Os coronéis de Haddad
Fernando Haddad, de cabelos esvoaçantes, vestindo camisa azul clara, abraça o senador Renan Calheiros e o governador de Alagoas, Renan Filho, e, sorridente, começa a gravar um vídeo no alto de um carro de som em movimento. “Estou aqui em Maragogi, Alagoas, com esse grande governador, Renan Filho, que tem apoio do Lula para se reeleger governador. Estou aqui com o senador Renan, a quem trago uma mensagem do presidente Lula de agradecimento por toda defesa, senador Renan, que o senhor tem feito do Lula. Muito importante esse papel que você está exercendo no plano nacional, mas aqui em Alagoas em particular. São amigos da democracia.” Corta.
O abraço do trio durante uma carreata no litoral alagoano, no início deste mês, simboliza uma aliança que tem potencial, ao menos até agora, para definir mais uma vez uma eleição presidencial: a do PT com as velhas oligarquias do Nordeste. Desde 2006, quando Lula foi reeleito, a região que detém 27% do eleitorado nacional é o mais relevante reduto petista e tem sido o fiel da balança nas eleições nacionais. Em 2002, os nordestinos deram 25% dos votos de Lula no segundo turno. Em 2006, foram 33%. Em 2010, de novo, 33% dos votos foram para Dilma Rousseff. Em 2014, a petista conseguiu ainda mais: 37%. Neste ano, as pesquisas já colocam Haddad à frente em sete dos nove estados nordestinos. Em todos eles, há um coronel a apoiar o petista, raspando o verniz moderno de professor da USP com o qual o novo poste de Lula tenta se apresentar. Os coronéis trazem consigo, além de todos os outros maus hábitos da velha política, o envolvimento em denúncias de corrupção e uma curiosa característica: todos foram tachados de “golpistas” pelos petistas durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
Ironicamente, vêm justamente do MDB, o partido que liderou o processo de afastamento da petista e que pôs Michel Temer no poder, alguns dos principais apoiadores de Haddad no Nordeste. No Maranhão, o clã Sarney praticamente ignora o fato de seu principal adversário, o governador Flávio Dino, do PCdoB, estar formalmente aliado ao petista e ter indicado sua vice, Manuela D’Ávila. A campanha da oligarquia é toda feita utilizando a ligação de Lula com o ex-presidente José Sarney, um dos principais operadores do petista no Congresso durante seus governos. Sua filha, Roseana, trava com Dino uma disputa cruenta pelo governo do estado, mas isso em nada atrapalha a adesão ao poste. Outro rebento, Sarney Filho tenta o Senado na mesma chapa que o senador Edison Lobão, ex-ministro de Lula e Dilma. Todos apoiaram o impeachment de Dilma. Todos são ou foram investigados. Mas isso tampouco é entrave para a aliança. Nem de uma parte nem de outra. Estão todos associados, ainda que informalmente, ao PT.
Eunício sonhava em ser governador do Ceará, mas preferiu não arriscar. Se perdesse a eleição, ficaria sem mandato – o de senador se encerra em dezembro deste ano. Por isso, cuidou de restabelecer as pontes com o PT do atual governador cearense, Camilo Santana. A relação acabou garantindo uma “aliança branca” positiva para os dois lados: o petista eliminou um possível adversário ao governo, enquanto o emedebista espera garantir sua reeleição sem ter na disputa um petista capaz de atrapalhar seus planos. Sim, para facilitar a vida de Eunício, os companheiros do PT cearense trataram de impedir que das hostes do partido saísse um candidato competitivo. Estava amarrada, então, uma aliança repleta de interesses, atropelando todas as diferenças entre as partes. Se é que diferenças havia de verdade.
No Piauí, a história se repete. O governador Wellington Dias, do PT, aceitou em sua chapa o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP. Assim como Eunício e o clã Sarney, o capo pepista abandonou Dilma para aprovar o impeachment e, depois, aderir ao governo Temer. Embora a sua legenda esteja coligada ao tucano Geraldo Alckmin no plano nacional, Ciro nunca escondeu que votaria em Lula. Mesmo depois da rejeição da candidatura do chefe petista pelo TSE, por onde anda ele faz questão de posar para fotos fazendo o “L” com a mão. Está engajadíssimo na campanha para Haddad. Ciro Nogueira, diga-se, é um dos recordistas de menções na Lava Jato. Nesta quinta-feira, como parte de um dos inquéritos que correm contra ele no Supremo, policiais federais fizeram busca na sede do PP em Teresina e na casa de um funcionário do partido.
Golpistas ontem, aliados hoje
O caso mais emblemático, contudo, é mesmo o de Alagoas. O movimento de aproximação dos Calheiros com o PT começou há mais de um ano. Em março de 2017, Renan pai, que também apoiou o impeachment, recorreu a pesquisas eleitorais para decidir que rumo tomar. Também ameaçado de ficar na planície, já que seu mandato no Senado está prestes a terminar, percebeu pelos números que o vento sopraria novamente a favor de Lula no estado. Começou, então, a se descolar do governo Temer e a fazer gestos de aproximação com o petista. Fez o que pôde para reatar os laços. Recepcionou a caravana de Lula quando ela passou por Alagoas em agosto do ano passado, gravou vídeos pedindo “Lula Livre” e até visitou o ex-presidente na carceragem da Polícia Federal em Curitiba. Deu certo. Hoje, Renan é alvo de mais de uma dezena de inquéritos no Supremo.
Ainda em Alagoas, outros candidatos também tentam pegar carona na campanha da dupla Lula-Haddad. No final de agosto, o deputado federal Maurício Quintella, do PR, que concorre ao Senado na mesma chapa dos Calheiros, também posou para fotos fazendo o “L” com a mão. Ex-ministro dos Transportes de Temer, ele admitiu que o gesto era uma referência a Lula. Mas disse que, pelo menos no primeiro turno, votaria em Alckmin, a quem seu partido está oficialmente coligado. O voto de Quintella na votação do impeachment dá a medida do tipo peculiar de coerência da tropa de oligarcas nordestinos integrados à campanha petista: “A presidente não cometeu um crime de responsabilidade, ela cometeu um rol de crimes de responsabilidades. Atentou contra o orçamento, contra o Congresso, contra a democracia”, disse na ocasião.
Para os petistas, a aliança é um ótimo negócio. Os “golpistas” conseguem a partir de suas máquinas partidárias e da cadeia de relacionamentos locais, em especial com prefeitos, tornar mais efetiva a transferência de votos de Lula para o desconhecido Haddad. “Esses grupos não têm ideologia demarcada. Estão em todos os governos federais e é essa relação próxima com Brasília que os sustenta localmente”, diz o professor de Ciências Políticas da Universidade Federal do Ceará Cleyton Monte. De acordo com ele, o PT hoje ocupa um espaço na região que, nos anos 1980 e 1990, foi dominado pelo antigo PFL, atual DEM, e pelo PMDB, agora MDB. Na sua avaliação, contudo, as, digamos, políticas sociais do governo Lula focadas no Nordeste e sua repercussão positiva no eleitorado fez com que as oligarquias locais passassem a depender mais do PT do que o PT delas.
Um exemplo disso é que os grupos que não aderiram a Lula acabaram enfraquecidos. Na Bahia, está o sinal mais eloquente do fenômeno petista na região. O estado foi comandado por décadas por Antônio Carlos Magalhães. Em 2006, o PT começou a tomar o lugar do carlismo, utilizando-se de estratégias similares às do velho coronel. Jaques Wagner comandou o estado entre 2007 e 2014 e fez o sucessor, Rui Costa, que caminha tranquilamente para uma reeleição em primeiro turno neste ano. A chapa dos petistas é formada por 14 partidos, muitos deles do chamado Centrão, o agrupamento de partidos fisiológicos que no papel apoiam Geraldo Alckmin.
Em alguns casos, o acordo entre os coronéis e os petistas envolve dinheiro explicitamente. No Ceará, por exemplo, Eunício doou 600 mil reais para a campanha de Camilo Santana, o governador petista candidato à reeleição. O montante representou 15% do total arrecadado por Santana até agora e supera até o que o presidente do Senado declarou como doação para a própria campanha — 31,5 mil reais. A doação de Eunício para Santana, evidentemente, ajuda Haddad por tabela. E essa é só a parte aparente da relação que repete o padrão eternizado pela crônica político-policial dos últimos anos. O fim da história os brasileiros conhecem bem.
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