Divulgação"Muitas outras pessoas começam a se autocensurar, a ter medo de expor as suas próprias opiniões"

‘A tutela de opinião deslegitima a democracia’

O diplomata Gustavo Maultasch, autor do livro Contra Toda Censura, diz que as instituições brasileiras perderam muito tempo coibindo discursos de ódio, anticientíficos e fake news, quando deveriam estar mais alertas à violência política
15.07.22

Judeu e neto de sobreviventes do Holocausto, o diplomata Gustavo Maultasch tem se dedicado na última década a estudar o tema da liberdade de expressão. Bacharel em direito, mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco e doutor em administração pública pela Universidade de Illinois-Chicago, ele acaba de lançar o livro Contra Toda Censura: Pequeno Tratado sobre a Liberdade de Expressão, pela Avis Rara.

Nos últimos meses, Maultasch tem sido um dos críticos mais articulados da atuação de instituições brasileiras, como o Supremo Tribunal Federal, o STF, que têm buscado tutelar a liberdade de expressão no Brasil com argumentos diversos, colocando-se contra as “fake news”, “discursos de ódio”, “anticientíficos” ou “contra as instituições”. “O que a proibição do discurso de ódio costuma fazer é conferir poder demais às autoridades, que certamente abusarão desse poder. Além disso, ela gera uma série de efeitos não intencionais contraproducentes, dentre eles o aumento do ressentimento e do ímpeto agressivo de determinados setores da sociedade”, diz Maultasch.

De mudança para a República Dominicana, onde assumirá seu próximo posto como diplomata, ele conversou com Crusoé sobre liberdade de expressão e sua possível relação com o aumento da violência política, dias depois de um seguidor do presidente Jair Bolsonaro matar a tiros um tesoureiro petista em sua festa de aniversário, em Foz do Iguaçu.

O sr. acha que, com este clima de violência eleitoral, deveríamos aumentar a censura contra o discurso de ódio?
Toda violência é inadmissível e deve ser severamente punida. Isso é fundamental, até mesmo para a preservação da liberdade de expressão. A intimidação e a ameaça de violência são costumeiramente utilizadas precisamente para silenciar vozes dissonantes. Tanto a preservação da democracia como da liberdade dependem do combate à violência. No caso da violência eleitoral, trata-se infelizmente de um problema endêmico no Brasil. Nossas instituições, contudo, parecem mais atentas ao plano simbólico que ao material. Parecem mais preocupadas com as críticas à urna eletrônica, com “fake news”, ou com discursos “anticientíficos”, quando na realidade deveriam estar mais preocupadas com a violência, em especial com a eleitoral, que realmente impede o funcionamento regular da democracia.

Ampliar a censura poderia ser uma maneira de conter essa violência?
Toda vez que ocorre um episódio de violência, nós somos levados a pensar: será que nesse caso específico não teria cabido uma censura anterior? Será que, se tivéssemos proibido determinadas ideias de entrarem na cabeça do indivíduo, isso teria prevenido o crime? O problema dessa tese é que ela se baseia numa espécie de “intervenção cirúrgica” do Estado, o que simplesmente não ocorre. O que a proibição do discurso de ódio costuma fazer é conferir poder demais às autoridades, que certamente abusarão desse poder. Além disso, ela gera uma série de efeitos não intencionais contraproducentes, dentre eles o aumento do ressentimento e do ímpeto agressivo de determinados setores da sociedade.

Quais discursos não poderiam ser jamais permitidos em uma democracia e quais podem ser autorizados?
A ideia de liberdade de expressão que defendo é a da visão ampla, quase absoluta, que entende que toda opinião deve ser permitida desde que ela não esteja acoplada a algum dano iminente. Então coisas como “discursos de ódio”, “fake news” ou “ataque às instituições”, por exemplo, deveriam ser permitidos desde que não incitem à violência imediata. Mesmo ideias antidemocráticas – como a defesa de um novo regime militar ou a promoção do comunismo – devem contar com a proteção da liberdade de expressão. Enquanto não houver iminência de dano, enquanto houver tempo para que outras pessoas possam combater o seu discurso com outro discurso, a expressão deve permanecer livre. A proibição somente deve ocorrer quando houver a incitação à ação imediata, como quando alguém diz “pegue esta arma aqui e vamos, agora, derrubar a democracia”. Aí, sim, caberia a intervenção do Estado. Agora, liberdade de expressão é um tema complexo. Quando  analisam os casos excepcionais, entrando no detalhe do detalhe, mesmo os defensores da visão ampla da liberdade de expressão admitem que há exceções. Temas como pornografia infantil, violação de intimidade, alguns casos de difamação, enfim, quando se entra no detalhe, há várias exceções à liberdade de expressão.

DivulgaçãoDivulgação“Ninguém tem a fórmula secreta da manutenção da democracia”
 

O Partido da Causa Operária, PCO, teve suas redes sociais bloqueadas a mando do Supremo Tribunal Federal no final de junho. Como o sr. vê essa medida?
Uma coisa é a eventual responsabilização do partido por causa de uma postagem específica. Isso já seria algo contrário à visão ampla da liberdade de expressão, mas ao menos seria uma medida circunscrita. Outra coisa, bem mais ampla, é impedir que o partido volte a se manifestar. Aí é censura prévia. Essa é uma medida demasiado restritiva de direitos, que traz riscos para a nossa democracia e que infelizmente parece estar em consonância com estes tempos de retrocesso da liberdade de expressão no Brasil.

Por que a liberdade de expressão está em retrocesso no país?
Estamos numa era de ressurgimento do ímpeto censório, em que muitos pensam que é preciso restringir a liberdade para proteger a democracia. Mas isso é um contrassenso, que prejudica a legitimidade da própria democracia. Desde a redemocratização, em 1988, a liberdade de expressão nunca esteve tão em risco como agora. E esse risco deriva não apenas da ação das instituições, mas também da coerção social, da ação da sociedade, da ideia de que determinadas opiniões devem ser proibidas e que seus emissores devem ser silenciados ou “cancelados”.

Qual seria a causa do ressurgimento do ímpeto censório?
O principal fator para essa mudança são as redes sociais, que provocaram uma histeria em pessoas em posição de autoridade, como políticos, juízes, jornalistas e artistas. Toda nova mídia altera o padrão de comunicação, o que por sua vez altera a maneira pela qual a autoridade se comunica com o público e projeta seu poder. Por não conseguirem mais controlar o ecossistema de informação como antes, certas autoridades entram em pânico, acreditando que há algo de muito errado com o mundo, com essa nova mídia, com as novas ideias, com “essas pessoas que de uma hora para outra acham que podem opinar sobre tudo”. Isso ocorreu com a invenção da imprensa por Gutenberg e com o Facebook de Zuckerberg.  Sempre houve reação, muitas vezes  autoritária, às alterações nos padrões de comunicação.

Não há o risco de permitir um discurso e depois descobrir que o país foi permissivo demais e não ser mais possível recuperar a democracia?
Acho que ninguém pode dizer categoricamente que esse risco inexiste. Democracia moderna é algo novo. Tem o quê, uns 250 anos? Ninguém tem a fórmula secreta da manutenção da democracia, se é que um dia a teremos. Agora, o risco contrário existe também: o risco de as autoridades abusarem de seu poder, de silenciarem uma série de discursos e, com isso, contribuírem para deslegitimar a democracia que tanto dizem defender. Há muitas soluções que são piores que o problema que visam a resolver, e a restrição à liberdade de expressão parece-me um desses casos. Como diz o filósofo inglês Michael Oakeshott, a manutenção da liberdade exige, sobretudo, que evitemos grandes concentrações de poder. E dar poder ao governo para definir o que podemos ou não podemos pensar, o que podemos ou não dizer, significa colocar a nossa liberdade na mão de pessoas pouquíssimo confiáveis, para dizer o mínimo.

Qual será o efeito dessas ações de regulação da nossa liberdade de expressão para a democracia brasileira no futuro?
Ao tutelar a liberdade de expressão, muita gente acha que está salvando a democracia, mas o efeito é exatamente o contrário. Veja-se o caso do deputado federal Daniel Silveira. Vamos partir da premissa de que ele seja uma ameaça à democracia. Não estou dizendo que ele seja, este é só um experimento mental. Se agora formos calcular a probabilidade de ele ser eleito presidente do Brasil daqui a 20 ou 30 anos, a ação do STF fez aumentar ou diminuir essa chance? A resposta me parece óbvia, e esse efeito é conhecido: quando se prende alguém por suas opiniões, cria-se um mártir. Então, para quem quer defender a democracia em casos como esse, talvez a resposta da restrição legal não seja a mais apropriada. Além disso, muitas outras pessoas começam a se autocensurar, a ter medo de expor as suas próprias opiniões, e assim começam a pensar que talvez esta democracia não seja boa para elas. Se suas opiniões podem ser banidas pela lei, como se pode esperar a aprovação moral delas ao regime? A tutela da liberdade de expressão acaba por produzir, assim, uma multidão de insatisfeitos, de decepcionados, que podem acabar procurando uma solução autoritária para promover a sua voz. Minha impressão é que a tutela da opinião deslegitima a democracia. É também impossível exigir apoio moral a um regime que não concede ampla liberdade de expressão para todos, inclusive para os que desejam o seu fim. Ou abraçamos a essência da democracia — a essência de um país livre em que todos podem opinar livremente —, ou estaremos sempre insinuando aos extremistas que este regime é tutelado, que ele não é completamente livre, e que talvez eles possam encontrar mais espaço para a sua voz em algum movimento autoritário.

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  1. Num país onde as cúpulas dos três poderes estão podres, sem gozar do respeito da sociedade, a liberdade plena de expressão se torna realmente um grande risco !

  2. Concordo em grau, gênero e número. Deveria passar no Fantástico e no JN para chegar ao maior número de pessoas para entender o real significado de democracia

  3. Tristes são os dias em que o óbvio ululante tem de ser aplaudido por ser tão raramente manifestado.

  4. Num país em q nem as regras mínimas da língua materna são ensinadas e seguidas, há quem se considere acima do bem e do mal. Capaz de ditar o q é certo e o q é errado, mas incapaz de ser humilde e generoso a ponto de perceber q a liberdade demanda maturidade e algum entendimento, mas tb que as necessidades primárias estejam atendidas... somos sapiens neandertais com acesso ao shoppings, supermercados e acesso à Internet...

  5. A dita tao decantada "Democracia" e vilipendiada diariamente por tais doutos entrevistados em seus discursos contraditorios nao e mesmo?

  6. A entrevista é esclarecedora sobre a tese defendida pelo entrevistado em relação à liberdade de expressão na democracia. Mas, há exceções, algumas delas exemplificadas. O problema está no uso abusivo da liberdade de expressão para influenciar sobre a intolerância e o ódio contra o pensamento contrário e mobilizar a violência. A proteção contra esse risco presente dependerá do alcance intelectual de cada cidadão para dele desvencilhar-se e/ou da força do Estado para interferir com a censura.

    1. A defesa da democracia está na na legitimação das instituições que a preservam. As opiniões devem ser livres para convergir e divergir nos limites da ordem e da paz social.

    2. Na democracia, tudo pode ser dito expressamente sobre divergências das ideias. Mas, permita que um líder religioso ou um político reúna um grupo de fiéis ou militantes e propague a intolerância e o ódio contra oponentes, que o risco de um santo servo do Senhor ou de um engajado militante da Causa se sentir apoderado para agir será iminente. A história está repleta de registros onde a tolerância descuidada se transformou em tragédias.

  7. Excelente texto! Há todo um arcabouço civil e penal para tratar do dano causado por uma opinião externada, uma noticia falsa, etc. Desnecessário e perigoso que vaidosas autoridades com duvidoso senso de justiça se arvorem do papel de palmatória democrática.

  8. Excelente entrevista pena que muitos de nossos ministros da corte maior não tem a mesma posição, um país nunca será significantemente livre e maduro quando seu povo não poder expressar livremente o que pensam, Como pode certas pessoas acharem o que eles acham ser o correto serve para todos , não estariam intervindo na liberdade de expressão e indiretamente na democracia de um país como um todo.

  9. Muito boa entrevista 👏👏 pois é achei interessante uma colocação sobre o “mártir” desde que se deflagrou a operação lava jato até os dias de hoje. Uma parcela de culpa nisso tudo está à imprensa que não deixou um dia de falar do Lula, claro com o dinheiro que o PT tem por desvio de dinheiro, conseguiu através da imprensa criar esse Mártir na figura do Lula, é um grande corrupto. Se estivéssemos esquecido esse corrupto hoje não estaríamos nessa condição, porque na realidade eles se alimentam.

  10. Ótima reflexão!!! Concordo em que a premissa primeira da democracia é a liberdade irrestrita da expressão. Mesmo que isso seja ter que suportar bolsonarista a e petistas falando boçalidades, discursos de ódio e censura. Mas é sine qua non ter um povo educado e ensinado com maestria para saber discernir as mensagens dos políticos, apoiadores e seus partidos.

    1. Perfeito Leandro! A condição que você indicou aponta para o “contexto ideal” onde a tese do entrevistado prevaleceria com poucas exceções. Mas, a educação da maioria esmagadora da população brasileira e os interesses dos nossos representantes na República ainda estão muito aquém da condição desejada.

  11. A entrevista é bem esclarecedora. Mas não entendo que haja autoridades tremendo de medo ou nas vésperas de um ataque histérico ou delirando junto com seu travesseiro. O poder da velha república tremeu quando a Lava Jato chegou próximo demais deste poder. De lá para cá tudo mudou.

  12. Liberdade de expressão não se confunde com liberdade de agressão. Esse é o ponto. A partir do momento que vc incita agressões contra membros de nossas instalações, aí tem que haver intervenções enérgicas. Se alguém não concorda com a atuação de algum Ministro do STF é só ler a Constituição e caso entenda cabível, é só ingressar com pedido de impeachment. O entrevistado poderia fazer isso,

  13. Situação totalmente hipotética, suponha que circule uma fake-news acusando o entrevistado Gustavo de algum crime, alguma coisa altamente improvável. Pela tese do Gustavo, isso seria liberdade de expressão, pois como é altamente improvável, não teria consequências. Agora vá aumentando quantidade dessas fake-news, gradativamente. Tenho convicção de que a partir de um momento ela passaria a ser acreditada piamente. Como não foi morta no ninho, criou-se um monstro. Não é liberdade de expressão.

    1. As fake-news que o entrevistado citou levam à violência política. Briga-se por conta de cloroquina, vacinas ou urna eletrônica. Fake news da cloroquina tem o potencial efeito colateral da própria cloroquina. Fake news contra vacina tem um efeito colateral simples - possibilidade de a pessoa morrer. Fake news contra a urna eletrônica tem o efeito colateral de detonar a democracia. Tem que ser combatido sim, não com censura prévia, mas com processos firmes.

  14. Ao se reprimir a fala, reprime-se por tabela o livre pensar. Sem o livre pensar só haverá obscurantismo, ignorância, prepotência.

  15. É isso aí: "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo." (Voltaire?) A menos de casos totalmente objetivos ou factuais, a verdade pode ter mil faces, cada uma em si uma mentira...

    1. Consistente! O entrevistado deve ter passado pelo Curso Clio!

  16. Excelente entrevista. Serenidade e visão aguda dos efeitos perversos que a censura "do bem" podem, e vão causar. Aplaude-se hoje mas pode lamentar amanhã.

  17. A censura é odiosa mas está sendo e será largamente usada em favor da quadrilha que quer esconder seus hediondos crimes do povo com a cumplicudade das cortes do mal e não faz segredo que vai "regular a mídia" como faz Cuba e ditaduras assassinas ... um povo insano ignirante e cheio de ódio plantado por crminosos será algoz de si mesmos nas urnas indevassáveis dos drs. Verboso e Xandão? é muito provável que sim ... e assim um feliz suicídio em massa a todos.

  18. Eu tenho medo de uma democracia tutelada. Não há diferença com o autoritarismo. Liberdade de Expressão se impõe pela própria essência de Liberdade. Falar não é ameaça. Reprimir a fala sim. "Qual é a forma perfeita da Democracia?" - Antes de proibir opiniões, vamos proibir a violência politica.

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