Estancando a sangria

Aos poucos, e sem chamar muita atenção, os alvos mais destacados da Lava Jato vão conseguindo se livrar da caneta do juiz Sergio Moro. A estratégia para matar a operação está em marcha acelerada em Brasília
28.09.18

Quando a Lava Jato se tornou gigante e passou a atingir políticos e empresários dos mais variados esquemas e partidos, os investigadores sabiam que haveria tentativas de colocar um “freio de arrumação” na operação. Algumas dessas ofensivas são explícitas, como a soltura de José Dirceu, que de 30 anos de prisão conseguiu sair pela porta da frente da cadeia graças ao Supremo Tribunal Federal. Ou as relativas a outros alvos que foram igualmente libertados graças às dezenas de habeas corpus do ministro Gilmar Mendes. Alguns lances que têm ferido de morte a maior investigação anticorrupção da história, porém, são bem mais sutis. Lenta e discretamente, o Supremo Tribunal Federal vem esvaziando as investigações e os processos a cargo da força-tarefa de Curitiba.

As justificativas são as mais variadas, mas têm um mesmo objetivo: tirar os processos do juiz Sergio Moro e, assim, evitar novos estragos. Enquanto as ações da Petrobras naturalmente vão chegando ao fim, uma parcela dos ministros do Supremo – especialmente aquela que até há pouco predominava na Segunda Turma da corte — garante que a 13ª Vara Federal de Curitiba não terá outras frentes de investigação além daquelas que já são conhecidas e cujos danos já foram, de certa forma, absorvidos pela classe política. As decisões têm sempre um motivo técnico. Mas uma visão em conjunto das medidas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal mostra que MDB, Lula, Dilma Rousseff e parte assombrosa dos citados na delação premiada da Odebrecht poderiam, sim, estar agora sob investigação do mesmo time que devassou a Petrobras e implodiu o maior caso de corrupção já apurado no país. O fim do foro privilegiado permitiria que dezenas de políticos ficassem ao alcance da conhecida caneta do juiz da Lava Jato.

O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que recentemente deixou a operação após quatro anos de trabalho, vê nas sucessivas decisões uma clara tentativa de limitar a Lava Jato. “Há um esvaziamento claro da 13ª Vara (comandada por Sergio Moro). Seja para limitar os casos, seja para, com uma argumentação falsa, mandar casos de corrupção para a Justiça Eleitoral”, diz. Para o procurador, os casos de dinheiro para campanhas devem ser enquadrados como propina – e não como irregularidades a serem averiguadas pelas cortes eleitorais. “Se há um toma-lá-dá-cá, se há promessa de retribuição, se há caixa-geral de propina, não se trata de crime de caixa dois eleitoral, mas de corrupção. Isso o STF já havia decidido. Entretanto, monocraticamente e em minorias ocasionais, pretendem transformar, como alquimistas, um crime grave em um quase nada penal.”

Agência BrasilFabio Rodrigues Pozzebom/Agência BrasilO ministro Dias Toffoli, agora presidente do Supremo, é um dos responsáveis pelas decisões que ajudaram a esvaziar a força-tarefa de Curitiba
Em um desses julgamentos, o medo que Sergio Moro causa foi ilustrado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo. Parodiando a expressão em latim que define no jargão jurídico a necessidade de julgar rapidamente um processo, o periculum in mora (perigo da demora), Barroso alfinetou: “É o que tem sido chamado de ‘periculum in Moro’”. Ele criticava justamente o esforço de colegas para desconstruir decisões do juiz de Curitiba. Na outra ponta do debate, os críticos da operação argumentam que a Lava Jato tenta criar uma espécie de “juízo universal” onde todos os suspeitos deveriam ser processados e julgados – a expressão é frequentemente usada, por exemplo, pelo ministro Marco Aurélio Mello.

O processo de desidratação leva a marca do trio José Antonio Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Foram eles que, ao formar maioria na Segunda Turma do Supremo, conseguiram impor as principais derrotas à operação e ao relator Edson Fachin, sempre favorável às investigações de Moro. A decisão mais recente, do mês passado, envolveu trechos da delação premiada da Odebrecht que versavam sobre venda de medidas provisórias. Executivos da empreiteira apontaram como beneficiários do esquema o ex-presidente Lula e Guido Mantega, o ex-ministro da Fazenda que sonegava imposto mantendo seu dinheiro fora do país. A propina ao PT chegou a 173 milhõesn de reais, de acordo com Marcelo Odebrecht. Nas mãos de Moro, certamente o caso levaria a mais uma condenação de Lula e colocaria Mantega em novos apuros.

Outro caso importante foi reduzido a um imbróglio eleitoral. Trata-se da delação do marqueteiro João Santana, que admitiu que recebia dinheiro da Odebrecht fora do país para fazer a campanha de Dilma em 2014. O esquema de João Santana foi justamente descoberto pela Lava Jato do Paraná. Mas, para o Supremo, tudo não passou de caixa dois e, por isso, deve ser apurado pela Justiça Eleitoral do DF. Ponto final. Não fosse a decisão, Dilma hoje estaria sob investigação em Curitiba – com chances reais de ser condenada, uma vez que casos semelhantes passaram pelo crivo de Moro e acabaram da pior forma para os envolvidos.

Para longe de Moro

 

O trio supremo foi decisivo também quando o tribunal discutiu em plenário a cisão da Lava Jato. Estava em julgamento uma questão primordial: se na investigação sobre as relações de Michel Temer com a JBS, a turma do MDB que não tinha foro poderia ser processada em Curitiba – incluídos aí Rocha Loures (aquele da mala de dinheiro), Geddel Vieira Lima (aquele do bunker da propina) e o notório Eduardo Cunha. Por 5 a 4, o Supremo respondeu que não. O caso, assim, saiu das mãos de Moro e foi remetido para a Justiça Federal, em Brasília. De novo, o trio Toffoli-Mendes-Lewandowski foi decisivo. Desta vez, acompanhado de Alexandre de Moraes e Marco Aurélio.

Até aqui, Moro vem resistindo a pelo menos um dos ataques. É justamente no caso mais emblemático, o do sítio de Atibaia. É uma investigação que corre desde 2016. Antes, portanto, de a Odebrecht ter feito seu acordo com o Ministério Público. As provas são inúmeras: itens pessoais de Lula no sítio que ele diz não ser dele, testemunhas dando detalhes da reforma do local com dinheiro das empreiteiras, seguranças recebendo diárias da Presidência da República para ficar em Atibaia. É um caso que, com tantas e variadas evidências, deverá ter como desfecho mais uma derrota para o petista – leia-se prisão.

O processo do sítio segue com Moro, já em fase adiantada. Mas o Supremo decidiu que a parte da delação da Odebrecht que mencionava o tema Atibaia fosse remetida para São Paulo. Se aqueles trechos da delação permanecessem com Moro, seguramente a sentença poderia ser muito mais pesada. O Supremo, porém, entendeu que eles não deveriam ficar com o juiz, apesar de todas as indicações de que Odebrecht se valeu de dinheiro da Petrobras para reformar o sítio. Assim falou Toffoli no julgamento: “Ainda que o Ministério Público Federal possa ter suspeitas, fundadas em seu conhecimento direto da existência de outros processos ou investigações, de que os supostos pagamentos noticiados nos termos de colaboração teriam origem em fraudes ocorridas no âmbito da Petrobras, não há nenhuma demonstração desse liame nos presentes autos”.

ReproduçãoReproduçãoA adega de Lula no sítio: o STF tirou das mãos de Moro trechos da delação da Odebrecht sobre Atibaia
Com a decisão do Supremo de tirar de Sergio Moro trechos da delação da Odebrecht, a defesa do ex-presidente usou a deixa dada pelo tribunal para atacar o juiz e pedir que a ação de Atibaia não seja julgada em Curitiba. É como se o trio de ministros tivesse levantado a bola para os advogados de Lula cortarem. Eles entraram com uma reclamação dizendo que Moro desobedecia ao Supremo ao julgar o caso. A Procuradoria-Geral da República, contudo, tomou lado na querela: defendeu que o processo permaneça com Moro. A procuradora Raquel Dodge escreveu com clareza: “Percebe-se que o reclamante (Lula), sob o pretexto de que a autoridade da Suprema Corte foi violada, pretende, na verdade, submeter diretamente ao STF a apreciação quanto à competência da 13ª Vara da SJ/PR (Seção Judiciária do Paraná) para processar e julgar a ação penal”.

O ministro Dias Toffoli negou a liminar que Lula queria. A palavra final será da Segunda Turma, que julgará o mérito da questão. Desta vez, sem o próprio Toffoli, que está na presidência do tribunal e cuja cadeira na turma passou a ser ocupada por Cármen Lúcia. O juiz Moro teve que lembrar algumas obviedades: é justamente a ação penal que dirá se dinheiro desviado da Petrobras foi parar no tal sítio de Atibaia, e não uma discussão técnica sobre competência e jurisdição. Lula, em seu roteiro de sempre, dispara críticas – é um direito dele. Mas “até agora não apresentou qualquer explicação nos autos, por exemplo, quanto aos fatos que motivaram as reformas e se ele, o acusado Luiz Inácio Lula da Silva, ressarciu ou não as empreiteiras (…) pelos custos havidos. Até o momento, vigora o silêncio quanto ao ponto”, escreveu o juiz.

Com a ida de Cármen para a turma onde a Lava Jato vinha perdendo a parada, tudo indica que, ao menos ali, a alegria de Lula e outros investigados chegou ao fim. Mas, com Toffoli na presidência do tribunal, abriu-se um novo rasgo de esperança para a turma enrolada. É ele que tem poderes para definir o que é e não é julgado pelo plenário do Supremo. Assim, é no ministro que o PT e os advogados de Lula depositam as expectativas de ver, num futuro próximo, uma virada na decisão do STF que autoriza prisões após condenação em segunda instância – uma questão crucial, da qual depende a liberdade do ex-presidente. Enquanto isso, é Ricardo Lewandowski quem está se movendo em linha com o que desejam os advogados de Lula. Nos últimos dias, duas decisões de Lewandowski empurraram para o plenário pedidos dos advogados para que o petista seja solto. As engrenagens estão operando a todo vapor. Demorou, mas o desejo do notório Romero Jucá, aquele que lá atrás queria que o Supremo estancasse a sangria da Lava Jato, parece estar cada vez mais próximo de se tornar realidade.

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