MarioSabino

Ode à Alegria

15.07.22

Nesta semana que termina, vendi um título de sócio de um clube paulistano. Pus o anúncio no próprio clube e recebi uma enxurrada de propostas. Aceitei a de um rapaz chamado Rafael. Pode não ter sido a oferta financeira mais vantajosa, mas certamente foi a melhor escolha.

Rafael é casado, tem 36 anos e dois filhos pequenos. O título que comprou de mim abrirá caminho para que a sua família também se associe. Ele estudou na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, completou os estudos na Alemanha e tem uma empresa na área de Tecnologia da Informação. Construiu sistemas de pagamento para bancos e, hoje, trabalha em parceria com a universidade na qual se formou. Veio do interior paulista, assim como a sua mulher, e agora se integra a esta São Paulo abastada da qual frequento apenas as margens.

O novo sócio do clube é um rapaz que se veste e fala normalmente, sem aquele sotaque pitoresco da Faria Lima, onde fica sediada a sua empresa. Enquanto aguardávamos os trâmites, conversamos sobre a Alemanha, e ele expôs uma visão equilibrada sobre o modelo econômico que embute eficiência e alguma perversidade. Quando a funcionária encarregada de fazer a transferência de título informou que ele precisaria assinar um livro, Rafael comentou: “Que coisa mais romântica…” Eu, então, brinquei: “A primeira assinatura é de Goethe”. Ao que ele retrucou: “Com o testemunho de Schiller”.

Quantas pessoas conhecem ou já ouviram falar de Schiller no Brasil? Mesmo no clube de origem alemã, acho que há pouquíssimas. Rafael é uma delas e, por isso, fiquei ainda mais contente de ter vendido o título a ele. Vale um trecho da Ode à Alegria:

Quem já conseguiu o maior tesouro de ser o amigo de um amigo, quem já conquistou uma mulher amada, rejubile-se conosco!

Sim, mesmo aquele que conquistou apenas uma alma, uma única em todo o mundo.
Mas aquele que não conseguiu isso, que chore fora desta irmandade!

Não serei amigo de Rafael, provavelmente nunca mais o verei, mesmo pertencendo ao mesmo clube, mas ele representou um momento tão breve quanto excepcional. A esta altura da vida, venho passando por situações em que, no mais das vezes, as relações guardam incômodas hierarquias sociais, mais ou menos como naquela cena de Quincas Borba, de Machado de Assis, na qual o diretor de um banco, oriundo de uma burguesia ainda desprezada numa sociedade estamental, encontra-se com um ministro:

“Fora primeiro à casa de um ministro de Estado, tratar do requerimento de um irmão. O ministro, que acabara de jantar, fumava calado e pacífico. O diretor expôs atrapalhadamente o negócio, tornando atrás, saltando adiante, ligando e desligando as frases. Mal sentado, para não perder a linha do respeito, trazia na boca um sorriso constante e venerador: curvava-se, pedia desculpas. O ministro fez algumas perguntas; ele, animado, deu respostas longas, extremamente longas, e acabou entregando um memorial. Depois ergueu-se, agradeceu, apertou a mão do ministro, este acompanhou-o até a varanda. Aí fez o diretor duas cortesias — uma em cheio, antes de descer a escada — outra em vão, já embaixo no jardim; em vez do ministro, viu só a porta de vidro fosco, e na varanda, pendente do teto, o lampião de gás. Enterrou o chapéu e saiu. Saiu humilhado, vexado de si mesmo. Não era o negócio que o afligia, mas os cumprimentos que fez, as desculpas que pediu, as atitudes subalternas, um rosário de atos sem proveitos.”

Eu e as minhas literatices. Só queria dizer que, em meio a um rosário de atos sem proveitos, humilhados por gente cheia de dinheiro e poder, mas sem gramática e grandeza, por vezes conseguimos extrair algo gratificante em intervalos inesperados. Que Rafael e sua família aproveitem o clube no qual acabaram de entrar.

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  1. Trabalhei 3 anos na Alemanha o que me deu alguma visão de mundo e por isso entendo e partilho do seu sentimento. Como aposentado deste novo século tenho o privilégio de poder viver virtualmente no exterior, estudando e aprendendo, não mais tendo que me submeter às deploráveis circunstâncias desta cultura de privilégios em que o país permanece marinando. Estou livre agora, olhando esporadicamente para dentro do país através da janela da Crusoé. Espero que a sua hora também chegue. Abraços

  2. Eu morei em uma rua que se chamava Wolfgang von Goethe, esquina com Friedrich Schiller. Isso até o dia em que um vereador decidiu apresentar um projeto para alterar o nome, porque os alunos de um colégio tinham dificuldade para pronunciar e escrever o endereço. Questionado por meu pai por que não havia incluído no projeto a rua Friedrich Schiller, respondeu que se tratava do pai de um morador chamado Hélio Schüler. Santa ignorância!

  3. Amei sua literatice! Aliás adoro literatice de qualidade como os trechos de Schiller e Machdão que vc citou ! Tem talento ou algum conhecimento esse tal de Mario Sabino. Se tem futuro na terra Brasilis já é uma outra historia...

  4. Há de chegar o dia em que a maioria dos brasileiros saberá quem foi Goethe e Schiller. Quando o Ministério da Educação e Cultura (sim, juntos, caminhando lado a lado como deve ser!) tiver a importância devida, com um Ministro competente e culto à sua frente e funcionários concursados e cientes das suas verdadeiras atribuições! Não estarei mais aqui para apreciar o belo trabalho desenvolvido por educadores bem remunerados e valorizados mas tenho fé que meus descendentes serão agraciados!!

    1. Lúcia, aqui do Sul do Brasil, levanto a bandeira de um MEC independente de governos, livre de ingerências danosas, com pessoal concursado e qualificado. Só assim, a Pátria amada terá futuro.

    1. Com certeza, Bozo e Lula nunca ouviram falar em Beethoven, muito menos na Nona...portanto, esse texto seria incompreensível para eles.

  5. Mário, Na vida, as vezes sentimos a sharáv, vento escaldante do deserto, que no início nos aquece mas, na seqüência no desidrata e pode até nos matar. As vezes, sentimos o minuano, vento que nos refresca a face e nos encanta, com seu assovio. E em seguida, nos congela até a alma. Tudo na vida é uma questão de intensidade. Tudo na vida vale para que esta não seja morna. Alegrias, aquecem a alma na medida certa.

  6. Uma mente forte, com pensamento próprio e abundante, na maioria das vezes vem desprovida de um paladar flexível, um estômago rápido e um fígado forte para ingerir, assimilar e purificar 'um rosário de atos sem proveito'. Que suas literatices se mantenham vigorosamente alimentando almas menos literatas como a minha... Sapiens nihil invitus.

  7. Gostaria que escrevesse mais livros. Sei que tempo é o que não te sobre. Entretanto, a literatura brasileira está tão pobre, se é que existe uma, que eu compraria com muito gosto.

  8. Bom dia, Mário. Ler suas colunas, além de proporcionar instsntes de leveza, faz-me pensar o quanto fomos empobrecendo intelectualmente.

  9. Mário e Diogo são meus heróis. Eu já sou idosa e vejo a dificuldade do site, no ano passado eu assinei o Combo por dois anos. Os imbecis Lulistas e Bolsonaristas em breve voltarão e assinarão o Combo. A luta pacífica continua. Enquanto viver estarei aqui.

  10. Mario Sabino,bom dia.Sera que todos seus leitores entendem a sua alta capacidade literaria? Sou uma ardente leitora.porem lhe acho muito acima dos meus conhecimentos,agora precisaria ler com sequencia seus escritos,porem nao o faco por motivos banaise ao mesmo tempo desdigo,me ocupo muito com a politica do nosso pais apezar de muita idade continou sendo apaixonada pelo que nossos escritores ilustres como voce, no proporcionam Rita Queroz

  11. Sei o q quer dizer. Ontem,num estacionamento que uso, eu procurava sem sucesso o meu celular. Dentro e fora do carro, dentro da bolsa. Quando o velhinho, informal guardador de carros que sempre estava por ali, ofereceu o seu celular para que eu ligasse para o meu. Bingo! Ele ficou todo satisfeito, informando q viveu esta situação recentemente, quando seu celular estava "perdido" em sua mochila. E eu, fiquei extremamente tocada com a inesperada gentileza e solidariedade.

  12. Mario, se algum dia tiver a sorte de o encontrar, ficarei detrás de alguma coluna, ouvindo-o de longe, como agora. Não teria nada a oferecer além do aborrecimento que vc poderia sentir na 'obrigação' de ser educado. Tbm não conheço Schiller; minha Ode seria à coluna redentora.

  13. Grande Mário, ficamos na torcida para que a Crusoé e o Antagonista consigam manter-se firmes apesar desse furacão que se abate sobre o país. Somos poucos, talvez, os que na Faria Lima conhecem Goethe e Schiller, e menos ainda, provavelmente, os que associarão os versos da Ode à Alegria ao quarto movimento daquela sinfonia composta por um alemão surdo, mas muito afinado. Tudo ficou irrelevante no Brasil, porque néscios à esquerda e à direita corroeram as fundações da casa de Macondo…

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