Foto: Roque de Sá/Agência SenadoBiblioteca em Brasília: menos de 10% dos brasileiros são leitores

A literatura engajada e a evasão de leitores

Livros com uma "proposta do bem" querem educar os brasileiros e construir uma sociedade melhor, mas ignoram que a literatura deveria servir para divertir, para despertar curiosidades e para apresentar a arte
24.06.22

O Brasil é um país com pouquíssimos leitores. Pesquisas sobre os hábitos dos brasileiros indicam que, ao longo dos últimos vinte anos, não saímos da casa dos 50% de leitores. Esse número significa que apenas metade das pessoas que respondem às enquetes afirmam ter pegado em um livro nos últimos três meses. Mas esse é um dado enganador. Se tirarmos desse grupo as pessoas que abriram livros didáticos, as que leram obras religiosas e as que mentiram nas pesquisas para não passar vergonha, não temos mais de 10% da população que poderia ser considerada leitora de livros não didáticos ou não devocionais.

Ao buscar uma explicação para essa realidade, muitos caem na percepção equivocada de que o livro no Brasil é caro. Em primeiro lugar, não acredito que existam evidências para sustentar tal afirmação. Além disso, ignora-se a participação que as pessoas que comandam e influenciam o mercado editorial têm nesse problema. Por décadas, tem se priorizado a literatura engajada no país, aquela com uma “proposta do bem”, o que faz com que a formação de leitores e escritores patine no país.

É uma grande falácia dizer que o livro no Brasil é caro, e esse argumento é simples de desmontar. Uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a Fipe, calculou o preço médio do livro ao longo de treze anos. Desde 2006, esse valor tem caído ano após ano, de 19 reais para 12 reais. Qual foi a mágica por trás dessa estagnação de preços? As editoras e as gráficas reduziram suas margens de lucro e o mercado focou em livros de tiragens maiores, onde há ganho de escala.

Para não falar de abstrações, trago um exemplo prático. Em 2002, fui gestor na editora Francis. Lá, publicamos a saga arturiana O Único e Eterno Rei, de T. H. White, um clássico da literatura juvenil. Na época, o livro era vendido a 39,90 reais, preço de capa. Dez anos depois, relancei o livro pela Lafonte. O preço de capa foi de 29,90 reais. Se o valor tivesse sido atualizado pelo IGPM, o livro deveria custar 87,90 reais, já que a inflação no período foi de 119,35%. Esse caso ajuda a colocar uma pá de cal nessa história de que o livro é caro no Brasil. E não é uma história solitária. O livro não é caro, a questão é que ele é considerado um artigo sem valor. Então, qualquer preço pode ser alto para quem acha que ele deveria ser gratuito.

Mas, enquanto essa bobagem é repetida, o problema real não é examinado. Não é o preço que faz as pessoas não lerem mais, o problema é mais profundo.

No Brasil, é oferecida ao público uma literatura que não estimula a leitura. O problema começa nos dogmas sobre qual literatura deve ser considerada boa e premiada. É preciso repensar os critérios que definem qual livro deve ser publicado com destaque, oferecido pelas escolas e indicado nos circuitos vestibulares e cursos superiores.

Da minha experiência com prêmios literários, posso afirmar que os especialistas acadêmicos das áreas de literatura adulta ou infantil não são os melhores juízes quando se pensa na formação de leitores. E são as opiniões deles que acabam sendo consideradas para definir as políticas culturais.

O problema é que prêmios e cadernos culturais, que refletem a forma como a elite cultural pensa, servem como indicadores para toda a cadeia de leitura. Eles estabelecem os critérios que definem qual livro deve ser indicado na escola privada, qual deve entrar nas compras governamentais, nos editais de promoção da literatura no Brasil e no mundo. Também são poderosos sinais para editoras, autores e professores, que se baseiam neles para saber o que devem produzir, promover e oferecer nas salas de aulas.

Todos os envolvidos nesse processo argumentam que é preciso ampliar o número de leitores. Mas se trata de um discurso da boca para fora. O processo está viciado para evitar que as coisas mudem. Até porque seus atores perderiam relevância se isso ocorresse.

Os livros recomendados no Brasil são focados numa cartilha de ideias que podemos chamar de “literatura de proposta”. Em uma subversão do antigo romance de tese do século XIX, o qual era escrito para defender uma ideia do autor, a literatura de proposta busca “educar” os leitores com alguma ideia anterior. O texto assume, então, a batuta de condutor da verdade, da bondade, da construção de uma sociedade melhor. Mas ignora-se que a literatura deveria servir para divertir, para despertar curiosidades, para apresentar uma arte.

Esse conceito nunca desapareceu do cenário cultural e ganhou força com a oposição política após 1964. Desde então, as desgraças foram muitas.

Qualquer um que procure grandes autores brasileiros para indicar a um amigo estrangeiro terá dificuldade em encontrar algum nome de 1980 em diante. Isso ocorre porque passamos a produzir uma literatura que é valorizada pelo tema: é quase sempre denúncia. A ideia, ventilada por todos os cantos, é que literatura é resistência. Antes não era assim. Falava-se, principalmente, de arte. O corolário disso é que, enquanto a arte pode durar para sempre, como os clássicos, a literatura de resistência tem a perenidade de uma matéria jornalística.

O leitor brasileiro que busca títulos nas livrarias e acompanha as notícias sobre o meio pode observar claramente que, todo ano, um novo autor é incensado pela indústria. No ano seguinte, porém, ele desaparece. Ao final, apesar dos esforços para forçar uma literatura engajada, o público não se engana. E essa obrigação de passar uma mensagem não aconteceu apenas na literatura: a Tropicália e o Cinema Novo, ainda revisitados, são outras versões do mesmo fenômeno.

Daí termos uma literatura brasileira contemporânea irrelevante também no cenário internacional. Basta olhar que exportamos com destaque de nossa arte literária muito pouco além de Machado de Assis e Clarice Lispector. Nas premiações internacionais, os mais novos são autores como Adélia Prado.

Quando um livro ruim é enaltecido por ter uma “proposta do bem”, uma reação em cadeia acontece. Outros autores passam a produzir obras similares. Editoras alimentam o mercado com essa literatura, deixando de publicar autores com histórias universais. Professores não conseguem animar as salas de aulas com esses livros. As crianças, público final, aprendem desde cedo que livro brasileiro é chato.

Hoje, as livrarias vendem cinco livros de um autor internacional desconhecido para cada livro de autor nacional conhecido, do mesmo gênero. Acontece que o leitor aprendeu a desconfiar da qualidade do autor nacional. Parte da desvalorização do livro acontece pelo desinteresse que essa literatura com proposta provoca nos leitores. A outra parte é provocada por uma educação escolar de baixa qualidade, que transmite mensagens frágeis sobre a importância da cultura para a vida.

Quebrar esse ciclo é uma tarefa para décadas. Milhões de reais já foram gastos em campanhas para expandir a base de leitores, mas nada mais fizeram do que desperdiçar dinheiro público. Felizmente, o país começa a entender o problema.

Pedro Almeida foi, por 20 anos, publisher em grandes casas editoriais e curador de prêmios e clubes de literatura. Atualmente é sócio-proprietário da Faro Editorial.

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