DiogoMainardina ilha do desespero

“Os brasileiros devem ser montados ao menos uma vez por semana”

15.07.22

Fui expurgado da Veja. Apagaram de seus arquivos tudo o que publiquei em 22 anos como colaborador da revista. Não é uma grande perda. A imprensa sempre teve esse caráter de provisoriedade. Devo ter escrito uma coisa boa para cada quinze ruins. O saldo desse cancelamento, portanto, é vantajoso para mim.

Só descobri que havia sido expurgado da Veja no último domingo, depois de ler na Folha de S. Paulo uma coluna de Ruy Castro, em que ele dizia:

“Ivan Lessa foi autor de frases que nos fazem dolorosamente entender o que somos e por quê. Uma: ‘De 15 em 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos 15 anos anteriores.’ Outra: ‘O brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também.’ E, quando os militares bradaram ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, Ivan completou: ‘O último a sair apague a luz do aeroporto.’”

A luz se apagou de uma vez por todas quando Ivan Lessa morreu — o meu Ivan Lessa.

Como tenho pensado obsessivamente na morte de meus afetos, procurei na internet o que eu disse sobre ele quando um enfisema pulmonar o matou, em 8 de junho de 2012. Encontrei o depoimento que dei para o Jornal Nacional:

“Ivan Lessa foi o melhor escritor brasileiro até o fim, quando precisava de uma bomba de oxigênio para respirar. Com sua morte, quem fica sem oxigênio é o Bananão, como ele chamava debochadamente o Brasil. Por sorte, uma cultura de zumbis como a nossa não precisa de oxigênio para respirar.”

Na época, publiquei também um textinho choroso na Veja. Quando tentei resgatá-lo, porém, o motor de buscas de revista desculpou-se educadamente e informou-me que o link daquele textinho choroso “não existe mais, mudou de endereço ou houve um erro de digitação” — o que corresponde perfeitamente ao meu estado de espírito atual, que oscila entre a ausência completa e a tecla errada.

A Veja só manteve em seus arquivos um trecho de um podcast que gravei em 2007, e que foi transcrito por Reinaldo Azevedo, que replicava tudo o que eu fazia (quando ainda precisava de mim). No podcast, eu dizia:

“‘Se Robespierre tivesse nascido em Crato, Ceará, ele se chamaria Danton’.

A frase é de Ivan Lessa. Está em Gip-Gip Nheco-Nheco, uma coletânea de suas frases publicadas no Pasquim entre 1972 e 1977.

Outra frase de Ivan Lessa, reunida em Gip-Gip Nheco-Nheco:

“Os brasileiros, para não perder a forma, devem ser montados ao menos uma vez por semana” (…).

Eu lia Ivan Lessa em 1977. Mas só o conheci pessoalmente algum tempo depois, em 1980. (…) Ivan Lessa foi a pessoa mais importante da minha vida, fora do círculo familiar. (…) Eu tinha 18 anos. Toquei a campainha de sua casa, em Londres, e pedi para ser adotado. Ele me adotou.”

Não sei como continuava o podcast. E nunca vou saber. Mas não importa. Aquele Brasil não existe mais. Virou um simples erro de digitação.

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