MarioSabino

Ulisses sem Ítaca

16.06.22

Ulisses sem vitória em Troia e sem o abraço de Penélope em Ítaca, eu vagava por esta Paris que arde sob um sol tropical, entre tempestades emocionais. Muita coisa acontecendo e desacontecendo, às vésperas de uma viagem à Grécia, a convite de um amigo que nunca me julgou pela posição que ocupava ou deixei de ocupar. O Diogo irá também. Cento e oitenta anos no total, como diz o nosso amigo. Ulisses sem vitória em Troia e o abraço de Penélope em Ítaca finalmente conhecerá Hélade. Tristemente conhecerá Hélade.

Vago por Paris, não flano por Paris. Flanar é andar despreocupadamente, ociosamente. É errar por aí acertando o destino incerto. Vagar é perambular ocupado com pensamentos intranquilos, a angústia como motor. É errar por aí porque se errou acolá, já convencido de que o destino certo é a falta, o desamparo, o esquecimento.

Nesse vagar, encontrei o meu Tirésias na livraria L’Écume des Pages, no Boulevard Saint-Germain. Gosto do nome, que pode ser tanto “a espuma das páginas” como “a escória das páginas”. Abrange opostos estados de ânimo e o espírito da literatura, que tanto pode atingir o sublime como descer ao abjeto. Como quem procura algum abrigo, adentrei a livraria.

Passei mais uma vez pelo último romance de Michel Houellebecq, Anéantir, sem energia suficiente para atravessar tantas páginas sem ser aniquilado. Parei em L’Amant, de Marguerite Duras, lido em português lá se vão quase 40 anos. Amante: palavra literária que assombra quando pronunciada. Examinei um exemplar de L’Instant Précis où Monet entre dans L’Atelier (O Instante Exato em que Monet entra no Ateliê), de Jean-Philippe Toussaint. Um épico de 32 páginas. Explica o autor: “Por meio de uma só imagem, obsedante, lancinante, aquela que captura o instante exato em que Monet entra no seu ateliê, eu me esforcei para pintar os derradeiros anos da vida de Monet. É nesse grande ateliê de Giverny onde ele pintou as Nymphéas que ele se sente ao abrigo das ameaças do mundo exterior, a guerra que rosna no entorno de Giverny, a velhice que se aproxima, a visão que diminui inexoravelmente. É aqui, à sombra da morte, que ele vai começar o último face a face decisivo com a pintura. É aqui, durante dez anos, de 1916 a 1926, que Monet vai perseguir incansavelmente a incompletude das Nymphéas, que ele vai polir, que ele vai completar”.

(Houvesse Penélope, eu a levaria para ver a incompletude completa das Nymphéas, tal como a mortalha que ela tece e destece, à espera do seu Ulisses que tarda, enquanto pretendentes poderosos querem tomar o lugar dele.)

Capturo por poucos euros o instante exato em que Monet entra no seu ateliê e, pouco diante, deparo com o meu Tirésias. Ele é Edgar Morin. Profissão: pensador. Fará 101 anos em julho. Quando fez 90 anos, encomendaram-lhe um livro sobre as figuras que nutriram a sua vida e a sua obra. Ele escreveu Mes Philosophes (Meus Filósofos). Quantos homens poderiam usar o possessivo de modo tão despudorado, sem parecer cabotino? Edgar Morin é um deles. Entre os seus filósofos, há Dostoiévski. Há Buda. Há Jesus. Há Rousseau. Há Hegel. Há Marx. Há Freud. Há Heráclito e as contradições inerentes à existência: entre o desespero e a esperança, entre a dúvida e a fé, entre a razão e o misticismo. “Bem e Mal formam um todo”, “O caminho para cima e o caminho para baixo são os mesmos”, “Acordados, eles dormem”. E, especialmente: “Sem a esperança, você não encontrará o inesperado”. Ri um riso amargo, pensando que toda a filosofia talvez caiba em pílulas de sabedoria. Comprei o livro.

Do mundo dos mortos, Ulisses sem vitória em Troia agora pergunta ao Tirésias visionário e vivo — numa vida de 101 anos — sobre como voltar à Ítaca que não estará na Grécia. Uma Ítaca na qual ele, Ulisses, nunca esteve, mas onde mora a esperança de reencontrar o abraço da sua inesperada Penélope. E o perdão.

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  1. Essas crônicas em que o Mário expõe suas entranhas emocionais me fazem temer pela viabilidade da sua sanidade mental tendo em conta a profissão que pratica e as obrigações subjacentes a ela. Boa sorte.

  2. Eu me encontrei "entre a dúvida e a fé". Ambas mortas, pois não esperança mais nesse nosso país, que mais parece o desalento do fim de um povo perdido como o grego que já não há em Troia.

  3. Se encontrar a Penélope, diga-lhe que você não é o Ulisses, mas em compensação é o Mário Sabino, que nesta 00:0h me encantou com a forma de transmitir os seus conhecimentos.

  4. É com muito gosto que compareço a este espaço para aumentar a lista de elogios que o texto merece. Paris sem rumo e Grécia com rumo : aproveite !

  5. Mario, vc anda triste (perdão pelo trocadilho). Não sei que despedidas processa, e viajará com seu Amigo Diogo, tbm imolado por perdas recentes e severas. Tenho quase 60, talvez menos melancólica? Talvez apenas viva o consolo da ignorância - que perto de vcs, sou quase analfabeta. Talvez o console ter o amor de seus caros amigos e conhecer lugares tão lindos, que meu ignorar tbm abrange.

    1. Mas queria dizer: se não o ampara, ao menos, que o aqueça um pouquinho, a certeza da admiração e afeto de leitores tão especiais. Não podemos com a falta, mas sobre ser esquecido, jamais (e nem é preciso Tirésias pra o predizer). Um grande abraço em você, no Diogo, lembranças a seu outro amigo de verdade. Voltem logo.

  6. Tecer e destecer… você trouxe juntos Penélope, Ulisses e Monet em Giverny… talentos filosofais estimulantes e uma linda viagem pela frente, relaxe e aproveite as férias e o calorão!

  7. Mario, obrigada por compartilhar seu “vagar” por Paris . Gostei de sua escolha , Edgar Morin , e meu dedo nervoso acabou de comprar pela internet , por menos de 40,00 reais o livro “ Meus Filósofos “. Boas férias pra você, Diogo e amigos !

  8. Sim, o caminho para cima é o mesmo que o para baixo: essa é uma das sete leis herméticas do Caibalion. Sabedoria pura. Tudo o que se procurará no Cosmo haverá seu correspondente em proporção inversamente proporcional neste planeta que vivemos. Boa viagem a vocês.

  9. Muito bonito seu texto. Parabéns Sabino! E aproveite bem seu passeio. Deverá ser um belo, criativo e reconfortante encontro.

  10. Mário, Não tem Penélope. Lamentavel ! Mas, espero que a companhia do Diogo e os seus papos de alto nível intelectual, amenize essa melancolia.

    1. Estar no meio de uma conversa onde estejam Mário Sabino e Digo Mainardi: ganhei o dia! E... carpe diem e a companhia!

  11. Um dos grandes do país, desta vez exagerou demais (pleonasmo!): texto excessivamente intelectual, até humilhante para nós!

    1. Concordo plenamente. Mentes medianas não conseguem acompanhar. Eu não consegui.....

  12. Pois é Mário a história é sempre escrôta de questionável ... as más linguas cor de rosa dizem por aí que Aquiles matou Heitor e profanou seu belo corpo (?) não por causa dos chifres da bela Helena perfilados no guerreiro Menelau mas por causa de Patroclus seu bofe por ele morto o que o deixou louquita da silva .. será? sei não ...

  13. Oi Mario! Esse foi difícil! Tive q procurar quase td no Google p saber do q o sr está falando 😬. Eu sei q ñ sei nada, mas qdo pego um artigo desses, vejo q o buraco é + embaixo ainda: ñ sei nada de nada mesmo! "Conhecia" o Monet do Castelo ratimbum e das enciclopédias q meu pai ñ se desfaz e o Morin (um pouquinho) pq td mundo conhece (pelo menos um pouquinho). Ñ conheço esses nomes e lugares franceses e isso me dá um pouquinho de inveja (acho q é inveja). Obrigada! Vou sonhar um pouco mais!🤗

  14. Caro Mário, esta é uma excelente livraria, como tantas outras em outros arrondissements. Creio seu seu maior mérito o de simplesmente continuar a sobreviver, enquanto praticamente todas as outras nas proximidades se tornaram boutiques de roupas de grife. Mas, falando de Ulisses e de sua jornada, atrevo-me a recomendar uma releitura do poema Ithaka, de Constantino Kafávis. Quanto ao Bananão, ele também tem um poema bem apropriado para esse período pré-eleitoral : « Esperando pelos Bárbaros »…

  15. você por aí vagando aos 60 enquanto o morin segue flanando aos 100.. você ainda pode ter uma longa jornada pela frente, que tal agora começar a flanar pela grécia ? um novo ciclo, talvez com um novo livro, combinado ?

  16. Que artigo consolador para esses dias tão conturbados, quase que sem esperança de que esse Brasil possa encontrar o seu NORTE. Grande Mario Sabino obrigada sempre grata,

    1. Do barbeiro que havia morrido sem avisar a este magnífico flanar por mundos tão amplos e profundos, Mário Sabino é garantia de luz e graça neste mundinho tão chato e embrutecido. Obrigado.

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