MarioSabino

Sou a favor de um autogolpe

28.09.18

O general Hamilton Mourão me lembra o que Ernesto Geisel disse certa vez a respeito dos militares, quando ocupava a cadeira de presidente da República: “Deus nos livre de uma guerra”. Quem me contou foi um oficial graduado da reserva, influente sob Geisel, que gostava de dizer que o lema informal da Cavalaria servia ao regime de 1964: “Rápido e mal feito”. Mourão não precisava ter-se enrolado na entrevista a jornalistas da GloboNews. Ele afirmou que, num quadro de anarquia, as Forças Armadas interviriam, desde que por decisão do presidente da República ou do Congresso. Se tivesse parado por aí, estava tudo certo. Mas, com um passo de ganso em falso, emendou que a intervenção poderia ser chamada de “autogolpe”. Pronto, serviu para que jornalistas, com aquela boa vontade característica em relação a Bolsonaro, começassem a gritar que o candidato do partido verticalmente prejudicado PSL (a piada é do meu colega Ruy Goiaba) está pronto a colocar a democracia na horizontal, caso seja eleito.

Mourão é um sincericida serial, mas falar em autogolpe foi uma bobagem desprovida de realidade. Autogolpe coisa nenhuma. A Constituição é clara no artigo 142: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Sim, você leu certo: “por iniciativa de qualquer destes” poderes constitucionais. Ou seja, Executivo, Legislativo ou Judiciário.

A lei complementar ao artigo diz que “Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por sua iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por qualquer dos poderes constitucionais, através do Presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Presidente do Senado Federal ou do Presidente da Câmara dos Deputados, no âmbito de suas respectivas áreas”. E ainda: “A atuação das Forças Armadas ocorrerá de acordo com as diretrizes do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição Federal”.

É chato ler a Constituição, só Celso de Mello parece ter prazer com a leitura desse pastiche aprovado há trinta anos, mas vamos ao artigo 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Na sequência, o artigo relaciona os instrumentos pelas quais o Estado cumpre o seu dever: as diversas polícias. Ou seja, quando a capacidade delas se esgotam, os poderes constitucionais podem acionar as Forças Armadas. Foi o que ocorreu, por exemplo, no caso da intervenção militar no Rio de Janeiro – um estado que vivia a mais completa anarquia na segurança pública.

Está claro que, entre a letra constitucional e a interpretação da letra constitucional, há um mundo bem brasileiro de oportunidades, como provou Ricardo Lewandowski ao preservar os direitos políticos de Dilma Rousseff, na sessão do Senado que selou o impeachment da petista. É uma sandice, contudo, imaginar que Bolsonaro seja capaz de promover um autogolpe com a mesma facilidade com que Cabo Daciolo sobe ao monte, na hipótese de ser instalado no Planalto pelo voto. É uma sandice porque ele não teria condição para tanto. Na história da nossa malfadada República, golpes – autos, altos ou baixos – só foram dados pelas Forças Armadas com a cumplicidade do Congresso, do STF, da maioria da imprensa e boa parte da classe média. Todas as vezes foi assim. Esse pessoal bole com os granadeiros, os granadeiros se animam, apoiam o vigarista da vez ou o tiram do poder – e depois fecham o Congresso, espremem o STF, censuram a imprensa e prendem os filhos da classe média. É um roteiro tedioso.

Como sabe até o Carlos, aquele filho inteligente dele, Bolsonaro não conta, e dificilmente contará, uma vez eleito, com Congresso, STF, a maioria da imprensa e boa parte da classe média ao seu lado para dar um autogolpe. O risco é justamente o contrário – negarem-lhe apoio, criarem obstáculos para ele governar e tentarem tirá-lo da presidência. Não é improvável que, ao escolher Mourão como vice, Bolsonaro pensou que o general pudesse lhe servir de anteparo contra tentativas de golpe, não para um autogolpe. Um granadeiro assusta muita gente, um monte de granadeiros assusta muito mais. Por esse raciocínio, a caserna seria uma garantia democrática, ora vejam só. Quem sabe até ajudaria a atrair sustentação política. Pelo menos é o que general Augusto Heleno já tenta fazer, a despeito dos ataques sincericidas e bestialógicos de Mourão — e da hostilidade de Gustavo Bebianno, o chefão da campanha de Bolsonaro.

Em Rumo à Estação Finlândia, Edmund Wilson conta que Friedrich Engels, aquele rico que sustentava Karl Marx, adestrou o seu spaniel a rosnar ferozmente sempre que ele dizia a frase “Olha o aristocrata!”. Brasileiros aprenderam a rosnar ferozmente sempre que alguém lhes diz “Olha os militares!”. Compreensível. Mas é preciso admitir que o pessoal da farda mostrou-se essencial para preservar a democracia em dois momentos recentes: o primeiro foi quando o PT quis colocar tanques nas ruas, para deter o movimento pelo impeachment de Dilma Rousseff. O general Villas Bôas disse “não”. O outro foi quando o mesmo Villas Bôas mandou o recado público ao STF de que a caserna não admitiria que os ministros mudassem o entendimento sobre a prisão de condenados em segunda instância apenas para livrar Lula. Celso de Mello reclamou dos “pretorianos”, mas os pretorianos prevaleceram. Lula agora tenta eleger o transcandidato Fernando Haddad, para sair da cana, liquidar a Lava Jato e controlar a imprensa que ajudou a colocá-lo atrás das grades. Quem é golpista mesmo?

O dado paradoxal do “polo democrático e reformista” que anda histérico com Jair Bolsonaro é que foi o seu líder que protagonizou uma espécie de autogolpe em 1997. Embalado pela popularidade proporcionada pelo Plano Real, Fernando Henrique Cardoso comprou deputados para aprovarem a emenda constitucional da reeleição – não para o presidente que o sucederia, mas para ele próprio, uma vergonha de qualquer ponto de vista. Bolsonaro, aliás, já disse que pretende acabar com a reeleição para presidente da República, o que seria salutar para a democracia brasileira e nem é preciso explicar o motivo, depois de dois governos Lula e quase dois governos Dilma. Sou a favor desse autogolpe, não importa quem seja o ungido pelas urnas. Parafraseando Geisel, Deus nos livre um dia da reeleição. Foi um servicinho de FHC rápido e mal feito.

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