RuyGoiaba

Datenismo sem culpa

15.07.22

Tempos atrás, fui ao borracheiro para arrancar um prego teimosamente alojado em um dos pneus do meu carro. O rapaz que me atendeu, um iluminista, estava com a TV ligada em um programa policial (Balanço Urgente, Alerta Geral, sei lá) e comentando um caso de assalto, na linha “tem que passar fogo sem dó em toda essa bandidagem”. Fingi concordar (“pois é, né, que coisa”), porque obviamente eu tinha ido lá para retirar o prego do pneu e não para CATEQUIZAR o borracheiro; além do mais, a vida me ensinou a nunca debater em situações como essas, que incluem estar dentro de um táxi/Uber ou na cadeira do barbeiro. Acredite, leitor, quando tio Goiaba disser que não é bom negócio discutir com o cara que manuseia uma navalha a milímetros do seu pescoço.

(Se eu estivesse no Twitter, isto poderia ser um fio sobre como meus argumentos brilhantes e bem fundamentados convenceram o borracheiro a mudar de ideia, se matricular em uma oficina de dança contemporânea na Vila Madalena e aderir ao lado fofinho da Força. Melhor ainda: os argumentos brilhantes do meu filho de seis anos, que até onde sei não tenho. Fim da divagação, fecha parêntese.)

Claro, não é só o iluminista da borracharia: em alguma medida, todos somos atraídos por histórias de crimes. Isso não se limita a casos monstruosos como o do anestesista que estuprou uma grávida no Rio, no último fim de semana, ou o assassinato de Daniella Perez, que completará 30 anos em dezembro. A morte violenta da atriz é tema de um documentário da HBO que deve ir ao ar ainda neste ano, mas os exemplos são inúmeros, do “mais jornalístico” ao “mais sensacionalista”; todos sabemos que a popularidade de programas policiais como os de Gil Gomes e Afanásio Jazadji é coisa de muitas décadas no país.

Mas, agora que a moda dos podcasts de true crime chegou por aqui — com atraso, como sói acontecer no Bananão —, o pessoal mais hipster e mais progressista pode finalmente exercer seu datenismo sem culpa. O melhor exemplo talvez seja “A Mulher da Casa Abandonada“, podcast do repórter Chico Felitti (que já colaborou com esta Crusoé) contando a história de uma brasileira acusada de manter por quase 20 anos nos EUA uma empregada em condição análoga à escravidão. Sem nunca ter sido punida pelo crime, a mulher voltou ao Brasil e se instalou na casa da família em Higienópolis, que foi se deteriorando progressivamente. Seus vizinhos suspeitam de problemas de saúde mental, e a Polícia Civil abriu inquérito para investigar um suposto abandono de incapaz.

Depois que o podcast foi ao ar, a casa em Higienópolis virou uma espécie de atração turistica. Mas não só: além de gente tirando fotos, houve xingamentos, pichações (“escravocrata”), arremesso de objetos e, segundo depoimento da irmã da protagonista do podcast, até um tiro numa janela, que teria obrigado a mulher a se mudar do lugar. A coisa chegou a um ponto em que a Folha, que produz o podcast, teve de fazer este disclaimer: “O podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público, procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. A série não é uma investigação policial nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas retratadas”.

É evidente: se a causa é boa — e ninguém negará que o combate ao trabalho escravo o é —, se a pessoa cometeu um crime que nunca foi punido e, ainda por cima, é de família abastada e vive nesse lugar de gente rica eminentemente odiável que é Higienópolis, por que não soltar o datenismo sem medo de ser feliz? Você, santacecilier vegano, pai ou mãe de pet e 100% comprometido com as causas certas, está liberado para dar vazão ao mesmo ímpeto justiceiro básico do borracheiro que descrevi no primeiro parágrafo, mas de um jeito mais chique. Ninguém vai confundi-lo com um bolsominion, embora talvez haja mais pontos de contato com essa tribo do que você gostaria de admitir: é só substituir o programa do Sikêra Jr. e seu “você, maconheiro, vai morrer antes do Natal” por outro veículo e outro tipo de crime, que você vira uma versão hipster da sua avó.

O datenismo, como diria Silvio Santos, é coisa nossa: você pode conter ou deixar à solta o seu justiceiro interior. Mas algo me diz que, se todo mundo optar pela segunda alternativa, à margem da lei e da Justiça, nenhuma sociedade terá condições de durar muito. De minha parte, procuro me inspirar no maior talento de José Luiz Datena, que é sua capacidade de desistir das coisas. Desistam mais, desistam muito e sempre: o Brasil agradece. Aliás, acabo de desistir deste texto.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Todo político em véspera de eleição quer “reforçar seu apelo junto ao eleitorado jovem”; toda vez que isso acontece, o candidato em questão dá ouvidos a um marqueteiro só um pouquinho menos tiozão que ele e que aparece com uma ideia luminosa perfeitamente idiota. É o que chamo “efeito Steve Buscemi de boné’ (“how do you do, fellow kids?”), de que já tratei em outra coluna. Nesta semana, Ciro Gomes bateu o recorde da modalidade ao publicar, no tal Dia do Rock (13 de julho), uma montagem de si mesmo como David Bowie em Aladdin Sane, com aquele raio pintado no rosto. Não contente, ainda meteu o trocadilho 1.000% tiozão “estou de Bowie”. Só faltou um “ground control to Major Tonho”.

Reprodução/Twitter/CirogomesReprodução/Twitter/CirogomesJoão Santana é mesmo um infiltrado do PT na campanha de Ciro, só pode
 

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