Reprodução/Itamaraty"No aspecto militar, a Rússia sempre trabalhou com o fato de ter superioridade demográfica"

Contra as mentiras, a sequência dos fatos

Historiador Francisco Doratioto diz que analisar os acontecimentos em ordem cronológica derruba as conspirações sobre as origens das guerras
16.06.22

O historiador Francisco Doratioto mudou a maneira como se entende a Guerra do Paraguai (1864-1870) ao lançar seu livro Maldita Guerra, há vinte anos. Com base em fontes brasileiras e paraguaias, ele derrubou diversos mitos, como o de que o imperialismo inglês é que teria começado o conflito ou o de que a economia paraguaia era um modelo de sucesso autônomo. Como ele bem mostra em sua extensa obra, o ditador Solano López manteve a sua população isolada na miséria e deflagrou o conflito, invadindo o Brasil e a Argentina. Cerca de 100 mil pessoas morreram. Quando soldados brasileiros finalmente o encontraram, não tiveram dificuldade em reconhecer o ditador: ele era o único gordo em meio a famélicos.

Atento aos acontecimentos na Ucrânia, Doratioto traça vários paralelos entre o conflito atual e o que aconteceu no final do século XIX. Ambas as guerras saíram de “um cérebro só“, que fazia pouco caso das vidas de seus soldados. Além disso, ao redor dos dois conflitos, surgiram teses para explicá-los a partir de eventos externos. No caso do Paraguai, o imperialismo britânico. Na guerra da Ucrânia, seria a narrativa do presidente da Rússia, Vladimir Putin, de que a expansão da Otan para o leste teria causado tudo. “Não há qualquer base factual, documental ou lógica para a acusação de Putin. Por outro lado, a análise historiográfica da política externa de Putin demonstra, sim, que ele tem um projeto expansionista“, diz Doratioto, que acaba de lançar uma segunda edição de Maldita Guerra, com 80 páginas adicionais. O autor conversou com Crusoé.

Putin esperava ganhar a guerra da Ucrânia em poucos dias. Como explicar que ele tenha errado tão feio nesse cálculo? 
Cálculos militares de regimes autoritários ou ditaduras costumam ser desastrosos. Há diversos exemplos disso na história. A decisão de atacar Pearl Harbor, tomada pelo primeiro-ministro japonês Tojo e pelo imperador Hiroíto, fez os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial. O nazista Adolf Hitler errou ao invadir a União Soviética. O ditador paraguaio Solano López pecou ao invadir a Argentina e o Brasil, iniciando a Guerra do Paraguai. Nesses casos, a decisão basicamente saiu de um cérebro só. É muito diferente do que acontece nos demais regimes políticos. Mesmo nos sistemas oligárquicos, pode-se falar que há um debate interno antes de se tomar uma decisão de grande envergadura. A imprensa e o Congresso debatem o tema e o governante tem de considerar a opinião pública, mesmo que seja de uma elite restrita. A possibilidade de cometer um erro drástico ainda existe, mas é menor. No Paraguai de Solano López não havia opiniões divergentes, inexistiam Parlamento e imprensa, não havia conselheiros e seus interlocutores mais próximos eram alguns familiares, todos muito cautelosos em não descontentá-lo. Ninguém ousava discordar dele, pois quem o fizesse seria punido com a prisão ou a morte. Putin, por sua vez, prendeu ou eliminou fisicamente opositores e jornalistas independentes. O chefe do serviço de inteligência russo foi constrangido por Putin em transmissão televisiva, ao titubear em ratificar a análise que o governante fez no início da invasão. Em uma ditadura, não há discussão real sobre os prós e os contras de uma iniciativa do governante, mas sim o reforço dela. Tudo isso limitou a visão e os cálculos de Putin.

Isso teve consequências negativas no campo de batalha? 
Não há dúvida. É difícil explicar a lógica daquela coluna de tanques russos, de 65 quilômetros, na direção de Kiev. Mesmo uma pessoa sem conhecimento militar, um neófito, constataria que enviar blindados em fila, em uma estrada estreita, com vegetação ou construções nos dois lados, era fornecer alvos fáceis ao exército ucraniano. Por que ninguém avisou Putin disso? Esse alerta provavelmente não ocorreu porque contrastaria com a análise do governo russo, de que suas forças seriam recebidas como um Exército libertador e o presidente ucraniano seria derrubado por seus próprios militares. Essa falha provavelmente ocorreu porque os serviços diplomático e de informação fizeram chegar a ele só o que ele queria ouvir ou, então, eles se abstiveram de apresentar objeções ao plano de invasão. Além disso, pelo menos no início da guerra, os comandantes russos podem ter seguido adiante com operações demasiadamente arriscadas ou inviáveis, com medo de serem punidos se não o fizessem. Na Guerra do Paraguai, a batalha naval mais importante foi a do Riachuelo, em 1865, que impediu o acesso dos paraguaios ao Atlântico pelo Rio Paraná. O Brasil a venceu porque o comandante paraguaio não ousou abandonar o plano original de Solano López, que era o de atacar a esquadra brasileira, fundeada no rio Paraná, na altura do Riachuelo, pouco antes do nascer do sol. Neste momento, as caldeiras dos navios brasileiros ainda estariam sendo acesas, impedindo que as embarcações reagissem. Era um bom plano. Contudo, durante a navegação rio abaixo, um dos barcos da flotilha paraguaia quebrou a hélice, o que atrasou o ataque. Perdeu-se, assim, o fator surpresa. O mais sensato seria o comandante dessa flotilha abortar a operação. No entanto, as ordens de Solano López não eram questionadas e adaptadas. Seguir adiante foi uma decisão militar errada, mas nas ditaduras um comandante no campo de operações evita tomar iniciativas para além das ordens recebidas.

Arquivo pessoalArquivo pessoal“Cálculos militares de regimes autoritários ou ditaduras costumam ser desastrosos”
Seu livro Maldita Guerra derrubou a interpretação de que a Guerra do Paraguai foi causada pelo imperialismo inglês. Como o sr. vê o discurso de Putin de tentar colocar a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, como o fator que desencadeou a guerra na Ucrânia?
Vê-se com alguma frequência surgirem teorias conspiratórias ou análises conscientemente falsas para explicar guerras e outros eventos históricos. Para desnudá-las, deve-se obedecer à sequência cronológica dos fatos e analisar a lógica e os interesses envolvidos. No caso da Guerra do Paraguai, nas últimas décadas do século XX afirmou-se que o Brasil teria iniciado o conflito, estimulado pelo imperialismo britânico. Os ingleses teriam ficado incomodados com um bem-sucedido modelo de desenvolvimento autônomo implementado pelo ditador Solano López e por seus antecessores. No meu livro, demonstrei que esse modelo nunca existiu e que Solano López tinha relações econômicas com o Reino Unido. Não havia lógica para o imperialismo inglês voltar-se contra o Paraguai. Ademais, foi Solano López quem atacou o Brasil e, depois, a Argentina. Não dá para dizer que a Grã-Bretanha ou o Brasil começaram a guerra. Putin quer responsabilizar a Otan, mas é necessário lembrar que, em 1994, a Ucrânia costurou um acordo com os Estados Unidos, com o Reino Unido e com a Rússia, pelo qual os ucranianos abriram mão do seu arsenal militar, o terceiro maior do mundo. Em troca, americanos e russos garantiram a soberania, a integridade e a independência da Ucrânia. No entanto, em 2014, Putin rasgou esse acordo diplomático, invadiu a península ucraniana da Crimeia e incentivou o separatismo do leste ucraniano. Foi isso o que aconteceu. A reação da Ucrânia em seguida foi buscar apoio nos países que poderiam fazer algum contraponto ao agressor, a Rússia. Não se pode saber se a Ucrânia entraria na Otan, mas um estreitamento de relações com essa aliança seria claramente de se esperar, pois a Rússia invadiu o país vizinho, descumprindo o tratado que tinha assinado, e poderia voltar a atacar, como ocorreu agora. Não há qualquer base factual, documental ou lógica para a acusação de Putin. Por outro lado, a análise historiográfica da política externa de Putin demonstra, sim, que ele tem um projeto expansionista. 

Por que muitas pessoas acreditam nas mentiras de Putin?
Estamos vivendo um período de muita insegurança, com populistas de esquerda e de direita ameaçando a democracia, bem como outras conquistas civilizacionais. A economia mundial também está passando por incertezas e, neste momento, com más perspectivas. Parte das pessoas, angustiadas com a situação, tendem a acreditar em um político com personalidade forte. Um “dono da verdade”, com “mão forte”, capaz de resolver os problemas cotidianos é uma figura sedutora para muitos setores. Vimos isso com o nazismo, quando Adolf Hitler se apresentou para os alemães extenuados com a hiperinflação e humilhados pelas perdas impostas pelo Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra. Aparentemente, boa parte da população russa apoia Putin.

Mas esse apelo do Putin também ocorre fora da Rússia, não? Muitos brasileiros parecem acreditar nas coisas que ele fala.
Tenho dúvidas de que são muitos. Aqui, isso ocorre por diversas razões, como o antiamericanismo e o antiliberalismo, que existe tanto na extrema-esquerda como na extrema-direita. Em 1941, o filósofo e psicanalista alemão Erich Fromm publicou nos Estados Unidos o livro O medo à Liberdade. Nele, Fromm argumenta que desde que nascemos temos várias pessoas — pais, parentes, professores, religiosos etc. — dizendo o que podemos fazer ou não. Essas pessoas dão as respostas para nossos problemas até que nos tornamos adultos e temos de tomar nossas próprias decisões. Em condições normais, a partir daí nossas ações estão balizadas pelo que aprendemos, pelas instituições, pela cultura, pela vida civilizada. Mas, em momentos de crise profunda, perdemos esses referenciais e temos medo de exercer a liberdade. Não sabemos o que fazer com ela para solucionar nossos problemas. Não há como trabalhar, porque não há emprego. O dinheiro ganho some com a hiperinflação. Há miséria, e a vida parece não fazer sentido. As pessoas querem, então, alguém que diga o que elas devem fazer e dê esperança. É aí que surge a figura do populista ou do ditador dizendo: abra a mão da sua liberdade para mim que eu resolvo para você. 

PRPR“Nas ditaduras, um comandante no campo de operações evita tomar iniciativas”
Os militares russos estão escondendo os corpos dos soldados mortos na Ucrânia. O que isso significa?
Se isso for verdade, logo mães russas estarão protestando, pedindo notícias de seus filhos combatentes. Na Argentina, a ditadura não conseguiu impedir que, em 1977, as mães que tiveram filhos assassinados pela repressão política protestassem na Praça de Maio. Na Rússia seria diferente? No aspecto militar, a Rússia sempre trabalhou com o fato de ter superioridade demográfica sobre seus inimigos e suas ações nos campos de batalha. Nunca se preocupou muito em poupar a vida dos soldados. É uma característica que vem da época czarista, quando o Exército russo era composto basicamente por camponeses, considerados pela nobreza quase como animais. Os oficiais geralmente não eram formados em academias militares, mas ocupavam seus postos apenas por sua condição social e tinham horror dos agricultores. Na Primeira Guerra, esse descaso com as vidas dos soldados foi um dos motivos do levante contra o czar, que culminou na Revolução Russa. Quando os nazistas invadiram a União Soviética, o ditador Josef Stálin jogou multidões em cima do inimigo. Foi assim que ele reverteu a guerra. O custo em vidas foi enorme, tanto que a União Soviética foi o país que mais mortes teve na Segunda Guerra. 

Se o descaso pelas vidas é uma cultura bem enraizada, por que esconder as baixas na Ucrânia?
A diferença neste momento é que a Rússia é a agressora. Stálin defendeu seu país de um ataque. O enorme sacrifício humano, portanto, pôde ser justificado de alguma maneira. A invasão da Ucrânia, contudo, é uma guerra por opção. As perdas de vida dos soldados russos são de responsabilidade de Moscou. A responsabilidade histórica é dos governantes russos.

As Forças Armadas russas ampliaram o uso da tecnologia para poupar vidas humanas?
Enquanto os países do Ocidente desenvolveram tecnologia militar para proteger os soldados, isso não aconteceu com a Rússia. Os tanques usados na guerra têm tecnologia da década de 1970. Os homens ficam no mesmo compartimento das munições. Quando um míssil atinge o tanque, a munição explode e incinera os soldados. O tanque, que custa milhões de dólares, vira uma garrafa de champanhe, que estoura para cima e libera a rolha. E tudo isso pode ser provocado por um míssil antitanque que custa 40 mil dólares.

Que lições essa guerra deve deixar?
A primeira é que tratados diplomáticos, como o feito entre a Ucrânia e a Rússia, em 1994, podem ser desrespeitados. Portanto, um país deve exercer uma eficiente presença internacional, com diplomatas bem preparados e motivados. A segunda lição é sobre a necessidade de ter Forças Armadas organizadas e bem preparadas para combate, com poder dissuasivo. Mesmo que não se tenha como vencer o oponente, é preciso ter capacidade de impedir sua vitória. É o que a Ucrânia está fazendo agora, desgastando o inimigo. Como regra geral, nenhum país inicia uma guerra sabendo que ela será longa e desgastante.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO