lidas horas mais tarde — e, quando respondidas, é de forma lacônica, protocolar, condescendente ou enfadada. A pessoa pode lançar mão também de emojis, o que a livra logo do velho e ela pode continuar online com gente mais interessante. Quando envelhece, você se torna tempo passado (ou perdido) até para os filhos crescidos.

Descobri, recentemente, que sou trotskista. Não porque me tornei adepto das ideias esquerdistas do revolucionário russo Leon Trótski — isso seria ser um velho ridículo –, mas porque encontrei no seu Diário no Exílio a formulação exata para uma constatação geral: “A velhice é a mais inesperada das coisas que acontecem a uma pessoa”. O aspecto mais previsível da vida é, paradoxalmente, o mais inesperado. Um belo dia nublado, você começa a ser tempo passado (ou perdido) para os outros e não sabe exatamente como a coisa se deu.

Há quem lute para adiar esse momento, como recomendou o poeta Dylan Thomas (que morreu antes dos 40 anos): “Não aceite docilmente essa bela noite; enfureça-se, enfureça-se contra o apagar das luzes”. A fúria poética tem contraponto lucrativo na indústria voltada para a resistência epidérmica, com resultados às vezes questionáveis, mas, de modo geral, satisfatório no seu aspecto enganador: o de podermos aparentar menos idade do que realmente temos.

O que é difícil de renovar é a alma velha que você se tornou. Uma alma que, ressabiada pelos anos derradeiros, tropeça nas próprias hesitaçōes e inseguranças e exaspera os mais jovens nos seus anos iniciais ou situados no meio do caminho das nossas vidas. Como um velho pode hesitar, se é justamente o maior sabedor da brevidade que lhe devora a existência? Que direito ele tem de ser inseguro? Não viveu o suficiente para adquirir logo a certeza sobre seguir um caminho que certamente lhe daria um vida melhor e a chance de deixar de ser tempo passado (ou perdido)? Uma vez alcançada, contudo, a certeza de um velho pode ser tardia demais.

Eu e as minhas divagações.

Não sou consumidor da indústria de cosméticos e procedimentos estéticos, mas me dizem com relativa frequência que, aos 60 anos, pareço mais jovem do que sou (a frequência está diminuindo). Quando tinha 46, tive de tirar um pedaço do intestino, depois de ser diagnosticado com diverticulite. Antes da cirurgia, o anestesista me tranquilizou, afirmando que eu aparentava ter dez anos menos. “Isso significa que, por dentro, você também é mais jovem”, disse ele. No ano passado, com 59, ao ser internado para fazer uma ablação, agora diagnosticado com arritmia cardíaca, ouvi observação semelhante de um dos médicos. A verdade, porém, é que me vi em mesas de operação por causa de doenças que são mais comuns e mortíferas em pacientes mais velhos do que eu. Aos que afirmam que pareço mais jovem, costumo responder que meus pais morreram quase sem rugas.

Há coisa de um mês, mais ou menos, fui tomar um sorvete na esquina da minha rua, acompanhado do meu filho de 16 anos. Na volta, ao cruzarmos um bar com mesas na calçada, ouvimos um elogio feminino dito em voz alta. Comentei com o meu filho: “Você faz sucesso, hein?” Ele riu: “Era para você, pai, eu vi. Você está bonitão com essa barba meio branca”. Extraí mais graça do que vaidade do episódio. O álcool evidentemente havia melhorado bastante a disposição da moça para barbas meio brancas. Mas entendo que haja velhos que se sintam revigorados por momentos como esse. Afinal de contas, a velhice é também “quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum”. A frase é do poeta Mário Quintana.

A velhice tem início quando você começa a ser tempo passado (ou perdido) para gente mais jovem. Estou passando (e me perdendo na perda do outro), e não há o que fazer. Insistir em se fazer presente parece patético. Nesta semana, um tuíte do perfil Mad Men Quotes, com frases da série americana, dizia: “Não desperdice a sua juventude com a velhice”. Muita gente jovem curtiu. Lembrei que o escritor Italo Svevo atribuiu à palavra senilidade um excesso no amor e, assim, sinto-me à vontade para enviar um emoji de coração a quem não mais se desperdiça comigo: ❤️

 

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